II

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 De repente o sr. Ramsay ergueu a cabeça ao passar e olhou diretamente para ela, com seu olhar desvairado e perdido mas que era tão penetrante, como se visse a pessoa por um segundo, pela primeira vez, para sempre; ela fingiu que tomava um resto de café da xícara vazia para escapar a ele – para escapar à sua demanda a ela, para afastar por mais um momento aquela necessidade imperiosa. E lhe acenou com a cabeça e seguiu adiante ("Sozinhos" ouviu-o dizer, "Perecemos" ouviu-o dizer) e como todo o resto nessa manhã estranha as palavras se tornaram símbolos, se inscreveram nas paredes verde-acinzentadas. Se pelo menos conseguisse juntá-las, sentiu ela, escrevê-las formando alguma frase, chegaria à verdade das coisas. O velho sr. Carmichael entrou devagar e silencioso, serviu-se de café, pegou a xícara e saiu para se sentar ao sol. A extraordinária irrealidade era assustadora; mas era também estimulante. Ir ao Farol. Mas o que se manda ao Farol? Perecemos. Sozinhos. A luz verde-acinzentada na parede em frente. Os lugares vazios. Tais eram algumas das partes, mas como juntá-las?, perguntou. Como se qualquer interrupção fosse romper a forma frágil que estava construindo sobre a mesa deu as costas à janela para que o sr. Ramsay não a visse. Precisava escapar de alguma maneira, ficar sozinha em algum lugar. De súbito lembrou. Quando se sentara ali dez anos atrás havia uma estampa de raminho ou folhinha na toalha de mesa que fitara num momento de revelação. Era um problema quanto ao primeiro plano de um quadro. Trazer a árvore para o meio, tinha dito. Nunca terminara aquele quadro. Ficou repercutindo na mente esses anos todos. Agora ia pintar esse quadro. Onde estavam suas tintas?, perguntou-se. Suas tintas, sim. Tinha deixado no vestíbulo na noite passada. Ia começar já. Levantou depressa, antes que o sr. Ramsay voltasse.

Pegou uma cadeira. Armou o cavalete com seus velhos gestos de solteirona meticulosa no final do gramado, não perto demais do sr. Carmichael, mas o suficiente para ter sua proteção. Sim, devia ter sido exatamente aqui onde ficou dez anos atrás. Havia a fachada, a sebe, a árvore. A questão era alguma relação entre aqueles volumes. Esteve com isso na cabeça durante esses anos todos. Era como se tivesse chegado à solução: agora sabia o que queria fazer.

Mas com a presença do sr. Ramsay ali por perto, não conseguia fazer nada. A cada vez que ele se aproximava – estava andando de cá para lá no terraço – aproximava-se a ruína, aproximava-se o caos. Não conseguia pintar. Curvou-se, virou-se; pegou um trapo, espremeu um tubo. Mas o máximo que conseguiu foi evitá-lo por um instante. Ele lhe tornava impossível fazer qualquer coisa. Pois se ela lhe desse a menor ocasião, se ele a visse desocupada por um instante, se o olhasse por um instante, ele viria dizendo como tinha dito na noite anterior: "Vê que mudamos muito". Na noite anterior ele se levantara, parara diante dela e dissera aquilo. Por calados e imóveis que todos continuassem sentados, os seis filhos que eles costumavam chamar pelos nomes dos reis e rainhas da Inglaterra – o Ruivo, a Bela, a Malvada, o Impiedoso –, ela sentiu como ferviam por dentro. A boa e velha sra. Beckwith disse algo ponderado. Mas era uma casa cheia de paixões desencontradas – sentira isso durante todo o serão. E para coroar aquele caos o sr. Ramsay se levantou, apertou-lhe a mão e disse "Verá que mudamos muito", e nenhum deles tinha se mexido nem falado nada; mas continuaram sentados como se fossem obrigados a deixá-lo dizer aquilo. Apenas James (certamente o Emburrado) lançou um olhar carrancudo à lâmpada e Cam enrolou o lenço no dedo. Então ele lhes lembrou que iriam ao Farol no dia seguinte. Tinham de estar prontos, no vestíbulo, às sete e meia em ponto. Então com a mão na porta parou e se virou para eles. Não queriam ir?, perguntou. Se ousassem dizer Não (ele tinha alguma razão para querer ir), ele voltaria a se atirar tragicamente nas águas amargas do desespero. Tinha um enorme talento para fazer cenas. Parecia um rei no exílio. Com ar contrariado James disse sim. Cam gaguejou com ar mais infeliz. Sim, oh sim, ambos estariam prontos, disseram. E ela percebeu que isso era tragédia – não o luto, o pó, a mortalha; mas os filhos coagidos, o jugo do espírito. James estava com dezesseis anos, Cam com dezessete, talvez. Olhara em torno procurando alguém que não estava ali, a sra. Ramsay, provavelmente. Mas havia apenas a boa sra. Beckwith inspecionando seus desenhos à luz da lâmpada. Então, sentindo-se cansada, sua mente ainda subindo e descendo com o mar, o sabor e o cheiro que têm os lugares após uma longa ausência apoderando-se dela, as velas ondulando em seus olhos, ela se perdera e se rendera. Estava uma noite maravilhosa, toda estrelada; as ondas ressoavam enquanto subiam os degraus; a lua os surpreendeu, enorme, pálida, quando passaram pela janela da escada. Caíra imediatamente no sono.

Firmou a tela em branco no cavalete, como uma barreira, frágil mas, esperava, de solidez suficiente para manter o sr. Ramsay e suas exigências à distância. Empenhou-se, quando ele deu as costas, em olhar o quadro; aquela linha ali, aquele volume lá. Mas estava fora de questão. Mesmo estando a vinte metros de distância, mesmo que nem falasse com a pessoa, mesmo que nem a visse, ele permeava, prevalecia, impunha-se. Mudava tudo. Ela não conseguia ver a cor; não conseguia ver as linhas; mesmo estando ele de costas, ela só conseguia pensar, Mas daqui a pouco ele vai vir para cima de mim, exigindo – alguma coisa que sentia não ser capaz de lhe dar. Rejeitou um pincel; escolheu outro. Quando o casal de filhos ia chegar? Quando sairiam todos? e se mexia com nervosismo. Aquele homem, pensou com a raiva subindo dentro de si, nunca dava; aquele homem pegava. Ela, por outro lado, seria obrigada a dar. A sra. Ramsay havia dado. Dando, dando, dando, morrera – e deixara tudo isso. Na verdade estava zangada com a sra. Ramsay. Com o pincel tremendo ligeiramente entre os dedos, olhou a sebe, o degrau, a parede da fachada. Era tudo coisa da sra. Ramsay. Tinha morrido. Aqui estava Lily, aos quarenta e quatro anos de idade, perdendo tempo, incapaz de fazer qualquer coisa, parada ali, brincando de pintar, brincando com a única coisa com a qual não se brincava, e era tudo culpa da sra. Ramsay. Tinha morrido. O degrau onde costumava se sentar estava vazio. Tinha morrido.

Mas por que repetir isso sem parar? Por que estar sempre tentando trazer à tona um sentimento que não tivera? Havia algo de blasfemo nisso. Tudo estava seco: tudo fanado: tudo apagado. Não deviam tê-la convidado; não devia ter vindo. Não se pode ficar perdendo tempo aos quarenta e quatro anos, pensou. Odiava brincar de pintar. Um pincel, a única coisa confiável num mundo de discórdia, de ruína, de caos – com isso não se devia brincar, nem de brincadeira: detestava isso. Mas ele a obrigava. Você não tocará em sua tela, parecia dizer impondo-se a ela, enquanto não me der o que quero de você. Aqui estava ele, de novo perto dela, ávido, distraído. Bem, pensou Lily em desespero, largando a mão direita ao lado, então seria mais simples acabar logo com isso. Decerto conseguiria imitar de memória o brilho, o arrebatamento, a rendição que tinha visto em tantos rostos femininos (no da sra. Ramsay, por exemplo), quando em alguma ocasião como esta eles se iluminavam – podia lembrar o ar no rosto da sra. Ramsay – num arroubo de compaixão, de prazer pela recompensa que tinham, a qual, embora não entendesse a razão disso, evidentemente lhes proporcionava o mais supremo êxtase de que a natureza humana era capaz. Aqui estava ele, parado a seu lado. Ela lhe daria o que pudesse.

Ao Farol (1927)Onde histórias criam vida. Descubra agora