Nicolas e Thomas

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Uma briga entre irmãos

ZENNY


Voo acima das árvores em toda velocidade.
      Minhas escamas estão quentes. Preciso aliviar a pressão do fogo que sai de mim involuntariamente. Desço em queda livre em direção a um pequeno lago entre a floresta. Pouso pesadamente no chão, espalhando poeira por todos os lados e espantando os animais que ali estavam. Deixo que minha garganta esquente, para logo em seguida soltar fogo pela minha boca até o lago, fazendo vapor subir por todos os lados. Faço isso mais três vezes, até senti-me mais leve.
      Meu tempo acabou.
      Não faço ideia do que irá acontecer agora, e isso me deixa aos nervos. Pensei que teria mais tempo, ao menos, para aproveitar mais. Ainda não tive a chance de ir ao ninho dos dragões — quis esperar até todos os meus instintos se desenvolvessem um pouco mais. Só não bato asas até o ninho porque não estou com paciência para aturar outros dragões, e também, nesse momento, quero ficar sozinho.
      Quando Miguel contou que o Reino do Fogo possui um ninho, fiquei agitado para voar junto com outros da minha espécie, viver alguns dias na pele dragônica naquele mundo de escamas e fogo. Nicolas concordou em viver como dragão por um tempo. O ninho parece um mundo apenas de dragões, disse Miguel ao me contar sobre ele. A entrada fica no maior vulcão existente entre os quatro reinos, batizado de: “A Descida Para O Inferno”, pelo fato que para entrar precisa encolher as asas e despencar metros abaixo, até finalmente chegar no mundo de larva rodeado de dragões. Outros seres que não tenha escamas e asas, não são bem-vindos.
      Há uma acomodação lá dentro, como uma sala do trono, que era para Ethan, um Rei Dragão. Miguel possui seu ninho particular, por ser o Príncipe Dragão, mas ele frequenta mais o castelo. Já Ember, a rainha do sangue puro, por ser uma elementar e não mística dragão, não possui nenhuma acomodação naquele mundo de fogo.
      Paro de pensar no que eu não posso desfrutar e foco no agora.
      Estou faminto e sedento.
      Minhas escamas negras já não soltam mais faíscas de fogo. Liberei a pressão de dentro de mim no lago... Que dizer... no lago que existia, porque agora não passa de poucas poças de água. O resto da água se evaporou ao ar com o contato com o fogo.
      Começo a cheirar o ar, procurando algum animal próximo que eu possa saciar a minha fome. Mesmo sendo alto e sendo muito pesado, ando devagar, para que minhas grandes patas não espantem os pássaros ou animais que podem servi de alimento. Não levei muito tempo até encontrar um cervo comendo grama sem se preocupar que haja uma ameaça que o observa tão atentamente que escuta seus batimentos cardíacos. Os cervos são os meus prediletos, amo comê-los quando estou bastante faminto — como agora. Geralmente, Nicolas come na carne mística a deliciosa carne mal passada de cervo, mas ele não pode negar que comê-la crua e com o sangue ainda quente do abate recente é tão saboroso quanto.
      — Estou com fome — reclamou o místico. — Vamos atacar logo!
      Sorri pelo seu comentário.
      De início, Nicolas não parava de me criticar, chamando-me de guloso e sem ética, me ameaçando que viraríamos vegetarianos. Hoje em dia, Nicolas só falta me criticar se não comemos mais do que um animal.
      Comecei a me preparar para abater o cervo.
      Em menos de segundos, corro na direção do animal, não dando tempo de ele processar o que acontece. Agora o cervo está morto entre os meus dentes, a cabeça tombada para baixo, enquanto seu sangue desce como uma cachoeira vermelha pelo canto da minha boca. Sento-me na terra, colocando minha pata frontal no estômago do cervo. Levo a minha boca aberta até a cabeça dele: pressiono minha pata e puxo sem demora a sua cabeça, a triturando entre meus dentes perfeitamente afiados.
      A carne está deliciosa, o sangue também, mas não parece tão saboroso como eu sentia antes. Quero sangue, mas... Rosno com raiva. Levo a minha boca ao cervo, tirando mais um pedaço dele. Recuso-me a querer mais sangue daquela mística desgraçada de cabelos brancos. 
      Não consigo sair.
      Lembrei-me do que a dragão dela disse. Eu sentia a agonia da dragão querendo sair, como antes eu tentava com Nicolas e não conseguia por celas e algemas invisíveis me prender a ele. Ontem à noite, senti a mesma agonia — preso por um líquido que me deixava tonto e fraco. A prisão invisível é a pior coisa do mundo.
      Anos. Passei anos em uma coroa sem poder voar, caçar e nem acasalar, as três coisas básicas que não se pode tirar de um animal dragão.
      Anos. Passei anos em uma coroa sem saber o porquê de não poder sair, apenas sabendo o meu nome e nada mais. Repeti “Zenny” tantas vezes que perdi as contas, apenas para falar algo, porque meu vocabulário só existia esse único nome. Assim que senti o fogo me invadindo, me deixando sair daquele calabouço horrível que era a coroa, pensei que seria livre. Apenas saí de uma prisão para entrar em outra.
      Minha segunda palavra do meu vocabulário limitado foi “Nicolas”. Quando comecei a me juntar a ele, todas as palavras que ele sabia, comecei a entender os significados e compreender. Dizer o seu nome foi um conforto — outra coisa além de Zenny. Quando tentei sair dele, não consegui. Depois daquilo, as coisas só pioraram ainda mais.
      Anos. Passei anos em uma coroa esperando a droga de portador.
      — Ei! — protestou Nicolas.
      — Sua vida é me xingar discretamente — protestei também.
      — Ainda estou com fome — disse ele, mudando de assunto, porque sabe que faz a mesma coisa comigo. — Vá caçar outro! 
      Fiquei tão perdido em pensamentos que não me toquei que o cervo não existia mais — o comi inteiro.
      Os dois primeiros meses eu tirava os corações dos animais que caçava, não conseguia comer nenhum depois que minha doce Aurora se foi sem o seu precioso coração. Me despedia de cada animal que matava, dizendo que os levaria em pensamentos — e me lembro de cada vida que tirei. Não sou tão bom de memória como Oliver que nunca esquece de nada, mas, por algum motivo, não consigo esquecer das vidas tiradas por mim. Claro, lembro-me se eu parar para pensar sobre elas, e como não paro sempre para fazer isso, então apenas sigo com minha vida. Não sinto nenhum arrependimento, mas acabou sendo um costume — trauma, para falar a verdade.
      Dói muito me lembrar de Aurora.
      Hoje sei de cada dor que Nicolas passou — não importa se foi um pequeno arranhãozinho. Sei de tudo sobre a vida passada. Consigo ver Aurora o pegando no colo e levando para casa. Conseguia saber que Aurora tinha cheiro de coco, mas não conseguia identificar exatamente igual, então meu outro eu fez um sabonete a qual ela mesma fazia e o ensinou. Hoje, no banheiro do meu quarto, há um sabonete de coco idêntico com que Aurora usava para tomar banho e ficava com aquele cheirinho de coco agradável.
      Como não tive coragem de voltar ao Lixão, então lavei um vestido com o sabonete, parecido com que Aurora usava. Sempre depois que tinha pesadelos, o pegava e ia até a varanda, sentava-me sobre o sereno abraçado com o tecido, e ficava me imaginando em seus braços, me protegendo dos pesadelos até eu pegar no sono novamente.
      Tento mudar meus pensamentos, não por não querer pensar nela, e sim por me fazer ficar triste. Não consegui enterrá-la. Pedi aos soldados da terra, que foram convocados por Kristof e Alan, para encontrá-la. Os Reis da Terra querem transformar o Lixão em uma bela floresta, mas não é tão simples assim — a terra ficou muito tempo sendo infectada pelo lixo dos anos passados. Para o lugar que já chamei de lar se recuperar de todo caos, levará séculos.
      Os soldados que trabalham no Lixão falaram que os corpos dos aldeões não existiam mais jogados no chão, apenas vestígios de sangue, tripas e membros soltos. Vomitei no chão no dia só de ter imaginado um Grist comendo a carne da minha amada Aurora.
      Caço mais um animal para me deixar satisfeito. Comi um pequeno bezerro que provavelmente fugiu de algum lugar: o dono nunca o encontrará. Passei bastante tempo voando e descendo em queda livre de olhos fechados com as asas encolhidas para planar depois — amo fazer isso. Fiquei na floresta, não estou com humor de sobrevoar a cidade.
      Tudo isso me fez senti mais calmo, mais disposto para voltar e falar com meus amigos. Contarei o sonho com Foog. Não faço ideia do que ela disse sobre ajudar Trera, mas irei descobri.
      Pouso em um chalé reservado apenas para ter roupas minhas e dos meus amigos depois de voar, para não ter que ir até a mansão pelado — isso seria vergonhoso. 
      Anos.
      Agora passarei todos os meus anos como Nicolas. Pela eternidade. Minha outra metade, meu outro eu. Esse foi o meu último pensamento na pele dragônica antes do fogo me tomar por completo, levando-me a carne mística.

A Árvore da Vida - Parte 1 ( Volume 3)Onde histórias criam vida. Descubra agora