Esquelétros

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Um exército de mortos vivos


Ninguém mais se encontra dormindo, todos já estão armados e preparados para uma ameaça ainda não revelada.
      Maya e Lucca não disseram nada para correr, apenas ficam olhando para os lados, querendo saber o que está acontecendo. Fico mais preocupado ainda com isso: se nem Lucca e Maya fazem ideia do que está acontecendo, então a ameaça não é tão frequente de acontecer. Estamos cegos, no oculto do desafio.
      Um som de dentes se batendo uns nos outros é soado alto, como se alguém estivesse com frio e não consegue controlar a tremedeira.
      Silêncio.
      O silêncio é o pior momento depois que uma ameaça é ouvida. Os pelos da minha nuca se arrepiaram, a minha respiração é controlada, o meu punho direito aperta o cabo da espada. Estou atento.
      — Ahhh! — gritou Oliver assim que a terra em seus pés se abriu, o fazendo cair.
      Miguel e Ravi segurou em cada mão de Oliver e o puxava para cima. Fui até eles e tentei cavar do lado de Oliver, a terra que agora insiste se fechar. Quanto mais eu cavava, mas a terra se fechava, como se Oliver estivesse sendo engolido por areia movediça. Lucca veio ajudar a puxar Oliver para cima. Com a força do demônio, Oliver saiu de dentro da terra.
      Oliver olhou para nós, os olhos arregalados e o medo estampado em seu semblante. 
      — Você está bem? — perguntei.
      — Eu senti me puxando para baixo — disse ele, pasmo. — Mais de uma mão.
      A terra ao nosso redor começou a criar rachaduras por todos os lados. Fumaça verme saia por essas crateras, assim como vapor. O cheiro dessa fumaça é horrível: cheira a lixo. Não, pior do que lixo, parece carne podre em decomposição — a fumaça cheira a morte.
      Lucca sussurrou, aterrorizado:
      — Esquelétros.  
      Assim que o demônio terminou a palavra, vários esqueletos começaram a sair das rachaduras, com armas enferrujadas de diversos tipos. Pareciam soldados à batalha, gritando em fúria ao atacar, atrás de morte — minha e dos meus amigos. Fico aterrorizado ao vê-lo, é tão chocante e horrível. Sem pensar duas vezes, começo a golpeá-los, os desmontando em apenas um golpe.
      A terra se abriu no chão, engolindo Maya. Alasca segurou a irmã antes que ela fosse engolida pelo chão. A ninfa só sabia gritar em desespero e agonia.
      Não consigo ajudá-las. Muitos esqueletos estão saindo das rachaduras, como um enxame de abelhas sanguinárias, em apenas osso. Eu e meus amigos só conseguimos golpeá-los sem parar. Tacamos fogo neles, mas se não for forte o bastante para transformá-los em cinzas, então nem adianta. Os esqueletos não se importam de nos atacar ainda em chamas. Pareciam não sentirem dor, embora já tenha chegado na conclusão que realmente não sentem, e já estão mortos há tempos.
      Percebi que as coisas ficaram ruins para o nosso lado quando vi que outra frota saiu de dentro das rachaduras. Dessa vez, não sei dizer se posso chamá-los apenas de esqueletos. Parecem que morreram e ainda estão se decompondo. As carnes apodrecidas sobre os ossos já são visíveis. Posso até ver larvas banqueteando-se com a pele, moscas em machucados abertos, besouros caminhando de dentro para fora daquelas partes que deveriam estarem cobertas com carne, como o coração, cérebro e vários outros órgãos, que não funcionam mais. As roupas estão maltrapilhas, rasgadas e sujas.
      Todos eles são diferentes. Há Esquelétros de diversas espécies, tanto desse mundo, quanto do outro, todos mortos e prontos para guerrear.
      Esses Esquelétros novos, que vieram nos atacar, são soldados melhores do que os de apenas ossos.
     — São guerreiros até na morte. — Zenny chegou na conclusão primeiro do que eu.
      Luto com verdadeiros guerreiros que um dia eram vivos, seja nesse mundo ou no Inferno, eram soldados treinados.
       Uso o fogo para me proteger, mas o que eu posso domar nem sempre os transformam em cinzas — meu corpo ainda precisa descansar. Usei muito poder contra os Trituradores. Matei dois em uma só vez, e para o fogo ultrapassar a carne dura mais os outros órgãos, precisaria de muito fogo. Fico impressionado só por agora pensar sobre isso. Quanto de poder eu estava guardando dentro de mim? Como se eu estivesse sobrecarregado e precisando liberar, mas agora necessito de tempo para me carregar novamente.
      São muitos contra mim e meus amigos. Não temos como vencer. Isso é uma frota de soldados Esquelétros contra nós.
      Fui golpeado na nuca: o zumbido agudo no ouvido é o barulho que ouço, a visão embaçada é o que vejo, eu caindo no chão é o que acontece.
      Sangro devido aos machucados abertos. Enquanto tento voltar a raciocinar, sinto mãos em mim, prendendo-me com correntes que já deveriam estar no lixo, devido ao descascamento enferrujado de muito tempo, mas admiro-me pela força que ainda fornece, pois não consigo quebrá-la. 
      Zenny rosna internamente. Minhas mãos são colocadas para trás e presas por cordas. Que merda está acontecendo? Meus amigos também já não possuem mais forças de batalharem. Eles são jogados no chão e presos também — sangram tanto quanto eu.
      Eu e meus amigos fomos colocados sentados em círculo e amarrados uns nos outros. Não vejo Mad, e saber que ela pode ter voado para escapar, me deixa aliviado. Como conheço a minha amiga, eu sei que ela não foi a lugar nenhum, apenas está escondida. Não faço ideia do que se passa em sua pequena cabecinha de fada. Preocupo-me só de imaginar Mad armando algum plano suicida para tentar nos salvar.
      — Olha, olha, olha — disse alguém em meio ao tumulto de Esquelétros. — Lucca, seu demônio traidor. Negar a nossa causa, tudo bem, mas se juntar ao inimigo, isso é inaceitável.
      Uma Esquelétro apareceu em nosso campo de visão. Ela possui uma parte do estômago em apenas osso e poucas carnes juntas a ele, o resto do seu corpo possui pele, mas estão apodrecidas e com bichos. A roupa está um maltrapilho, uma farda que um dia era limpa e admirável. Os cabelos negros estão em um rabo de cavalo, mas vejo que o cabeleireiro deixou vários ninhos de rato. Ao redor de sua testa, uma faixa de ferro espinhoso está bem enfincada na carne com ossos presos nele, deixando a parte pontuda para cima, circulando toda a extensão do ferro — uma coroa.
      Ela era terrível de aparência, mas não posso negar a sua postura impecável, uma general disposta a guerrear a qualquer segundo. O olhar esmeralda, de um morto que encarou a morte de peito aberto e sem medo, estava fixado no demônio mais gentil que conheci, Lucca.
      — Eu falei para você que não estava contra e nem a favor, Cassandra — disse Lucca, do meu lado. — Agora eu sei que envenenou a Árvore da Vida. Você e seu povo cheira a morte. Leva a morte.
      Fico pasmo pela revelação. A Esquelétro, Cassandra, na minha frente, envenenou a Árvore da Vida. A responsável pela exterminação global é ela.
      Cassandra apenas abre um sorriso, com os dentes amarelos e podres.
      — Não sabe o que tive que fazer para conseguir tal feito. — A Esquelétro tinha olhos distantes, como se o preço de matar a Árvore da Vida custou algo valioso para ela. — Não deixarei que estraguem os meus planos, os mesmos do meu povo. Místicos imundos e sanguinários.
      — Você literalmente envenenou a Árvore da Vida e acabou de nos atacar. Depois somos nós os sanguinários? — perguntou Ravi, sem acreditar.
      Oliver chutou no pé de Ravi, sinalizando que ele ficasse quieto. Estou meio concordando com Ravi, pois ele tirou as palavras da minha boca, mas também concordo com Oliver sobre se manter quieto.
      Cassandra, que antes tinha sua atenção em Lucca, agora encara Ravi, puro ódio e repulsa, como se ele fosse algum verme que ela possui nojo.
      — Cassandra possui nojo dos místicos, mas não dos vermes que a comem sem parar em sua pele — criticou Zenny.
      Cassandra agachou-se na frente de Ravi. Consegui ver quando o meu amigo segurou a respiração por causa do mau odor que sai da Esquelétro. A mulher demônio levanta o queixo de Ravi, usando apenas as unhas grandes e totalmente destruídas, como se ela nem quisesse encostar na pele dele para não se infectar. A cara de nojo permaneceu. 
      — O seu povo matou o meu de inúmeras formas possíveis. —  A Esquelétro não escondia o nojo e a raiva. — Vocês irão morrer em segundos. O máximo de dor que irão sentir é se ficarem doentes por um tempo. Isso, místico imundo, é um ato de bondade do meu povo.
      Percebi que Ravi só não a responde porque segura a respiração. Vomitar na frente de Cassandra não será um ato de um guerreiro treinado, então a decisão do arqueiro de se manter calado invés de vomitar depois de respondê-la, foi sensato.
      — Exterminar inúmeras espécies é um belo ato de bondade — zombei. Não consegui me manter calado depois do que Cassandra falou.
      Eu deveria ter ficado com a boca fechada, isso sim. A Esquelétro agora está cara a cara comigo. Dessa vez, sou eu quem segura a respiração por causa da podridão que vem do demônio.
      — Você é líder de algo? — perguntou ela, a repulsa estampada na voz, a expressão séria de uma guerreira sem compaixão. — Possui responsabilidade em manter seu povo vivo? Você, místico imundo, possui liderança em algum grupo?
      Não falei nada, até porque tudo que ela perguntou possuí a mesma resposta: não. Eu não lidero nada. Cassandra também viu isso estampado em minha cara.
      — Eu sou a líder dos Esquelétros — apresentou-se com firmeza, dando jus ao título e poder que possui em mãos. — Consegui o meu título lutando e matando. Mérito meu, e ninguém possui coragem de tirar a minha liderança, porque sabem que se ousarem tirar, morrerão. Não é mesmo? — Nenhum demônio ousou em discordar. — Não tenho poder à toa. Meu povo me seguiu até esse mundo desastroso e horrível, sem compaixão ou compressão. Prometi vida e liberdade, mas encontraram a morte e prisão. Seu povo fez o horror em cima do meu. O que estou fazendo é apenas cumprindo com a minha palavra.
      — A solução não é matar esse mundo. — Ignorei a mau odor e falei para ela.
      — Diga-me, místico imundo, qual é a solução? — perguntou Cassandra, já se afastando de mim e me encarando, em pé e de braços cruzados, esperando-me respondê-la.
      Fico pensativo.
      Qual é a solução para tudo isso? Cassandra e os outros mataram bastante apenas envenenando a Árvore da Vida, mas todos do meu mundo também mataram o povo dela. Sangue está manchado nas mãos de todos, e ninguém pode sair por aí como se nada tivesse acontecido. Vidas, muitas vidas tiradas para serem apenas ignoradas.
      Como perdoar o imperdoável?
      — Compreensão — respondeu Lucca ao perceber que nenhuma resposta se formou em minha cabeça, então está me privando de respondê-la. — Tudo que precisamos é apenas um ato de compreensão, nada mais. O entendimento pode vir depois, porque, de início, precisa existir a compreensão.
      Não existe compreensão, e Lucca não entendeu isso. As atitudes do demônio são as mais sinceras possíveis, mas não tem como ter compreensão em meio a tudo que nos rodeia. Quero entender a todo momento, mas não consigo. Compreender principalmente — impossível. Não posso compreender o lado deles, se eu mesmo não compreendo o que fazem, não compreendo que matem todos. A vida da minha família está em jogo, a dos meus amigos, as de pessoas inocentes.
      Cassandra teve total compreensão dos inúmeros mortos quando ela envenenou a Árvore da Vida.
      — Seus pais teriam vergonha de você, Lucca — lamentou Cassandra. — Deveria levar a sua espécie a vitória, mas decidiu pregar palavras de paz que nunca existirão.
      — Esse não é o nosso mundo. Minhas palavras de paz é querer apenas ir para casa — disse Lucca. — Solte-nos, por favor. Sempre existirá tempo de ter compreensão.
      — Eu sei que procuram uma forma de curar aquela árvore maldita, e isso eu não deixarei. Terão que morrer. Outros que ousarem tentar salvar esse mundo, também cairão — disse Cassandra.
      — Meu amigo não pode ser líder, mas eu, em breve, serei — revelou Miguel seriamente, passando confiança para a Esquelétro. — Se soltar a todos, posso tentar ver pelo o seu lado.
      Cassandra abriu um sorriso devastador, trazendo consigo a morte e o pavor. A Esquelétro olhava Miguel, fascinada, como se ele, entre todos, não fosse um imundo.
      — Que tipo de líder você será? — perguntou Cassandra, intrigada e ansiosa pela resposta. 
      Imploro mentalmente para Miguel permanecer com a boca fechada. Cassandra e o povo dela sofreram atrocidades, e os responsáveis de tudo são os Reis Gerais. O que qualquer demônio mais quer na vida é colocar a mão em um desses reis, principalmente em um herdeiro que ainda não sentou no trono — não consigo imaginar como Cassandra será vangloriada quando espalhar que ela impediu um místico de se tornar rei.
      — Um líder com poder o suficiente para tentar entender as coisas e mudar pontos de vistas — respondeu Miguel, tentando não deixar óbvio o que será daqui um mês.
      Não deu certo disfarçar   
       — Um rei — balbuciou um dos Esquelétros na multidão, ocasionando agitação. — Morte para todos os reis!
      Os Esquelétros começaram a bater as espadas umas nas outras, assim como a bater no próprio peito em punho. Os esqueletos puros, batiam os ossos. Um grande coral de: “Morte para todos os reis!”, é soado.
      Se minha preocupação não fosse a que mais me consome no momento, eu poderia chutar o pé de Miguel. Quer saber, ele bem que está merecendo.
      Chuto o pé de Miguel. Como resposta, ele me chuta de volta. Ainda tem a audácia de me olhar discretamente como se não tivesse culpa.
      Cassandra sorria e rodeava entorno de si mesma, enquanto via seu povo se agitar, querendo morte — a morte de Miguel. Outros Esquelétros vieram desamarrar o alfa, ocasionando protestos dele e meus, assim como de Oliver, Ravi e Lucca. Alasca e Maya permanecem caladas. Talvez Maya esteja com medo de falar, já Alasca apenas espera admirar Cassandra destroçar cada um de nós.
      Deixo o meu corpo esquentar, e tenho certeza que meus amigos também. Vamos lutar para ter Miguel vivo. Assim que o fogo ia me consumir, Cassandra sinaliza para alguém na multidão de mortos vivos. Um enorme Esquelétro segura Miguel com força, parecia um ogro, o obrigando a olhar para nós, colocando algum osso bem pontudo em sua garganta, pronto para perfurar a garganta do meu amigo.
      — Qualquer fogo que aparecer, nem que seja uma mísera faísca, o místico rei imundo irá sangrar — ameaçou Cassandra, rindo.
      Seguro a intensa vontade de rosnar para ela. Faço meu corpo a voltar ao normal, mas sinto o fogo já passeando dentro de mim.
      — Olha, podemos barganhar algo. — Miguel tenta não mover muito, para não sangrar mais do que desaba em vermelho devido aos machucados recentes.
      — Não barganho com místicos imundos — disse Cassandra com nojo. — Principalmente com jovens reis.
      — Tecnicamente, ele ainda não é rei — falou Ravi, tentando ajudar. — Então não precisa matar agora. Mata... hã... depois, sei lá.
      Oliver chuta o pé de Ravi em protesto.
      Uma risada é soada de divertimento — Alasca. Cassandra foi até ela. Infelizmente, não consigo vê-las, ambas estão no lado oposto de mim.
      — Contei alguma piada para você? — perguntou Cassandra, raivosa.
      — Você é um circo pronto — debochou Alasca. — Os Esquelétros que você governa são apenas soldados escravizados que não possui uma mísera chance de vitória contra os verdadeiros guerreiros Esquelétros. Você não governa nada além de um bando de esqueletos com pouca carne.
      — Como disse, mística imunda? — perguntou Cassandra, mais raivosa do que antes.
      — Conhece Flanco? — perguntou Alasca. — Ele foi o general Esquelétro, um dos mais respeitado. Flanco tinha uma cadeira no parlamento de Vannir. Tinha autoridade para sentar na mesa de jantar de Vannir. Você, Cassandra, não possui um terço de Flanco, mas veja onde chegou. Admiro a sua perspicácia e força, Esquelétro escravizada.
      — Quem é você? — Cassandra demonstra surpresa pelo conhecimento de Alasca, já que a mística não parece alguém que cresceu no Inferno, mas a Esquelétro não sabe que a soldado só não cresceu no Inferno, como também era filha daquele que todos temiam, que escravizou o povo dela, que a própria Cassandra se curvava.
      Com palavras firmes de superioridade, Alasca ordenou:
      — Cassandra, solte-me e ajoelhe-se perante a sua superiora.
      Não posso ver a expressão de Cassandra, mas as os Esquelétro ao redor eram de surpresa e admiração.
      — Uma soldado infernal — disse um deles, admirado.
      Os múrmuros começaram a soar na multidão, todos alvoroçados na presença da soldado infernal. Esqueço-me o quanto de influência os 5 possuem no Inferno.
      — Alasca, filha de Vannir — saudou Cassandra, não muito amigável.
      — Fico feliz que me conhece — disse Alasca, convencida. — E espero que conheça os meus irmãos.
      — Irmãos? — perguntou Cassandra, confusa.
      — O do meu lado é Frank — Alasca sinalizou Oliver. — O do lado dele, o linguarudo, é Ryan.  — Sinalizou Ravi. — O esquentado que ameaçou sobre não usar o fogo, não é nada mais, nada menos, que Kalias. — Segurei o impulso de questioná-la. Não quero ser comparado com o místico. — Lucas está a um segundo de abrir qualquer merda de portal e mandarem para as Terras da Tentação. Solte Miguel, o nosso prisioneiro. Nunca ouviu falar que ninguém toca no que é dos 5? Devo mostrar a você o motivo de tal coisa? Quer entrar em extinção, Cassandra?
      Os Esquelétros se agitaram mais ainda. Eles sabem perfeitamente que ninguém toca no que é dos 5. Agora se ver o pavor em seus rostos, até mesmo o troglodita que segurava Miguel afrouxou mais o aperto no pescoço dele, como não soubesse quem obedecer: Cassandra ou Alasca.
      — Os 5 são criação desse mundo, possuem uma raiz naquela Árvore — disse Cassandra para a multidão, tentando tranquilizá-los. — Vão estragar nossos planos apenas para se manterem vivos. Não recebo ordens de uma impura. Viemos por você, Alasca, a soldado rebelada. Quando chegamos, cadê a soldado infernal? Presa, humilhada, traidora. Traiu o seu Mundo Elementar, e traiu o Inferno.
      — Está aqui, Cassandra, não por mim. Está aqui porque tinha esperança em ser livre de Vannir, assim como eu. Se eu sou uma traidora do Inferno, você também é. Mas, diga-me Cassandra, qual de nós duas é impura? Fui purificada. Já você, escravizada.
      — Então tudo que contaram são verdades? — perguntou Cassandra, espantada.
      — Os boatos não chegam perto de tudo que tive que passar. — Alasca soou mais fria do que uma brisa de inverso, mais vazia do que um buraco negro, mais seca do que um deserto. — Sou nascida mística, criada demônio, crescida soldado. Cassandra, meu título é clamado, mas eu e você não passamos de escravas.
      — Alasca, suas palavras já foram motivos dos meus sonhos. Hoje, não mais.
      — Não irá me ouvir, então tudo bem. Ouça Kalias. Puro, sem nenhum erro. Temido no Inferno e aqui no Mundo Elementar. Meu irmão é clamado por todos. Com certeza já ouviu falar sobre ele. O filho mais querido do rei Vannir, aquele que nunca erra ou excita.
      Cassandra caminhou até mim, boquiaberta. Seus olhos esmeraldas estavam arregalados, surpresa, tentando ainda aceitar que Kalias estava bem na sua frente. Eu, como um bom ator, ergui a cabeça, mostrando poder apenas com esse gesto.
      — O destruidor de titã, o soldado infernal, o demônio interior, o mal em formato de homem.  — Cassandra dizia cada título admirada. Eu só sabia ficar a encarando e tentando não transparecer que não faço ideia do que ela está falando. Nunca nem vi um titã na vida, nunca fui soldado, nem nesse mundo, imagina no outro. Sou um anjo de místico, calmo e delicado, preservando a paz. — Dizem que Vannir o tornaria o oitavo pecado capital. É verdade?
      — Eu tenho tantos títulos que neguei esse — falei, tentando parecer convencido.
      — Ele negou — admirou-se um Esquelétro, ocasionando mais cochichos dos outros.
      — Eu e meus irmãos estamos tentando chegar no meio da Floresta Encantada — falou Alasca. — Lá tem algo que impede nossas raízes de morrer, e só pode ser tirada pelas mãos de um príncipe herdeiro e uma ninfa gentil. Por isso, estamos com eles, como prisioneiros. Lucca contou que quer ir para casa, mas nunca, em nenhum momento, nos negou ajudar. Cassandra, destrua esse mundo inteiro. Vamos dominá-lo. Uma Esquelétro como você, com os 5 soldados infernais como nós, é mais do que tanta influência. Ajude-nos a chegar no centro da floresta, então torne-se a Esquelétro com mais influência do que um dia foi Flanco.
      Cassandra ficou pensativa. Em seus olhos se via o quanto ela quer ser uma grande general do que um dia foi Flanco. Em um mundo novo, a Esquelétro não quer mais ser uma escravizada. Alasca tocou no ponto central do interesse de Cassandra.
      Alasca mentiu tão bem, sem gaguejar ou parar para pensar, que suas palavras pareciam certas, a verdade. Eu sei que não sou Kalias, mas Cassandra agora me olha diferente, como se realmente tivesse cometido o erro de ter me chamado de “místico imundo”, ou até qualquer um de nós. Alasca conseguiu mentir, atiçar interesse de Cassandra, fazer os Esquelétros se agitarem, enquanto estar presa e machucada.
      — As palavras possuem mais poder do que imaginamos — refletiu Zenny. — A nossa 5 conseguiu usar cada sílaba ao seu favor. 
      Fiz uma careta.
      — Nossa? — Estranhei o dizer de Zenny. — Não quero nada com essa coisa. Se Alasca conseguiu enganar Cassandra, então é mais uma prova que temos que nos manter atentos. Eu falei: tudo que sai da boca dela é mentira.
      Zenny ficou quieto, pensativo. Ele agora entende que tudo que sai da boca dela é mentira, já posso senti-lo em seus pensamentos, questionando cada palavra até agora que Alasca disse.
      — Soltem-nos! — ordenou Cassandra, agitada. — Soltem os 5 soldados infernais.
      Os Esquelétros não ousaram desobedecer. Começaram a nos desamarrar, mas prenderam Miguel com cordas, assim como Maya — eles, para os Esquelétros, são os nossos prisioneiros. Pelo menos estão vivos.
      Massageio os pulsos por causa do aperto forte das cordas. Percebo que os Esquelétros cochicham enquanto me olham. Quando levo minha atenção a eles, os mesmos desviam o olhar, como se olhar em meus olhos fosse errado.
      — Obediência — explicou Alasca, do meu lado, como se lesse a minha mente. — Os 5 são superiores a todos os demônios que não seja os Titãs, Reis, Gigantes e Pecados. Então, Kalias, aja como se fosse um assassino que mata sem piedade se alguém te olhar por mais de dois segundos.
      — Olha, dessa vez você nem precisa fingir o que não é — debochei.
      Alasca passou o polegar rapidamente pelo meu maxilar, limpando uma mancha de sangue que estava lá, em forma de provocação, sabendo que não posso enfiar minhas mãos no seu pescoço agora, embora não queria enforcá-la, apenas queira o seu toque.
      — Ah, tire essa cara de azedo. Não se esqueça que Kalias possui uma queda por mim. Vamos ver se o seu teatro é melhor do que o meu — desafiou Alasca, antes de ir até Maya para ver se está bem.
      Zenny questiona o porquê de ela tirar as mãos de mim tão rápido. A soldado poderia limpar todo o sangue do meu corpo. Nunca desejei tanto estar dentro de uma banheira, sendo banhado pela 5, com suas mãos na minha pele...
      — Suas mãos, céus! — Arfou Zenny, ocasionando pensamentos maliciosos em mim.
      Quando Zenny percebeu que a língua seria mais prazerosa, me fez enrijecer no local que a boca pequena de Alasca estaria cheia de mim, comendo-me, lambendo-me, bebendo o meu...
      Céus, Zenny enlouqueceu de vez.
      — Zenny, pare de pensar! — questionei.
      Fecho os botões do sobretudo mais abaixo, tentando esconder aquele volume extra em minhas calças que Zenny, com seus pensamentos apurados, fez meu corpo respondê-lo.
      — Nicolas, por sol, quero caçar, voar e, acima de tudo, acasalar — disse o dragão, uma agonia já batendo na porta, quase a arrobando.
      Tempo demais.
      Zenny é um animal selvagem com instintos primitivos, tendo apenas a mim com consciência para manter a civilização. O problema é que, assim como eu posso dar a ele pensamentos com consciência, ele pode me dá instintos animais.
      Zenny passou tempo demais sem acasalar.
      — Quando tínhamos chance de acasalar, você veio com papinho de culpa. — O lembrei da festa de Pablo, quando negou três de uma vez, sendo que o dragão poderia ter passado a noite com eles, algo novo e prazeroso. — Agora fica se lamentando e tendo pensamentos absurdos.
      Zenny rosnou para mim, não gostando do que falei.
      — Eu não queria aqueles três — disse ele. — Eram seres sem nada de interessante para me atiçar além de seus corpos. Eu quero algo mais intenso, que me atiça interesse.
      — O que te atiça mais interesse do que o corpo em si?
      — Palavras, gestos e olhares — respondeu, sem dúvida no que dizer. — Quero alguém que me faça o desejar pelas palavras que saem de sua boca, mais do que os lábios que estão nela. Quero que seus gestos me deixem atento, como um predador sem tirar os olhos da presa, por ser tão intrigante que tome conta de meus instintos, que o mundo se torna nada além de desfoque. E, principalmente, que não me deixe desviar os olhos dos seus, ser tão segura e firme, me passando sensações em apenas olhares.
      Zenny fala como um dragão sentimental, não um animal selvagem que odeia que entrem sem bater em seu quarto. Tudo para Zenny é indelicado, feroz e extremo, mas quando fala em acasalar, ter outro alguém conosco, ele diz coisas que, para mim, são confusas: quer se tocar com a brisa fria lunar, quer acasalar com seus critérios.
      O que me deixa confuso é que não me sinto desestabilizado. Como posso ter pensamentos confusos em relação a Zenny se não sinto desestabilizado?
      Fiz a pergunta que possuo medo da resposta:
      — Com quem você deseja acasalar?
      Zenny respondeu, apenas:
      — Com aquela que se torna cada vez mais presente em meus pensamentos.
      Não pergunto o nome, porque sou um místico medroso, mas tenho os meus palpites. Não crio certezas, porque se está presente nos pensamentos de Zenny, então deveria estar no meu também, mas a fala dele não bate com meus pensamentos, e não sinto desestabilização, então Zenny deve querer o que eu quero, certo? Ou seja, o dragão deseja Amélia.
      Amélia possui uma fala inteligente, embora não seja algo que não me deixe interessado em conversar — não sei sobre plantas —, mas gosto de vê-la animada. A curandeira também possui gestos de se admirar: salva vidas. Os olhos dela são belos, eu ficaria de boa a olhando por horas, mas ela não sustenta o olhar com o meu, não passando a segurança que Zenny diz que quer. Mas isso são pontos desalinhados. Aliás, quem mais Zenny iria querer? Não sei de ninguém que se encaixe no que Zenny falou.
      Zenny quer Amélia.
      Eu e meus amigos pegamos nossas coisas do chão e seguimos caminho, junto com os inimigos que queriam nos matar.

                      ❀ ≼ ☼☽ ≽ ❀

      Cassandra conversa animadamente com Oliver, querendo saber se os rumores sobre ele é verdade. Ela estranhou porque disse que todos comentam que Frank é mais deformado — foi exatamente essa palavra que ela usou. Disse que se ele tivesse uma ou duas costelas aparecendo, ele seria mais bonito. Os padrões de beleza no Inferno é totalmente o oposto do Mundo Elementar.
      Já está amanhecendo.
      Hoje, chegaremos em nosso destino. Lucca disse que estamos perto. O demônio faz a guarda de Miguel e Maya, como se realmente eles fossem prisioneiros. Não ouso ir falar com o meu amigo, assim não levanto suspeitas, e nem Alasca vai falar com Maya.
      Vários Esquelétros entraram na terra, deixando apenas Cassandra e mais dez soldados em terra firme. Eles não fazem a nossa vigia, estão aqui mais para marcar presença e não deixar a sua general sem proteção. Quando qualquer ameaça que ousava aparecer, Cassandra fazia questão de os exterminar, se gabando que sua frota é boa e a melhor.
      A Esquelétro tenta manter-se neutra, mas percebo que está empolgada, achando que impressiona a verdadeira frota de soldados infernais de Vannir.
      Não sei onde está Mad. Posso jurar que vi um pequeno brilho vermelho entre as árvores perto de mim — Mad nos acompanha silenciosamente.
      Cassandra me fez mil e uma perguntas sobre como eu matei um titã. Eu, como um bom ator, falei o mais óbvio possível:
      — Com fogo.
      Não sei se o boato de Kalias se tornar um pecado é verdade. Cassandra veio confirmar isso comigo. Minha resposta soou como se realmente essa proposta tivesse sido feita para mim. Fico boquiaberto com tudo que Cassandra pergunta sobre os 5. Boatos que, de algum modo, foram espalhados no Inferno sobre os soldados.
      A mulher demônio perguntou a Ravi se ele realmente se transformou em Vannir e governou no lugar dele, sem ninguém desconfiar, ganhando respeito de todos — Ravi não possui os dons de Ryan de se transformar na carne que quer. Cassandra até perguntou se Frank (Oliver) já possuiu autoridade de torturar um Gigante.
      Kalias, pelo o que parece, matou um titã, e isso não é boato. A mulher demônio estranhou Lucas não estar conosco, mas Alasca falou que ele está nos vigiando e atento, tentando passar medo na mulher.
      Cassandra e Alasca confundem os idiomas. Começam a falar na minha língua, e do nada se atrapalham em uma palavra e falam em outro idioma. Elas já começaram a falar sobre um tal de Céu Sem Luz, que não faço ideia do que seja, e depois de uma longa conversa em outra língua, uma delas se confundiram e a conversa estava em como ela fazia para torturar uma pessoa mais dolosamente.
      — Chegamos — anunciou Cassandra. — Soldados, depois daquelas árvores, possui uma clareira. O centro da Floresta Encantada.
      Finalmente. Depois de dias vagando pela floresta, finalmente chegamos em nosso destino.
      Olhei para meus amigos, e eles sinalizaram para seguirmos em frente.
      Então, eu e meus amigos, junto com Esquelétros, fomos ver o que nasceu no meio da Floresta Encantada.
     

A Árvore da Vida - Parte 1 ( Volume 3)Onde histórias criam vida. Descubra agora