VIII

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 – Sra. Ramsay! – gritou Lily. – Sra. Ramsay!

Mas não aconteceu nada. A dor aumentou. A que extremos de imbecilidade aquela angústia era capaz de reduzir uma pessoa!, pensou. De todo modo o velho não a ouvira. Continuava benevolente, calmo – e, se se quisesse, sublime. Graças aos céus, ninguém a ouvira gritar aquele grito ignominioso, pare dor, pare! Obviamente não saíra fora de si. Ninguém a vira deixar sua tábua estreita para entrar nas águas da aniquilação. Continuava uma solteirona mirrada, segurando um pincel de tinta no gramado.

E agora aos poucos a dor da falta e a raiva amarga (estar de volta, justo quando pensava que jamais tornaria a prantear a sra. Ramsay. Sentira falta dela entre as xícaras de café no desjejum? nem um pouco) diminuíram; e da angústia desses sentimentos restou, como antídoto, um alívio que era um bálsamo em si mesmo, e também, mas mais misteriosamente, a sensação de alguém ali, da sra. Ramsay, aliviada por um momento do peso que o mundo lhe impusera, detendo-se levemente a seu lado e então (pois esta era a sra. Ramsay em toda a sua beleza) erguendo à fronte uma coroa de flores brancas com a qual se foi. Lily espremeu seus tubos outra vez. Atacou aquele problema da sebe. Era estranho como a via tão claramente, caminhando com sua rapidez habitual por campos entre cujas dobras, arroxeadas e suaves, entre cujas flores, jacintos ou lilases, acabou por desaparecer. Era algum artifício do olho do pintor. Depois de saber de sua morte passara dias a vê-la assim, pondo a coroa na fronte e prosseguindo incondicionalmente em sua companhia, uma sombra, pelos campos. A visão, a frase tinha o poder de consolar. Onde estivesse, pintando, aqui, no campo, ou em Londres, a visão lhe vinha e seus olhos, semicerrados, procuravam alguma coisa para dar base à sua visão. Olhava do alto do vagão, do ônibus; pegava uma linha partindo do ombro ou da face; olhava as janelas em frente; olhava o Piccadilly, com sua fileira de luzes ao anoitecer. Tudo fizera parte dos campos da morte. Mas sempre alguma coisa – podia ser um rosto, uma voz, um jornaleiro anunciando Standard, News – arremetia, passava por ela, despertava-a, exigia e ao final conseguia um esforço da atenção, de forma que a visão precisava ser refeita perpetuamente. Agora de novo, sentindo-se movida por alguma necessidade instintiva de distância e azul, olhou a baía abaixo, das faixas azuis das ondas criando pequenas colinas e dos espaços mais purpúreos campos pedregosos. De novo foi despertada por alguma coisa incongruente. Havia um ponto marrom no meio da baía. Era um barco. Sim, percebeu após um segundo. Mas barco de quem? Do sr. Ramsay, respondeu. Sr. Ramsay, o homem que passara a seu lado, com a mão erguida, altivo, à frente de uma procissão, com suas belas botas, pedindo uma compaixão que ela lhe recusara. O barco estava agora a meio da baía.

Fazia um tempo tão bom exceto por um vestígio de vento aqui e ali que o mar e o céu pareciam um tecido só, como se as velas estivessem coladas ao céu ou as nuvens tivessem caído dentro do mar. Um vapor em alto mar traçara no ar um grande rolo de fumaça que permanecia ali fazendo curvas e círculos decorativos, como se o ar fosse uma gaze fina que retinha e guardava as coisas em sua trama com delicadeza, apenas embalando-as suavemente de um lado ao outro. E tal como acontece às vezes quando o tempo está muito bom, os rochedos pareciam ter consciência dos navios e os navios pareciam ter consciência dos rochedos, como se trocassem alguma mensagem secreta por meio de sinais. Pois às vezes muito próximo da costa, o Farol esta manhã na névoa parecia a uma enorme distância.

"Onde estarão agora?", pensou Lily, olhando o mar. Onde estava ele, aquele homem muito velho que passara por ela em silêncio, com um embrulho de papel pardo debaixo do braço? O barco estava no meio da baía.

Ao Farol (1927)Onde histórias criam vida. Descubra agora