4. Miguel

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Tento dormir, mas meu coração bate forte demais. Corro para a varanda, e observo as luzes acesas da casa de Júlia. Avancei hoje mais do que em todos os últimos anos. Finalmente, consegui ter uma conversa normal com a Júlia, sem parecer um idiota, sem parecer um galinha... Mesmo assim, quando eu ia fechar essa noite com chave de ouro, tive que recuar.

Eu não ia deixar a Júlia se despedir de mim daquele jeito, meu plano era dar um beijo nela, pelo menos um. Claro que eu não ia me convidar para entrar, eu não queria assustar a Júlia, mas assim que eu a puxei para mim, eu percebi que ela já estava assustada. É a minha maldita fama, eu sei. Minha fama aqui em Aroeiras é péssima.

Mas, a verdade é que eu já não faço jus a essa fama. Há um bom tempo. E, depois que a pandemia chegou, eu me fechei totalmente. Isso que eu fiz hoje, experimentar o ketchup que estava ali na boca dela... Talvez tenha sido o ato mais íntimo desde março. Valeu a pena, penso, com um sorriso bobo, lembrando da cara que ela fez, do jeito que seu peito subiu e desceu, aceleradamente. Pode parecer uma besteira, mas na verdade quer dizer muita coisa. Quer dizer, obviamente: não tenho nojo do que está na sua boca. Essa é uma conclusão óbvia para qualquer pessoa. Mesmo assim, em tempos de pandemia, é algo considerável.

Na verdade, eu não estava pensando em vírus ou qualquer coisa assim. Eu estava pensando na boca dela. Avermelhada e deliciosa, com gosto de ketchup. Eu lamberia qualquer coisa daquela boca, eu só queria encostar nela, chupar seus lábios, saber como seria passar a língua ali... Queria ter limpado aquele ketchup com a minha língua. Depois...

Melhor não pensar no depois. O depois ainda não chegou. Mas vai chegar. Estou indo com calma. O problema dessa fama idiota é que garotas como a Júlia fogem de mim o tempo todo. Não me dão nem uma mísera chance. Não posso deixar isso acontecer dessa vez. Não quero assustá-la e já garanti um encontro na quinta-feira. Penso se eu deveria mandar algo. Abro meu whatsapp e vejo que ela está online... Mas logo me lembro que ela não aceitou muito bem que eu estava chamando ela pra um encontro. Prefere me tratar como um vizinho.

Por um momento, me pergunto por quê. Será que ela tem alguém? Abro o Instagram do restaurante pra dar uma stalkeada na Júlia. Eu não tenho um perfil pessoal e confesso que não tenho muita paciência pra isso... Quem administra minhas redes sociais é a minha prima, mas eu tenho a senha, caso alguém tenha alguma dúvida sobre o delivery.

Logo acho a Júlia, é claro que eu já sigo o perfil dela. Não é a primeira vez que eu faço isso. Estou parecendo um pouco intenso, mas quem eu quero enganar? Eu sou intenso quando o assunto é essa garota. Desde que eu a vi naquela aula no seu primeiro dia de faculdade, senti uma coisa estranha. A princípio, fiquei com medo de me aproximar dela... Seus olhos cheios de lágrimas voltavam na minha cabeça o tempo todo. Eu nem conhecia essa menina e já tinha magoado ela... É claro que magoei outras meninas antes dela, mas... Sei lá, eu não queria que ela chorasse por minha causa.

Na época, eu era um fanfarrão. Estava no auge e não ia sair tão cedo. Eu sabia que eu não podia nem chegar perto de uma garota como aquela. Não por ela, mas por mim. Eu não estava pronto, ela não era uma foda de uma noite. Às vezes, ela passava pelo campus e eu a observava. Sempre gostei do jeito que ela se vestia, toda colorida, mochila, casaco e meias de cores diferentes que, no final, combinavam. Não sei como ela faz isso. Eu a via com as amigas, parecia sempre alegre, animada, falante. Ela sorria por qualquer coisa, até ouvindo música sozinha, deitada na grama. Eu gostava daquilo. Tinha vontade de me deitar do lado dela, mas nunca fiz isso. Até que o idiota do Hugo fez. Até hoje não sei se ele foi por conta própria ou se foi porque eu claramente tinha uma queda pela Júlia. Meus amigos já tinham percebido que eu ficava olhando pra ela e, quando ela passava, a chamavam de "garota do Braga". "Olha lá a garota do Braga", "sua Julinha passando, Braga", "prepara a cara de bobo, Braga". Eu ria daquilo, mas não negava. Eu deveria ter negado. Deveria muito.

Mas, enfim, não posso pensar assim. Júlia é uma mulher linda que chamou a atenção de vários caras naquele campus. Às vezes, o interesse do Hugo nela não tinha nada a ver comigo. Às vezes, ele tinha personalidade...

Só que ele não tinha.

Não tinha, ele queria tudo que era meu. Que inferno isso. Se eu falasse que ia pegar uma matéria de pastelaria, ele pegaria. Se eu falasse que queria fazer uma trilha, ele já tinha feito uma mais difícil. Se eu falasse que compraria uma moto, ele comprava uma antes. O cara me perseguia. Era um saco. E, aí, de repente, ele estava deitado na grama do lado da Júlia. E ficou lá por um ano. Todo o meu último ano na faculdade foi com o Hugo namorando a Júlia.

Sei que eu pareço muito egocêntrico falando que foi por minha causa que ele fez isso, mas eu via nos olhos dele... Ele beijava a Júlia na minha frente, parecia fazer questão. Ele pediu a Júlia em namoro no meu aniversário! Na comemoração do meu aniversário! E olha que eu nem tinha chamado esse cara!

Foda-se o Hugo.

Estou agora stalkeando o perfil da Júlia. Paisagens, fotos de receitas, ela e as amigas. Sobremesas. No restaurante, ela não serve muitas sobremesas, mas o perfil tem vários bolos que ela gosta de fazer. Sei que ela manda bolos para as amigas e parentes que estão fazendo aniversário nessa pandemia, sem poder comemorar com ninguém. São lindos e coloridos, como ela. Tem um vídeo dela deitada na rede, lendo um livro. Tento ver o título, mas não consigo, ela balança rápido na rede da varanda e a vista é bonita. Por esse vídeo, vejo o trajeto que eu faço de volta da minha corrida.

Faço questão de gritar pra ela, gosto de ver como fica toda encabulada como se as vizinhas fossem julgá-la por estar saindo comigo. É bom ela ir se acostumando. Eu vou sair com ela e o condomínio inteiro vai ficar sabendo. Queria entrar na casa dela bem na hora em que a Dona Janete está jantando. Ela veria pela janela, não ia ter como... Só que nossos horários nos restaurantes não permitem um jantar às 20h. Mas posso sair da casa dela bem tarde, bem tarde mesmo, ou talvez de manhã. Esse é o meu plano pra quinta-feira. Vamos ser a fofoca desse condomínio.

É um condomínio pequeno, não tem mais de dez casas. Eu me apaixonei por esse lugar assim que visitei essa casa. As casas brancas com portas e janelas azuis não são grandes. No térreo, tem uma sala modesta e uma cozinha aberta para a sala. Como eu gosto de cozinhar, esse detalhe me ganhou. No segundo andar, tem dois quartos, sendo que o principal dá para uma varandinha. É onde a Júlia toma seu café da manhã. Cada casinha tem uma árvore na frente. Eu não entendo nada de plantas, mas a árvore da Júlia dá flores rosas e a minha dá flores amarelas.

O que eu mais gostei – tirando que a Júlia mora aqui – foi da proximidade com o lago. Gosto de correr toda a manhã e, às vezes, ainda passo para tomar café da manhã na casa de um amigo que mora aqui do lado. O condomínio não é longe do campus e, por isso, é perto dos nossos restaurantes.

No Instagram, paro diante de uma foto da Júlia sentada numa toalha na beira do lago. O cabelo está preso em um rabo de cavalo, ela usa short jeans, uma camisa aberta com o biquini por baixo e um chapeuzinho colorido. Ela adora esses chapeuzinhos.

Quero dar um zoom para ver mais detalhes, mas tenho medo de acidentalmente curtir a foto e parecer o stalker louco que eu sou. Essa foto é antiga, acho que ela não posta tanto assim e eu reconheço essa casa logo atrás. É a casa do Hugo. Ela está em frente à casa dele. Há quantos anos foi isso? Há cinco ou seis...

Merda. Merda. Merda.

Curti a foto. Eu sabia que eu ia fazer isso, com esses dedos enormes. Não sirvo para botões pequenos e coisas sutis.

Dá pra descurtir ou fica estranho?

Decido que fica pior ainda. A luz dela está acesa, então ela está acordada, o que significa que ela recebeu uma notificação...

Que merda. Ela já estava assustada, agora, então, vai me achar um maluco. Enfim, que se dane, amanhã conserto isso. Às vezes, eu gostaria de ser um cara mais delicado.

Por que sou esse ogro idiota?

***

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Café, milho e... Miguel | DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora