Contos de Uma Audaciosa

Amizade

Me lembro de respirar fundo e sentir o cheiro de algo fresco. Me espreguiçar e sentir algo quente no meu rosto, passei a mão ainda sonolenta e parecia um tipo de energia. O Sol. Aos poucos recobrei meus sentidos e então ouvi pássaros cantando e o farfalhar das asas de um inseto, bem perto de mim. Foi tudo um sonho. Eu nunca saí da Amizade.

Abri os olhos lentamente e eu estava no meu quarto, sorri ao ver o apanhador de sonhos pendurado no espelho da cômoda, alguns artesanatos feitos por mim mesma na parede. Está tudo bem Melody. Me levantei feliz e mexi no cabelo que parecia estar bem embaraçado, eu precisava de um banho. Peguei minha toalha e passei na frente do espelho. Espere. Voltei lentamente com medo do reflexo que eu vi rapidamente, mas foi inegável. Eu ainda estava usando as roupas da Audácia. Não foi um sonho. Eles mataram Zacky. Senti um frio subir dos meus pés até minha nuca juntamente com um tremor, eu estava muito encrencada, passei a noite na Amizade e isso ia me custar algo, talvez eu não devesse voltar. Seria uma sem facção de qualquer jeito.

- Mel? - A voz da minha mãe soou no corredor e logo após três batidas calmas na porta do quarto.

- Entre. - A imagem no espelho me trazia terror. As roupas que eu vestia me traziam terror.

- Como passou a noite?

- Bem... - Senti suas mãos tocarem meu rosto e meus olhos foram atraídos pelos dela. Sorri. - Não sei o que me deram, mas me derrubou.

- Que bom... Ainda é bem cedo.

- Cedo quanto?

- Seis horas, o primeiro trem acabou de passar... Se apronte, você precisa se alimentar.

Minha mãe saiu do quarto me deixando sozinha por alguns segundos com o meu reflexo, mas eu o evitei o máximo que pude. Hoje era dia de descanso para os iniciados, nada começaria antes do horário do café, eu poderia chegar a tempo. Após o banho, encontrei sobre minha cama, algumas peças de roupa da Amizades, minhas antigas roupas, uma saia longa vermelha e uma blusinha amarela, com minhas sandálias rasteiras de couro velho, tudo cheirava tão fresco e aconchegante.

Me sentei na cadeira em frente ao espelho, eu não parecia a mesma pessoa que entrou no banheiro naquela manhã. Desde que fui para a Audácia, aprendi a usar maquiagem e por causa das noites mal dormidas eu estava abusando um pouco de certos artifícios para parecer normal. Sem lápis nos olhos, eles pareciam mais suaves e jovens, meus cabelos caiam ondulados pelos meus ombros e tocavam minhas costas tampando a tatuagem que eu havia feito, uma árvore, simbolizando a amizade, em chamas. Para ter certeza de que aquilo realmente havia acontecido chequei o desenho em minhas costas, que estava intacto. Eu sou da Audácia.

Penteei meus cabelos e me levantei, olhei para as roupas que eu cheguei e as roupas que minha mãe, provavelmente, havia colocado em cima da cama, e naquele momento me senti como se tivesse que escolher de novo. Amizade ou Audácia? Audácia. Eu já havia me escolhido. Troquei as roupas intimas e coloquei de novo o manto preto. Calças apertadas, blusinhas e jaqueta pretas, sapato preto, cabelo jogado de lado, mostrando certa ousadia, lápis nos olhos os dando um pouco mais de vida. Eu não era mais a Melody, eu era  Hippie. Tinha que voltar o mais rápido possível, a vida na Audácia começava as nove horas, se eu saísse rápido poderia entrar sem ser percebida.

- O trem de suprimentos tem sido vigiado, alguns sem facção andam roubando roupas e comida, temo que você não poderá ir por ele. - Jonathan disse enquanto me despedia.

- Eu posso levar você até o muro, mas você vai precisar se trocar. - Kleiton falou.

O plano era eu ir como alguém da Amizade até a cidade, com o caminhão e então pegar o trem e me trocar lá dentro, entrar no complexo por onde eu entrei no dia da Cerimônia de Escolha, pelo buraco. E se eu cair? Eu não vou cair. Já fiz isso antes, a paisagem do medo não vai me vencer, eu sou da Audácia.