IX

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 Eles não sentem nada lá, pensou Cam olhando a costa, a qual, subindo e descendo, tornava-se sempre mais distante e mais pacífica. Sua mão abria uma trilha no mar enquanto sua mente criava desenhos com as faixas e espirais verdes e, entorpecida e toldada, vagueava na imaginação por aquele submundo das águas onde as pérolas se prendiam em cachos a alvas ramagens marinhas, onde na luz verde se dava uma transformação na mente inteira da pessoa e o corpo brilhava translúcido envolto num manto verde.

Então a contracorrente se amainou em torno de sua mão. O ímpeto da água cessou; o mundo ficou repleto de pequenos sons rangendo e estralejando. Ouviam-se as ondas quebrando e batendo na lateral do barco como se estivessem ancorados num porto. Tudo se fez muito próximo. Pois o velame, sobre o qual James mantivera os olhos fitos até que se tornasse alguém conhecido, descaiu totalmente; então as velas se detiveram, batendo à espera de uma brisa, ao sol quente, a quilômetros da costa, a quilômetros do Farol. Tudo em todo o mundo parecia parado. O Farol ficou imóvel e a linha da costa distante ficou fixa. O sol esquentava e todos pareciam muito próximos sentindo mutuamente suas presenças, das quais se haviam quase esquecido. A linha de pesca de Macalister se afundou a prumo no mar. Mas o sr. Ramsay continuou a ler com as pernas encolhidas.

Estava lendo uma brochura de capa brilhante sarapintada como um ovo de tarambola. Vez por outra, enquanto estavam parados naquela calmaria horrenda, ele virava uma página. E James sentia que cada página era virada num gesto peculiar destinado a ele: ora afirmativo, ora imperioso, ora na intenção de ganhar a piedade dos outros; e o tempo todo, enquanto seu pai lia e virava aquelas pequenas páginas uma depois da outra, James continuou a recear o momento em que ele ergueria os olhos e em tom cortante falaria com ele sobre uma coisa ou outra. Por que estavam se demorando aqui?, perguntaria isso ou alguma outra coisa totalmente desarrazoada. E se ele perguntar, pensou James, pego uma faca e cravo no coração dele.

Ele sempre conservara esse velho símbolo de pegar uma faca e cravar no coração do pai. Só que agora, tendo crescido e estando a fitar o pai numa raiva impotente, não era ele, aquele velho lendo, que queria matar, era a coisa que descia sobre ele – sem que soubesse, talvez: aquela harpia de asas negras, súbita e feroz, com suas garras e bico, tudo duro e frio, que se cravavam, cravavam (ele podia sentir o bico que se cravara em suas pernas nuas quando era criança), e então ia embora, e ali estava ele de novo, um velho, muito triste, lendo seu livro. Que ele gostaria de matar, que gostaria de cravar no coração. Qualquer coisa que fizesse – (e podia fazer qualquer coisa, sentiu, olhando o Farol e a costa distante) estivesse numa empresa, num banco, fosse um advogado, um homem à frente de algum empreendimento, isso ele combateria, isso ele perseguiria e esmagaria – tirania, despotismo, era o nome que lhe dava – que levava as pessoas a fazerem o que não queriam fazer, que lhes retirava o direito de falar. Como algum deles poderia responder "Eu não" quando ele disse "Vamos ao Farol"? Faça isso. Me traga aquilo. As asas negras se entendiam e o bico duro dilacerava. E então no momento seguinte, ali estava ele sentado lendo seu livro; e podia levantar os olhos – nunca se sabia – de maneira muito arrazoada. Podia falar com os Macalister. Podia enfiar um soberano na mão de alguma velha transida de frio na rua, pensou James; podia se entusiasmar com as diversões de alguns pescadores; podia abanar os braços no ar de alegria. Ou podia se sentar à cabeceira da mesa num silêncio mortal do começo ao fim do jantar. Sim, pensou James, enquanto o barco balançava e mal se movia lá ao sol quente; havia uma vastidão erma nevada e pedregosa muito austera e solitária; e ele viera a sentir, ultimamente com grande frequência, quando seu pai dizia alguma coisa que surpreendia os outros, que havia ali apenas dois pares de pegadas, as dele e as do pai. Apenas os dois se conheciam. O que era então esse terror, esse ódio? Voltando e se embrenhando entre tantas folhagens em que o passado o envolvera, perscrutando o coração daquela floresta onde a luz e a sombra se entrecruzam tanto que todas as formas se distorcem e a pessoa fica às cegas, ora com o sol ofuscante, ora com uma sombra escura toldando a vista, ele procurou uma imagem que acalmasse, separasse e rematasse seu sentimento dando-lhe uma forma concreta. Suponha-se então, quando pequeno sentado sozinho num carrinho ou no joelho de alguém, que tivesse visto uma carroça esmagar, ignorante e inocente, o pé de alguém. Suponha-se que ele tivesse visto primeiro o pé, na grama, liso e inteiro; então a roda; e depois o mesmo pé, roxo, esmagado. Mas a roda era inocente. Da mesma forma agora, quando seu pai viera a passos largos pelo corredor batendo à porta deles de manhã cedo para irem ao Farol, passara por cima do pé dele, do pé de Cam, do pé de todo mundo. Fazer o quê? sentar e olhar.

Mas estava pensando no pé de quem, e em qual jardim tudo isso aconteceu? Pois havia cenários para tais cenas; com árvores, flores, uma determinada luz, algumas figuras. Tudo tendia a se instalar num jardim onde não havia sinal dessa tristeza nem dessa agitação de abanar os braços; as pessoas falavam num tom de voz normal. Entravam e saíam o dia todo. Havia uma velha mexericando na cozinha; e todas as venezianas se abriam e se fechavam ao sopro da brisa; tudo respirava, tudo crescia; e sobre todos aqueles pratos e travessas, sobre as hastes altas que brandiam flores vermelhas e amarelas, à noite se estendia um véu amarelo muito fino, como uma folha de parreira. À noite as coisas ficavam mais paradas e mais escuras. Mas o véu que parecia uma folha era tão fino que as luzes o suspendiam, as vozes o amarfanhavam; através dele podia enxergar uma figura se inclinando, ouça, se aproximando, se afastando, algum vestido farfalhando, alguma corrente tilintando.

Foi nesse mundo que a roda passou por cima do pé. Alguma coisa, lembrou, parou e lançou sombra sobre ele; não saía dali; alguma coisa subiu e floresceu no ar, alguma coisa estéril e pontiaguda desceu exatamente ali, como uma lâmina, uma cimitarra, caindo bem entre as folhas e flores daquele mundo feliz, fazendo-as murchar e se despetalar.

"Vai chover", lembrou o pai dizendo. "Não poderão ir ao Farol."

O Farol era então uma torre prateada brumosa com um olho amarelo que se abria súbito e suave ao anoitecer. Agora...

James olhou o Farol. Podia ver as pedras caiadas de branco; a torre, hirta e reta; podia ver que tinha faixas brancas e pretas; podia ver janelas; podia ver até as roupas lavadas e estendidas nas pedras a secar. Então era aquele o Farol, aquilo?

Não, aquilo outro também era o Farol. Pois nada era simplesmente uma coisa só. Aquilo outro também era o Farol. Às vezes quase se podia enxergá-lo do outro lado da baía. Ao anoitecer, erguia-se o olhar e via-se o olho abrindo e fechando e a luz parecia alcançá-los naquele jardim arejado e ensolarado onde ficavam.

Mas recompôs-se. Sempre que dizia "eles" ou "uma pessoa", e então começava a ouvir o farfalhar de alguém se aproximando, o tilintar de alguém se afastando, tornava-se extremamente sensível à presença de quem quer que estivesse ali. Agora era o pai. A tensão se fez aguda. Pois dentro de um instante, se não houvesse brisa, seu pai iria fechar o livro de um golpe e diria: "O que é agora? A troco do quê estamos aqui parados, hein?", como antes, uma vez, tinha baixado sua lâmina entre eles no terraço e ela se enrijecera totalmente, e se houvesse por ali um machado, uma faca ou qualquer coisa pontiaguda ele teria pegado e cravado no coração do pai. Sua mãe se enrijecera totalmente e então, soltando o braço, de modo que ele sentiu que ela deixara de ouvi-lo, de certa forma se erguera e fora embora, deixando-o ali, impotente, ridículo, sentado no chão segurando uma tesoura.

Não havia um sopro sequer de vento. A água casquinava e gorgolejava no fundo do barco onde três ou quatro cavalinhas agitavam a cauda numa poça de água insuficiente para cobri-las. A qualquer instante o sr. Ramsay (James mal se atrevia a olhar para ele) podia despertar, fechar o livro e dizer alguma coisa cortante; mas por ora estava lendo, de modo que James continuou furtivamente, como se furtivo descesse as escadas descalço, com medo de despertar um cão de guarda com o rangido de uma tábua, a pensar como era ela, aonde tinha ido naquele dia. Começou a segui-la de aposento em aposento e por fim chegaram a um aposento onde numa luz azul, como se fosse o reflexo dos inúmeros pratos de porcelana, ela falou com alguém; prestou atenção ao que ela estava falando. Falava com uma empregada, dizendo simplesmente o que lhe vinha à cabeça. "Vamos precisar de um prato grande hoje à noite. Onde está ele – o prato azul?" Só ela falava a verdade; só com ela ele podia falar. Esta era a fonte de sua perpétua atração por ele, talvez; era uma pessoa à qual se podia dizer o que vinha à cabeça. Mas, durante o tempo inteiro em que esteve pensando nela, tinha consciência de que o pai lhe seguia o pensamento, lançando-lhe sombra, fazendo-o estremecer e falhar.

Finalmente parou de pensar; ali continuou sentado com a mão no leme ao sol, fitando o Farol, incapaz de se mover, incapaz de espanar esses grãos de infelicidade que lhe pousavam na mente um depois do outro. Parecia que uma corda o prendia ali, com nós que tinham sido amarrados pelo pai e só conseguiria escapar pegando uma faca e mergulhando... Mas naquele instante o velame oscilou devagar, devagar se enfunou, o barco pareceu se agitar e se sacudir num sono semiconsciente, e então despertou e disparou entre as ondas. O alívio foi enorme. Todos pareciam ter se afastado de novo e se posto à vontade, e as linhas de pesca se retesaram enviesadas na lateral do barco. Mas seu pai não se animou. Apenas ergueu a uma altura misteriosa sua mão direita no ar e a deixou cair de novo no joelho como se regesse alguma sinfonia secreta.

Ao Farol (1927)Onde histórias criam vida. Descubra agora