IV

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 Então se foram, pensou, suspirando de alívio e desapontamento. Sua compaixão como que voltou lhe batendo na face, feito uma sarça estalando. Sentia-se curiosamente dividida, como se uma parte sua fosse atraída para lá – era um dia sereno, enevoado; o Farol nessa manhã parecia estar a uma distância imensa; e a outra parte estivesse cravada firmemente, solidamente, aqui no gramado. Via a tela como se pairasse no ar, pondo-se branca e inflexível diante dela. Parecia com seu olhar frio censurá-la por toda essa pressa e afobação, essa tolice e desperdício de emoção; chamou-a drasticamente de volta e lhe espalhou pela mente primeiro uma paz, enquanto suas sensações desencontradas (ele tinha ido embora, ela tinha sentido tanta pena dele e não dissera nada) debandavam; depois o vazio. Olhou perplexa a tela, com seu olhar branco inflexível, e então o jardim. Havia alguma coisa (ficou parada estreitando seus olhinhos de chinesa no rostinho enrugado), alguma coisa de que se lembrava nas relações entre aquelas linhas cortando de atravessado, talhando na vertical, e o volume da sebe com sua caverna verde de azuis e marrons, que lhe permanecera na mente; que era como um nó amarrado como lembrete na mente, de maneira que nos momentos mais salteados, involuntariamente, quando andava pela Brompton Road, quando escovava o cabelo, via-se pintando aquele quadro, passando os olhos por ele, desamarrando o nó na imaginação. Mas havia toda a diferença do mundo entre planejar etereamente longe da tela e realmente pegar o pincel e pôr a primeira marca.

Ela tinha pegado o pincel errado em sua agitação com a presença do sr. Ramsay, e o cavalete, fincado no chão com tanto nervosismo, estava no ângulo errado. E agora depois de endireitá-lo, e com isso subjugando as impertinências e descabimentos que lhe roubavam a atenção e lhe faziam lembrar que era uma pessoa assim e assado, que mantinha tais e tais relações com os outros, firmou a mão e ergueu o pincel. Por um instante ficou tremendo no ar num êxtase doloroso mas emocionante. Por onde começar? – era esta a pergunta; onde pôr a primeira marca? Uma só linha que pusesse na tela iria obrigá-la a inúmeros riscos, a decisões constantes e irrevogáveis. Tudo o que na ideia parecia simples se tornava na prática imediatamente complexo, como as ondas que se moldam simetricamente vistas do alto do penhasco mas para quem nada entre elas estão separadas por precipícios íngremes e cristas espumejantes. Ainda assim era preciso correr o risco; era preciso pôr a marca.

Com uma curiosa sensação física, como que empurrada para frente e ao mesmo tempo tendo de se segurar, ela deu seu primeiro toque rápido e decisivo. O pincel desceu. Vibrou marrom na tela branca; deixou uma marca corrida. Uma segunda vez – uma terceira vez. E assim pausando e assim vibrando, chegou a uma dança rítmica, como se as pausas fossem uma parte do ritmo e as pinceladas outra, todas relacionadas entre si; e assim, em pausas e pinceladas leves e rápidas, ela estriou a tela com nervosas linhas corridas marrons que tão logo se assentavam ali demarcavam (sentiu-o avultar-se diante de si) um espaço. No cavo de uma onda via a próxima onda se erguendo cada vez mais alto sobre si. Pois o que poderia ser mais tremendo do que aquele espaço? Aqui estava de novo, pensou, recuando para olhá-lo, longe dos falatórios, do convívio, do contato com as pessoas na presença desse tremendo e velho inimigo seu – essa outra coisa, essa verdade, essa realidade, que de súbito lhe deitava as mãos, emergia resoluta por trás das aparências e demandava sua atenção. Sentia-se meio avessa, meio relutante. Por que ser sempre puxada e arrastada? Por que não ficar em paz, conversar com o sr. Carmichael no gramado? De todo modo era uma forma de intercurso muito exigente. Outros objetos de adoração se contentavam com a adoração; homens, mulheres, Deus, todos aceitavam uma genuflexão; mas esta forma, mesmo que fosse apenas a forma de um abajur branco numa mesinha de vime, atiçava a um combate perpétuo, desafiava a uma luta da qual a pessoa sairia fatalmente derrotada. Sempre (estava em sua natureza – ou em seu sexo – não sabia qual dos dois) antes de trocar a fluidez da vida pela concentração da pintura ela tinha alguns poucos instantes de desnudamento quando se sentia uma alma não nascida, uma alma destituída de corpo, hesitando em algum pináculo ventoso e exposta sem qualquer proteção a todas as rajadas da dúvida. Por que então fazia aquilo? Olhou a tela, levemente traçada com linhas corridas. Ficaria pendurada nos quartos das empregadas. Seria enrolada e enfiada embaixo de um sofá. Para que fazê-la então, e ouviu alguma voz dizendo que não sabia pintar, dizendo que não sabia criar, como se tivesse sido apanhada numa daquelas habituais correntezas que depois de algum tempo formam a experiência na mente, de maneira que a pessoa repete as palavras sem saber mais quem foi o primeiro a dizê-las.

Ao Farol (1927)Onde histórias criam vida. Descubra agora