VII

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 A primavera sem uma folha para agitar, nua e nobre como uma virgem orgulhosa de sua castidade, desdenhosa em sua pureza, se estendera pelos campos desperta, atenta, totalmente alheia ao que faziam ou pensavam os observadores.

(Prue Ramsay, apoiando-se no braço do pai, fora concedida em casamento naquele mês de maio. Poderia haver, diziam as pessoas, coisa mais adequada? E, acrescentavam, como ela estava linda!)

Conforme se aproximava o verão e o entardecer se encompridava, vinham aos despertos, aos esperançosos, andando pela praia, agitando a água de alguma poça, fantasias das mais estranhas – de carne transformada em átomos que se avançavam ao vento, de estrelas cintilando no coração, de penhascos, mares, nuvens e céus que se uniam intencionalmente para compor no exterior as partes dispersas da visão interior. Naqueles espelhos, as mentes dos homens, naquelas poças de água inquieta, às quais as nuvens sempre tornam e as sombras se formam, persistiam sonhos e era impossível resistir à estranha sugestão de que cada gaivota, cada flor, árvore, criatura masculina, criatura feminina, a própria terra branca pareciam declarar (mas se indagadas logo voltariam atrás) que o bem triunfa, a felicidade vence, a ordem reina; ou resistir ao extraordinário estímulo de explorar aqui e ali em busca de algum bem absoluto, algum cristal de intensidade, distante dos prazeres sabidos e das virtudes familiares, alguma coisa estranha aos processos da vida doméstica, singular, dura, brilhante, como um diamante na areia, que daria segurança a seu possuidor. Além disso, abrandada e aquiescente, a primavera com suas abelhas zumbindo e seus mosquitos dançando envolveu-se em seu manto, velou os olhos, desviou a cabeça e, entre sombras fugazes e leves pancadas de chuva, era como se tivesse tomado a si o conhecimento das dores da humanidade.

(Prue Ramsay morreu naquele verão de alguma complicação ligada ao parto, o que foi realmente uma tragédia, disseram. Disseram que ninguém merecia a felicidade mais do que ela.)

E agora no calor do verão o vento mandou outra vez seus espiões à casa. Insetos teciam teias nos aposentos ensolarados; matos que tinham crescido perto do vidro à noite batiam metodicamente à vidraça da janela. Quando caía a escuridão, a réstia do Farol, que se estendera com tanta autoridade sobre o tapete na escuridão, traçando seu desenho, vinha agora na luz mais suave da primavera mesclada ao luar deslizando delicadamente como se fizesse uma carícia, se demorasse discreta, olhasse e voltasse amorosamente. Mas na própria bonança dessa carícia amorosa, quando a longa réstia se inclinava sobre a cama, a pedra havia se desprendido; outra dobra do xale se afrouxara; ali pendia e oscilava. Pelas noites curtas e dias longos do verão, quando os aposentos vazios pareciam murmurar com os ecos dos campos e o zunir das moscas, a longa raia luminosa ondulava suave, oscilava à solta, enquanto o sol tantas listras e faixas traçava nos aposentos e de névoa amarela os preenchia que a sra. McNab, ao irromper e se arrastar por ali, espanando, varrendo, parecia um peixe tropical nadando por entre águas trespassadas de sol.

Mas, por torpor e sono que houvesse, avançando o verão vieram sons sinistros como os golpes compassados de um martelo amortecidos em feltro que, com suas pancadas repetidas, afrouxaram ainda mais o xale e trincaram as xícaras de chá. Volta e meia algum vidro tilintava no armário como se um gigante soltasse a voz num grito tão alto e estridente em sua agonia que os copos dentro de um armário também vibravam. Então caiu o silêncio outra vez; e então, noite após noite, e às vezes em pleno dia quando as rosas brilhavam e a luz se movia na parede, sua nítida forma ali, parecia tombar neste silêncio, nesta indiferença, nesta integridade, o baque surdo de algo caindo.

(Uma bomba explodiu. Vinte ou trinta jovens foram pelos ares na França, entre eles Andrew Ramsay, cuja morte, misericordiosamente, foi instantânea.)

Naquela estação os que tinham ido andar pela praia e perguntar ao mar e ao céu qual mensagem traziam ou qual visão apresentavam tiveram de considerar entre os costumeiros sinais da bondade divina – o poente no mar, a palidez da aurora, o nascer da lua, os barcos pesqueiros ao luar, as crianças se alvejando mutuamente com torrões de grama – algo que era destoante dessa jucundidade, dessa serenidade. Houve a aparição silenciosa de um navio de cor cinérea, por exemplo, que chegara e se fora; houve uma mancha violácea na superfície amena do mar como se algo tivesse fervido e sangrado, invisível, por baixo. Essa invasão de uma cena apropriada para despertar as mais sublimes reflexões e levar às mais reconfortantes conclusões deteve-lhes o andamento. Era difícil ignorá-los afavelmente, abolir suas marcas na paisagem, continuar, andando a beira-mar, a se maravilhar com a correspondência entre a beleza exterior e a beleza interior.

A natureza suplementava o que o homem promovia? Completava o que ele iniciava? Com igual complacência ela via sua desgraça, perdoava sua mesquinharia e aquiescia em sua tortura. Aquele sonho, então, de partilhar, completar, encontrar na solidão da praia uma resposta, não passava de um reflexo num espelho, e o próprio espelho não passava do vítreo na superfície que se forma quietamente quando os poderes mais nobres estão adormecidos sob ela? Impacientes, aflitos, mas relutantes em ir (pois a beleza oferece seus encantos, tem seus consolos), andar pela praia era impossível; a contemplação era insuportável; o espelho estava quebrado.

(O sr. Carmichael publicou um volume de poemas naquela primavera, que teve um sucesso inesperado. A guerra, diziam, reavivara o interesse pela poesia.)

Ao Farol (1927)Onde histórias criam vida. Descubra agora