Uma nova vida

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"Take me home"

— Caleb, solta a minha filha! — protesta Miranda, puxando o braço esquerdo de Flora para ela.
      — A filha também é minha. Você está sendo uma egoísta! — acusou Caleb, revoltado, puxando o braço direito de Flora para ele.
      — Eu sendo uma egoísta? — pergunta Miranda, perplexa. — Você não me deixa um só minuto com elas que as puxa para você.
      — Eu não posso fazer nada se eu sou o preferido delas.
      Essa é a segunda briga dos dois em três semanas.
      Enquanto Caleb e Miranda brigam pela atenção de Flora, eu e Kiara comemos bolo de cenoura com cobertura extra de chocolate, na mesa da enorme cozinha de Caleb. Até hoje não me acostumarei em entrar nesse lugar, cabe umas duas casas aqui, tirando o fato que tudo aos arredores é bem limpo e caro — quando digo caro, quero dizer bem caro mesmo. Há pratos feitos de ouro puro, talheres rodeados de diamantes e temperos tão exóticos que não são facilmente encontrados. Caleb possui três fornos de lenha, onde testa receitas. Além da minha mãe, que ajuda o cozinheiro, mais três serviçais trabalham com eles.
      Quando conheci Caleb, pensei que ele fosse calmo. De certa forma, ele possui uma tranquilidade invejável, mas se derrubar farinha na mesa que ele acabou de limpar ou enfiar o dedo em uma de suas massas moles para experimentar, pode ter certeza que o cozinheiro vira um guerreiro renomado e pronto para destroçar alguém.
      — Quem você acha que vence? — perguntou Zenny.
      Analiso a situação, enquanto enfio mais uma colher de bolo na boca.
      — Miranda — concluí. — Mas Caleb possui belos argumentos.
      — Eu fiz bolo de cenoura com calda extra de chocolate. Não tenho culpa que Flora prefere comer o bolo do que pousar como um manequim para você — diz Caleb, convencido.
      — Realmente, Caleb possui belos argumentos — concordou Zenny.
      Faz um mês que Miranda quer fazer um vestido novo para Flora. O mês antes desse, foi outra batalha para a própria mãe ter a atenção de Kiara para fazer um macacão de ferreiro para ela. Depois de muita luta, conseguiu — agora Kiara está livre para comer bolo e ver a irmã gêmea dela quase ser partida ao meio de tanto que Caleb e Miranda a puxam de um lado para o outro.
      O atelier de Miranda fica no centro da Cidade Flamejante, e Caleb sabe que se a irmã de Oliver levar a menina, só irá trazer de volta uma semana depois — Caleb teve que caçar Kiara depois que Miranda a levou para o atelier dela.
      A irmã de Oliver é linda. Admiro-me todos os dias com sua beleza.
      A pele negra é bem lisa, sem nenhum esporro ou cravo, simplesmente macia e cheirosa (quando a abracei pela primeira vez, queria ficar tocando em sua pele por mais tempo. Quase cai para trás com os produtos caros que ela compra, coisas que eu trabalharia uma vida para ter dinheiro o suficiente para comprar). O cabelo crespo preto de Miranda possui um belo volume em sua cabeça. A boca carnuda sempre possui um batom diferente, poucas vezes a vejo sem maquiagem.
      Miranda é uma mulher de negócios, precisa estar pronta para sair e se encontrar com a alta sociedade em segundos. Então a forma mais fácil de poupar o seu tempo é sempre está arrumada para ser coroada como rainha.
      Miranda possui o estilo próprio — isso por ela mesmo ser a estilista bem mais renomada do Reino do Fogo, possuindo a própria marca de roupa. Hoje ela decidiu usar calças pretas colada ao corpo, marcando bem suas volumosas pernas, junto com uma blusa solta vermelha que ia até suas coxas: a blusa é repicada embaixo e com furos propositais por outras partes como se o fogo tivesse o queimado. Além disso, ela usa um grande salto agulha, que a deixa mais alta do que já é. Admiro-me por conseguir andar com o sapato, ainda sem tropeçar em nenhum lugar.
      A mulher anda por todos os lados de cabeça erguida e lançando dominância sem ao menos piscar, como se desfilasse sempre em uma passarela de moda. E, quando Miranda passa, é impossível não a admirar.
      Minhas roupas, assim como da minha família, são tudo da marca de Miranda. Assim que ela nos viu pela primeira vez, as caras abaladas e fragilizados com tudo que tinha acontecido recentemente, veio logo com uma fita métrica, nos medindo para pedir que seus funcionários fizessem as melhores roupas para nós. Cada peça custa uma fortuna, quase não acreditei quando vi os preços — nenhuma peça custa menos do que 50 moedas de ouro. Eu protestei dizendo que não tinha um centavo, mas ela disse que não queria ver a cor do nosso dinheiro, e todas as roupas seriam por conta dela mesmo, basta pedirmos a qualquer momento ou ir direto em suas lojas espalhadas pelo reino.
      — Dane-se o seu bolo de cenoura — protestou Miranda. — Quem pariu as meninas fui eu.
      — Miranda também possui belos argumentos — admitiu Zenny.
      — Miranda, seu argumento não é válido — reprovou Caleb.
      — Desde quando?
      — Desde que você apenas usa esse para ganhar algo.
      — Eu posso...
      — Não! — disse Caleb e Miranda em uníssono, interrompendo Flora.
      — Deixe-me me arrumar que vou com vocês para o atelier — pediu Caleb. — Me dê alguns minutos.
      Os cabelos loiros de Caleb estão repletos de farinha. O avental está sujo com calda de chocolate por ele ter acabado de fazer o bolo.
      — Eu não preciso de babá com a minha filha — disse Miranda.
      Caleb e Miranda voltaram a se alfinetarem, dando seus argumentos.
      A porta da cozinha é aberta. Ravi entra no ambiente, já olhando a discussão e analisando-a se precisa tirar as grandes unhas bem feita de Miranda do pescoço de Caleb ou um rolo de amassar massa das mãos do marido de Oliver.
      — Estão comendo bolo antes do treino? — perguntou o guerreiro, cruzando os braços.
      Parei minha colher cheia de bolo no ar antes de levá-la à boca.
      Ravi e eu sempre treinamos depois do café da manhã. Acordei com os gritos de Caleb e Miranda, então me acomodei na mesa da cozinha. Olhei para o bolo saboroso — ele parecia me chamar —, então, induzido com a sobremesa deliciosa, acabei me servindo um pedaço de bolo.
      — Esse é o nosso terceiro pedaço — comentou Zenny.
      — Seu guloso — reclamo, comendo mais.
      Zenny e eu possuímos uma fome sem fim. Não gostamos de doce, preferimos mil vezes comer algo salgado, principalmente carne. Depois eu caço algo, estou com preguiça agora, então me contento com bolo.
      Kiara acordou um tempo depois e, como eu sabia que Ravi iria brigar, a incentivei a comer também — hoje Kiara treina com a gente. Kaio ainda não acordou, mas ele também participa dos treinos. Não ouso em ir acordá-lo. Meu irmão possui pesadelos quase todas as noites como se ainda estivesse no Lixão feito de refém. Seus gritos de desespero é de parti o coração.
      — Quer um pedaço? — ofereci a Ravi.
      O místico revirou os olhos.
      — Quero! — respondeu ele, rendido.
      Ravi veio e cortou um pedaço de bolo para ele, o colocando inteiro na boca em apenas uma mordida.
      — Ravi é mais guloso do que eu — disse Zenny, me fazendo comer mais um pedaço de bolo, ainda lambi os lábios sujos de chocolate.
      — Vamos logo — falou Ravi com a boca cheia, ocasionando risos em Kiara por saber que o tio não possui medo da morte, já que Caleb odeia que falem de boca cheia, pois é falta de educação, e Kiara aprende rápido as faltas de educação. — Oliver daqui a pouco chega. Já Miguel, só mais tarde.
      Assenti com a cabeça, já me levantando da mesa.
      Eu e Kiara saímos da cozinha, deixando Caleb e Miranda quase se matando. Duvido que tenham percebido que não estamos mais com eles.
      — Tio Ravi — chamou Kiara. — Eu posso aprender a usar uma espada? Ficar só chutando o ar é chato.
      — Oliver disse que você só irá aprender a lutar com espadas aos 12 anos — Ravi a lembrou.
      — Poxa... — Kiara fez uma cara de chateada, abaixando o olhar e fazendo biquinho, porque sabe que ninguém resiste as suas artimanhas de criança fofa triste.
      Kiara já me usou de cobaia em uma de suas invenções apenas por pedi educadamente e com um sorriso no rosto. Sorte que meu poder é o fogo, senão hoje em dia estaria morto. A máquina de deixar a pele bronzeada explodiu, e eu seria churrasquinho. Kiara, inocentemente, apenas disse depois que eu sai vivo:
      — Ops...!?
      E ainda teve a audácia de dizer logo em seguida:
      — Eu tenho mais duas para testar. Pelo menos eu sei que você possui chance de sobreviver.
      Assim que Kiara me deu as costas, virei Zenny e bati asas no céu para longe dela.
      Ravi lutou com todas as forças contra a carinha de Kiara, mas perdeu nesse jogo de persuasão.
      — Mas como Oliver não está aqui, então corre lá para pegar aquela pequena que você fez escondido — disse Ravi.
      Kiara riu alegremente e saiu correndo para pegar a pequena espada que ela conseguiu fazer em sua pequena oficina montada para si, onde passa todo o seu tempo quando não está na escola.
      — Sua má influência — acusei Ravi.
      Ravi deu de ombros.
      — Você é meu cúmplice.
      Não posso discordar disso. Estou na luta para Kiara e Flora me chamarem de tio também. Falei que não queria que ninguém as pressionassem para isso, que eu mesmo conseguiria o meu título por honra. Hoje sou cúmplice de Ravi para ser um tio legal e divertido, e não um chato e organizado como Miguel — isso de acordo com Kiara. Flora diz que Miguel é um príncipe encantado, e que ele é incrível, calmo e cuidadoso.
      Ravi, Oliver e Miguel lutam pelo título de tio com Kaio. Meu irmão nunca chamou ninguém de tio, e eles acham que se ele perceber que Kiara e Flora os chamam assim, Kaio pega costume os chamam também.
      Apostamos quem consegue primeiro o título? Com toda certeza.
      — Vamos vencer — disse Zenny, determinado.
      — Essa aposta já está ganha — disse, confiante.
      Quem ganhar, poder pedir o que quiser, e os outros não podem negar. Em minha cabeça, já se passa vários micos que posso pedir que eles paguem.
      Andamos por um tempinho até a arena de treinamento, um espaço grande ao ar livre, com várias espadas em mesas e armários. O gramado com marcação sinaliza o local de luta. Sacos grossos de areia pendurados em duas pilastras, balançando no meio como um balanço, servem para bater o quanto quiser. Pesos de ferros estão espalhados pelos lugares, bons para exercitar os braços. 
      Eu e Ravi nos alongamos antes de irmos para a luta corpo a corpo.
      Quando estava em Odrianna, dois dias depois da batalha, Oliver disse que ficaríamos na simples casa de campo deles. Mesmo não querendo, falei que poderia ficar em Odrianna e tentar recomeçar, e poderia visitá-los, mas recebi uma palestra de como eu nesse sentido não tinha opinião, e que não deixariam um amigo para trás, e me arrastariam a força se eu negasse de novo. Como eu não queria ser preso por correntes e jogado em um portal até aqui, aceitei a oferta de boa-fé. Quando Oliver me mostrou a simples casa de campo, quase fiquei sem acreditar.
      A simples casa de campo deles é uma grande mansão luxuosa em um terreno maior ainda, no Reino do Fogo. A mansão por dentro é repleta com detalhes em ouro, principalmente no teto e em algumas pilastras, além de molduras de quadro que possui pinturas de todos, a maioria feitas por Flora.
      As paredes do lado de fora possuem vigas floridas a rodeando, além de um jardim magnífico na frente da casa, onde vários jardineiros trabalham todos os dias para deixar tudo bem vívido e organizado, para a felicidade de Flora, que ama levar seus pincéis e tela em branco para pintar as rosas, junto com seu professor de pintura que a ensina técnicas profissionais.
      A enorme escadaria leva para a porta da frente, com a maçaneta feita de ouro. O hall de entrada é bem espaçoso, e a frente dele possui mais uma escadaria enorme que leva para o andar de cima, onde fica os quartos de todos. No andar de baixo, há diversos cômodos: cozinha, sala de jantar, sala de descanso, sala de visita, banheiros, escritórios e muitos outros. O melhor lugar da mansão é a sala de jogos, onde eu e meus amigos firmamos amizade e quase nos matamos por nos estressarmos por perder em algo. Descobri que sou bom na sinuca.
      Esse lugar foi comprado para Miguel, por Ethan — um presente ao filho —, quando descobriu que a realeza afetava seu filho e o queria longe das políticas reais. Miguel nunca deixou o palácio para morar na casa de campo, então o presente do rei ficou de lado. Com a morte de Ethan, Miguel viu do que o pai queria o proteger, e para não surtar por completo, fazia questão de voar por horas até a mansão. Ao descobrir que tudo era muito silencioso demais, ele chamou Ravi e Oliver para morar com ele.
      Com um tempo, fizeram da casa de campo em seu mundo particular, onde não há parlamento e nem políticas reais que os afetassem. Por isso que a mansão é tão grande, porque cada um fez desse lugar a sua verdadeira casa: o primeiro atelier de Miranda foi aqui, e até hoje ela usa o lugar para ter expiração. Amélia quis uma Ala-médica, então foi montada uma para ela, mas trabalha no maior hospital do reino, curando aqueles que precisam de ajuda. Ravi quis a sala de jogos. Miguel pediu uma enorme piscina e uma sauna, onde muitas vezes nós quatro vamos para conversar por horas. Oliver ama cavalgar, então pediu um estábulo de cavalos, os quais são tratados pelos melhores especialistas. Ainda há uma sala de feitiços para Helena, na época que ela morava aqui, e mesmo que agora só venha nos visitar, a sala continua intacta, porque esse lugar também é o seu refúgio de suas obrigações.
      Já pediriam para mim e minha família pedirmos algo que quiséssemos, mas tudo que já tem aqui é mais do que um dia sonhamos em frequentar. E o que eu mais amo não se pode ter em uma propriedade, apenas.
      Amo a floresta.
      A floresta de cascalhos rodeia essa propriedade, tornando o lugar escondido no meio da mata. Alguns funcionários possuem moradias aqui, outros seres da natureza moram na floresta próximo do lugar. Amo poder apenas deixar o fogo de transfiguração me queimar e me levar para a carne de Zenny, bater asas e ir para a floresta. Estar ao ar livre, voar junto aos pássaros, não possui preço.
      — Se esquiva! — pede Ravi, assim que me vem acertar um soco, o qual desvio antes de me acertar.
      — Não precisa mais pedir para me esquivar — falei.
      — Costume.
      Até pouco tempo, Ravi precisava me orientar para eu me defender. Com a prática, peguei o ritmo e luto tão bem que consigo me manter em uma luta com ele — com Oliver e Miguel também.
      No meu primeiro treino com Ravi, o místico rasgou a minha pele. Era para ser um ensinamento e engraçado me zoar de sem sentidos defensivos, mas quando sangrei, ninguém riu.
      Não sangrei apenas com a cor vermelha. Meu sangue agora possui o vermelho misturado com dourado, um sangue curioso e diferente. Helena foi chamada para nos orientar como é possível, mas ela disse não faz ideia do motivo eu sangrar assim. Amélia me analisou, e meu sangue, mesmo com o dourado, é apenas sangue.
      Não é segredo para ninguém que sou uma nova criação de Foog, então isso possui algo relacionado por eu ser o filho declarado da Deusa do Fogo. Minha mãe deusa não falou comigo mais nenhuma vez, mas a sinto todas as manhãs me dando bom-dia pelos raios solares, vigiando-me no silêncio do calor.
      Sou um místico puro, não tenho mais nada de humano. Zenny e eu nunca estivemos mais estabilizados como agora.
      Ravi e eu treinamos por bastante tempo.
      Em quatro meses ganhei mais músculos do que ganharia em um ano, se fosse humano. Se eu usar as roupas de Ravi, não ficarão folgadas, nem as de Miguel. Ganhei um belo abdômen e bíceps bem definidos. Não sei como consegui isso. Claro, eu treino todos os dias, mas eu como mais do que comia antes. Quando estou na pele de Zenny, comemos dois cervos, no mínimo, e quando estou na pele mística, como quase dois pratos cheios, e senão tiver carne, então não faço muita questão de almoçar ou jantar. Não tenha um dia que não coma carne. É igual um animal selvagem não ter sua principal fonte de alimento. Caleb já sabe como eu gosto da minha carne — mal passada, o sangue ainda escorrendo da pele.
      Umidifico os lábios com minha língua, querendo comer carne, necessitando disso, desejando beber sangue quente. 
      — Pare de pensar em comida! — protesta Zenny. — Está me deixando com fome.
      Uma carne agora bem que seria bom. Não me importo que ainda seja de manhã. Não há hora para comer carne.
      — Tio Ravi — chama Kiara, ofegante. A menina correu até aqui. — Eu não achei a espada. Acho que a perdi.
      Isso explica a demora dela. Eu e Ravi até terminamos de treinar.
      — Daqui a pouco eu preciso sair. Você quer treinar um pouco os chutes no ar? — perguntou Ravi.
      — Pode ser — disse Kiara, desanimada.
      Ravi olhou para mim e sorriu discretamente. Ele escondeu a espada. Se tem algo que admiro em Ravi, é a forma como ele consegue driblar as pessoas. Ganha o título de tio preferido e ainda não corre o risco de Oliver o matar se soubesse que ensina Kiara a lutar de espadas.
      Enquanto Ravi ensina Kiara a chutar mais alto e socar o vento, eu me sento na grama perto da arena de luta, os observando e com os pensamentos longe.
      Não saí muito dessas propriedades desde que cheguei aqui. Miguel não me proíbe de ir ao castelo, mas também não me chama para acompanhá-lo, apenas Ravi e Oliver o acompanha na maioria do tempo. Ultimamente, Miguel e Oliver são mais convidados para reuniões. Ravi foi expulso pelo conselho porque socou um dos alfas que, de acordo com ele, estava falando o que não sabia. Como Miguel precisava manter a pose de príncipe educado e Oliver é mais calmo do que o amigo estressado, então Ravi mesmo fez um favor a todos no conselho calando um deles. Por isso, Ravi treina comigo — ele não pode participar de reuniões.
      Miguel levou a coroa para o castelo, e agora possui a aprovação da Anciã para ser rei. O herdeiro do trono convoca reuniões quase todos os dias — quer falar com todos os alfas desse território, saber quem é confiável e quem não é, porque agora o Príncipe do Fogo sabe que possui um irmão ou uma irmã. Quando contei a Miguel, ele ficou sem reação. Na verdade, ninguém acreditou quando falei. Miguel quer místicos leais que o ajude a encontrar o verdadeiro Rei do Fogo, por isso, as reuniões — apenas uma desculpa para estudá-los.
      Fiquei receoso em contar que Alasca matou Ethan para que Miguel não o matasse, mas eu não tinha motivos de esconder a verdade do meu amigo. Miguel ficou pensativo por dias, não queria diálogo com ninguém. Não sei o que se passava na cabeça dele, mas ele derrubou uma árvore por ter passado o dia todo apenas batendo no tronco. Miguel sentia raiva, tristeza, agonia e desespero.
      Não contei a ninguém sobre o meu último encontro com Alasca, ou que ela me presenteou com o coração de Ira. Não vi motivos para contar. De certa forma, senti que isso já não tinha mais a ver com Miguel ou com outras pessoas. Naquele momento, era apenas eu e ela. Não escondo segredos dos meus amigos, mas não quis revelar que estava no mesmo cômodo com Alasca e não movi um dedo para matá-la. Miguel gritando xingamentos com o nome da soldado, enquanto socava uma árvore e rosnando para quem respirava perto dele também não foi uma motivação para dizer.
      — Por que não me acordou para o treino? — perguntou Kaio, chateado.
      Olho para o lado e o vejo ainda com os olhos encolhidos de sono, os cabelos negros bagunçados e a roupa amarrotada, sinalizando que acabou de acordar.
      Kaio quer aprender a lutar para saber se defender. Ele disse que isso o ajudaria a não ter mais pesadelos, já que no sonho dele, poderia saber como se defender. Ele dorme no quarto junto com a minha mãe. Quando ele está muito assustado, apenas consegue dormir no meu quarto (Kaio sonha que logo depois da nossa avó morrer, eu acabo morrendo também, o deixando sozinho naquela praça).
      Hoje as crianças não possuem escola, por isso podem treinar comigo e com Ravi, mas amanhã de manhã terão aula em uma escola que ensina verdadeiros conteúdos, e não em uma tenda abafada como tinha no Lixão. Kaio não liga em repetir um ano, ele quer fazer as aulas junto com suas duas novas melhores amigas: Kiara e Flora, isso o motiva mais a se interessar nos estudos.
      — Pensei que gostaria de dormir mais um pouco — falei para ele.
      — Você precisa me acordar. Não pode me deixar dormir! — protestou.
      Levantei as mãos, me rendendo.
      — Erro meu! Na próxima, acordo você — menti.
      Não vou acordá-lo quando finalmente consegue dormir.
      — Por hoje, está bom — disse Ravi para Kiara.
      — Só mais um pouco — pediu Kiara, fazendo biquinho para Ravi ter pena dela.
      — Não posso me cansar. Hoje passarei a noite em claro.
      — Por quê? — perguntou Kaio, curioso.
      — Porque eu e o seu irmão, mais meus outros dois amigos vamos ver o pôr do sol.
      Revirei os olhos para Ravi. Não acredito que ele está usando essa desculpa esfarrapada.
      — Eu posso ver o pôr do sol também? — perguntou Kaio.
      Ravi se agachou na frente do meu irmão, colocando a mão no ombro dele e o encarando bem nos olhos.
      — Kaio, quando você for mais velho, o meu trabalho será te levar para ver o pôr do sol.
      Por sol, nem ferrando que Ravi fará isso.
      — Se Ravi estiver vivo até lá, aí talvez ele possua ainda a audácia de pensar em uma coisa dessas — o repreendo.
      Zenny e eu estamos muito, muito mesclados.
      Antes, o dragão apenas queria carne e morte em meio de tudo que passamos. Depois de quatro meses calmos, sem se preocupar que ainda estaríamos vivos no dia seguinte e satisfeitos que o Pecado Capital não é mais um problema, aí começamos a desenvolver outros instintos.
      O nosso olfato se desenvolveu melhor. Hoje em dia, consigo diferenciar cheiros, até de pessoas e místicos. Ravi possui um cheiro, nesse momento, de suado, mas quando está limpo, ele cheira a grama recém cortada. É bem agradável de inalar o seu cheiro. Kiara cheira frequentemente a fuligem, isso porque ela passa tempo demais na oficina dela, meu irmão também fica lá a ajudando, então muito da fuligem fica nele, mas há outro cheiro nele, principalmente quando possui pesadelos, como se eu sentisse o cheiro do medo dele.
      Zenny depois desenvolveu o instinto de marcar território. Odeio que entrem no meu quarto sem autorização, aquela é minha propriedade e não quero cheiro de ninguém lá dentro. Rosnei para Kaio quando ele entrou pela primeira vez lá sem me pedir, mas me acostumei em recebê-lo. Não deixo a porta aberta, mas com poucas batidas na porta, eu a abro sem demora.
      Em quatro meses que moro aqui, apenas comecei aproveitar tudo há um mês atrás. Os três primeiros meses foram difíceis para mim. Meus instintos estavam na flor da pele, e agia mais do que um animal selvagem. Ninguém conseguia ter uma conversa comigo. Já houve casos que passei uma semana inteira na carne de Zenny, na floresta.
      O que mais está nos incomodando, nesse momento, é que estou há muito tempo sem ficar com alguém. Zenny está agoniado querendo acasalar, isso o deixa estressado. Sinto-me envergonhado com pensamentos maliciosos que me preenche a mente no meio da noite, desejando alguém, levando a me tocar por baixo das cobertas. Nunca desejei ter uma pessoa comigo quando era humano, mas agora sou místico com instintos mais apurados do que a maioria dos outros.
      No mesmo momento que quero transar fortemente com alguém, outro quero ser abraçado e acolhido. Sinto falta de algo que nunca tive, e nunca entenderei esse sentimento confuso em mim.
      Não consigo ficar muito tempo perto de Amélia que seu cheiro de erva doce me atrai a querendo tomar para mim.
      Amélia e eu nos aproximamos muito nesse tempo. Dou desculpas esfarrapadas para ir visitá-la na Ala-médica, na cidade principal do Reino do Fogo, a Cidade Flamejante. Gosto de como ela ajuda as pessoas, sempre sorridente e simpática. Já tivemos nossos momentos a sós, mas nunca aconteceu nada — mesmo que eu quisesse que acontecesse.
      Não precisei contar aos meus amigos que estou na flor da pele, eles pareceram entender sem eu mesmo ter que falar alguma coisa. Admito que ainda estou me acostumando com isso, mas eles pediram que eu parasse de sentir vergonha disso, que todos eles já passaram pela mesma coisa, e ainda passam. Com isso, eles marcaram que hoje à noite vamos sair para nós diverti até o dia amanhecer. Oliver vai com a gente porque não vamos apenas beber e ficar com outras pessoas, decidimos fazer algo a mais, e de preferência sóbrios para não houver arrependimentos. Além disso, Oliver será o místico que impedirá Ravi de se casar com alguém e Miguel de ser cerimonialista, e eu não faço ideia o que seria. Dama de honra, talvez?
      Zenny está ansioso para hoje à noite, e eu admito que também estou.
      — Vão brincar — pede Ravi. — Prometo que o treino da semana que vem será bem mais cansativo. Arrumarei uma espada, e acordarei quem estiver dormindo.
      Kaio e Kiara concordaram com a cabeça e saíram correndo para dentro da mansão, indo procurar algo que os entretenham.
      — Miguel e Oliver vão passar o dia todo em reunião? — perguntei a Ravi.
      Ele assentiu.
      — Sim, amanhã eles ficarão em casa por talvez não acordarem tão sóbrios assim.
      — Não me disse para onde vamos.
      — Saberá mais tarde. Seu trabalho apenas será se arrumar e nada mais.
      — Odeio o seu suspense.
      — Não irá visitar Amélia hoje? — Ravi não me contará para onde vamos, então tenta mudar de assunto.
      — Não, ela disse que muitos doentes estão aparecendo na Ala-médica. — Levantei-me. — Vou para o meu trabalho.
      — Sabe que não precisa fazer isso — diz Ravi, cruzando os braços. — Temos empregados suficientes para esse trabalho.
      — Eu gosto dos cavalos, então cuidarei deles — falei. — E você, o que vai fazer?
      — Não posso ir ao castelo, então irei para a Cidade Flamejante. Preciso encomendar flechas novas.
      — Te vejo mais tarde, então — falei, já andando para os estábulos.
      — Não se atrase — disse Ravi antes de segui o rumo dele.
      Cuidar dos estábulos é uma forma de agradecer tudo que fazem, mesmo com protestos deles. Não posso viver em suas custas sem colaborar com algo. Agora que sei lutar bem, posso me inscrever para um teste para ser soldado do reino, com o salário, poderia comprar uma casa para mim e minha família. Não quero sair daqui, me sinto confortável, não é só por viver cercado com o luxo ou outras coisas, é que aqui posso vê-los frequentemente. Quase sempre passamos a noite na sala de jogos, ou entramos na sauna apenas para jogar conversa fora.
      Marta também odiou ter que ficar parada sem fazer nada. Miranda a contratou, então minha irmã passa bastante tempo no atelier fazendo cabelos das clientes importantes de Miranda. Lembro-me que minha irmã chegou toda orgulhosa de si mesma falando que ela fez o cabelo de uma duquesa importantíssima. Fico feliz que minha irmã pegou amizade com Miranda.
      Minha mãe fica muito tempo com Caleb, o ajudando na cozinha.
      Thomas e Mad não estão aqui, ambos foram visitar Maya, no castelo do Reino da Terra. Helena veio a pedido de Alan, o rei, dizendo que Maya precisava de algum amigo que a fizesse se sentir bem — então os dois se foram. A ninfa não melhora, apenas fica mais triste a cada dia que se passa. Helena nos contou que a ninfa alegre e disposta a ajudar as pessoas agora não existe mais — Maya parece estar morrendo a cada segundo que se passa. Não fui visitar Maya porque sei que a ninfa não gostaria de me ver. Nunca fomos muito próximos mesmo, isso porque eu e a irmã dela não somos muito amigáveis.
      Passo bastante tempo nos estábulos com os outros funcionários. Dei banho em três cavalos, e limpei o lugar que eles vivem. O trabalho é duro, mas, de certa forma, gosto de cuidar dos cavalos — é melhor do que catar lixo. Semana que vem, pararei de cuidar deles e tentarei ser soldado.
      Penso no que farei da minha vida amanhã, hoje à noite apenas quero me diverti.

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A Árvore da Vida - Parte 1 ( Volume 3)Onde histórias criam vida. Descubra agora