O Afeto

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Estava escuro, mas as luzes da cidade ainda acesas, isso significava que ainda não era meia noite, mesmo sem ter o sol brilhando eu me senti como se emergisse das águas pra luz. Luz onde eu vivi toda a minha vida e agora, por uma escolha, eu havia sido privada. A Lua estava firme e redonda acima de nós, estrelas brilhavam de forma fraca, mas não negavam sua presença.

- É a poluição. - Eric disse subindo na beira do prédio. - A poluição que impede de nós vermos as estrelas. E por isso também que é tão quente, ou tão frio.

- É sempre frio pra mim.

- É sempre frio lá embaixo. - Ele alternava seus pés rapidamente e balançava-os brincando com o equilíbrio.

- Eu sinto falta do sol.

- Antes da guerra não era assim, existiam quatro estações definidas na maior parte do mundo.

- Na amizade isso acontece.

- Mas é totalmente programado, programas da Erudição, se não fosse assim algumas árvores nunca floresceriam.

- Engoliu um almanaque? - Eu perguntei ainda olhando pra o céu.

- Era uma das poucas coisas que eu gostava de ler, eu queria saber como tudo era antes da guerra, e porque não é mais.

- As vezes eu esqueço que você veio da Erudição. - Eu disse enquanto me aproximava dele.

- Eu também.

Ficamos em silencio por alguns segundos enquanto ele ainda brincava no telhado, a lua o iluminava parcialmente revelando mais uma vez o lado misterioso que ele tinha. Um frio tomava meu estomago cada vez que sua perna direita balançava pra fora no prédio antes de se firmar num passo novo.

- Vem. - Ele me deu a mão.

Eu subi na beirada, e senti uma brisa leve tocar meu rosto, meus cabelos balançavam sutilmente, então fechei meus olhos em busca de um cheiro que me lembrasse a Amizade, mas no meio da cidade, era quase impossível. De repente uma tristeza se apoderou de mim, com os olhos fechados eu vi o campo, o pomar, a horta, a estufa. Me lembrei de estar com Alice, Margareth, Bill e Kleiton comendo frutas quando de repente o sistema de irrigação começava a funcionar, nos forçando a sair correndo e molhados pela plantação. A grama fresca sob meus pés, os pássaros cantando de manhã, um nó se forma na minha garganta e sai como um soluço e então abro os olhos sentindo uma lágrima solitária correr pelo meu rosto.

- Dizem que a Amizade é que mais próximo temos do que o mundo parecia antes. Sabe... A natureza e tudo o que tinha por aqui. - Eric disse - Saudade de casa né? - Eu somente assenti.

- Ler mentes é algo que vocês aprendem na Erudição?

- Não, eu só... Sou bom em saber o que as pessoas pensam. Livros de expressão corporal. Vem, vamos ver quem chega primeiro na ponta do último telhado do quarteirão.

- Essa é uma proposta que um Audacioso faria. - Eu disse tentando me recompor do meu breve desequilíbrio.

- E nós somos o que? Caretas?

O vento soprou um pouco mais forte e meus cabelos foram jogados pra trás de meus ombros. Audácia. Ecoou pelos meus ouvidos, como se o vento sussurrasse pra mim e então eu me impulsionei e comecei a correr pela beirada.

- Me alcance se puder. - Eu disse pra ele. Eric era forte, mas eu era mais rápida.

Corria pela beira, era imprudente, mas ao mesmo tempo fazia eu me sentir mais estável e veloz, talvez a Audácia tivesse feito isso comigo, eu não olhava pra baixo, somente para frente, pulei o primeiro telhado e o impacto sob os meus pés me vez vacilar e pender para o lado esquerdo, cai no telhado e Eric me passou. Me levantei o mais rápido que pude e continuei correndo, eu não podia perder. Vamos Hippie. Sorri quando percebi que me referi a mim mesma como Hippie e inclinei meu tronco pra frente. Sabia que assim eu correria mais rápido.

Contos de Uma AudaciosaOnde histórias criam vida. Descubra agora