VI

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 Sim, era o barco deles, concluiu Lily Briscoe de pé no final do gramado. Era o barco com velas marrom acinzentadas, que agora viu se nivelar na água e disparar pela baía. Lá está ele sentado, pensou, e os filhos ainda estão em silêncio. E não conseguia alcançá-lo. Estava vergada ao peso da compaixão que não lhe dera. Dificultava-lhe pintar.

Ela sempre o considerara difícil. Nunca conseguira elogiá-lo diretamente, lembrou. E isso reduzia a relação entre eles a algo neutro, sem aquele elemento de sexo que tornava seus modos com Minta tão galantes, quase licenciosos. Colhia-lhe uma flor, dava-lhe seus livros. Mas acreditava que Minta os leria? Ela perambulava com eles pelo jardim, marcando as páginas com alguma folhinha.

"Lembra, sr. Carmichael?", estava propensa a perguntar, olhando o velho. Mas ele puxara o chapéu até a metade para cobrir a testa; estava dormindo, ou sonhando, ou deitado ali coletando palavras, supôs ela.

"Lembra, sr. Carmichael?", sentia-se propensa a perguntar ao passar por ele, pensando novamente na sra. Ramsay na praia; a barrica subindo e descendo; as páginas voando. Por que, depois desses anos todos, aquilo tinha sobrevivido, ressoado, se acendido, visível até o último detalhe, tudo antes em branco, tudo depois em branco, por quilômetros e quilômetros?

"É um barco? É uma cortiça de pesca?", diria, repetiu Lily, voltando, de novo relutante, à tela. Graças aos céus, o problema do espaço continuava, pensou, retomando o pincel. Ofuscava-lhe a vista. O volume todo do quadro dependia daquele peso. Belo e brilhante, assim devia ser na superfície, etéreo e evanescente, uma cor se fundindo na outra como as cores na asa de uma borboleta; mas sob ela a estrutura devia estar solidamente montada, com cavilhas de ferro. Devia ficar uma coisa que se conseguisse eriçar a um sopro e uma coisa que não se conseguisse mover nem puxando com uma parelha de cavalos. E começou a pôr um vermelho, um cinzento, e começou a traçar seu caminho até aquele vazio ali. Ao mesmo tempo parecia estar sentada ao lado da sra. Ramsay na praia.

"É um barco? É uma barrica?", disse a sra. Ramsay. E começou a caçar os óculos. E, encontrando-os, sentou-se em silêncio, olhando o mar. E Lily, pintando perseverante, sentiu como se uma porta se abrisse, alguém entrasse e parasse fitando em silêncio num lugar alto que parecia uma catedral, muito escuro, muito solene. De um mundo distante chegavam gritos. Navios a vapor desapareciam em colunas de fumaça no horizonte. Charles atirava pedras que ricocheteavam.

A sra. Ramsay sentava em silêncio. Estava contente, pensou Lily, em descansar em silêncio, nada comunicativa; em descansar na obscuridade extrema das relações humanas. Quem sabe o que somos, o que sentimos? Quem sabe mesmo no momento de intimidade, Isso é saber? Pois as coisas não se estragam, a sra. Ramsay podia ter perguntado (parecia acontecer com tanta frequência, esse silêncio a seu lado), ao serem ditas? Não somos mais expressivos assim? O momento pelo menos parecia extraordinariamente fértil. Comprimiu um buraquinho na areia e o recobriu, nele enterrando a perfeição do momento. Era como uma gota de prata na qual se mergulhava e iluminava a escuridão do passado.

Lily recuou para ter uma perspectiva – assim – do quadro. Era um percurso estranho, esse de pintar. Avançava-se, avançava-se, ia-se cada vez mais longe, até que por fim tinha-se a impressão de estar numa tábua estreita no mar, em plena solidão. E enquanto mergulhava o pincel na tinta azul, também mergulhava lá no passado. Agora a sra. Ramsay tinha se levantado, lembrou. Era hora de voltar para casa – hora do almoço. E todos juntos deixaram a praia, ela andando atrás com William Bankes, e lá estava Minta na frente deles com um furo na meia. Como aquele furinho redondo no calcanhar cor de rosa parecia se pavonear na frente deles! Como William Bankes o deplorava, sem, até onde conseguia lembrar, dizer nada a respeito! Para ele significava a aniquilação da feminilidade, desordem e desasseio, criadas saindo e camas ainda desfeitas ao meio-dia – todas as coisas que ele mais abominava. Tinha um jeito de estremecer e abrir os dedos como que cobrindo um objeto desagradável à vista, que repetiu agora – estendendo a mão diante de si. E Minta continuou em frente, e provavelmente Paul a encontrou e ambos foram para o jardim.

Ao Farol (1927)Onde histórias criam vida. Descubra agora