Nicolas e Alasca

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Voe


Caminho em silêncio com Alasca para dentro da floresta.
       Esperei que todos dormissem para ir bater na porta da soldado infernal. Não quero que meus amigos saibam que estou a sós com ela, vão questionar e ficarão no meu pé. A barreira errada está em mim. Não quero preocupá-los com isso.
      Alasca até agora não disse nada enquanto a guio para dentro da floresta, nos afastando da mansão. Ela às vezes me observa, intrigada, como se quisesse ler a minha mente. Talvez ache que vou matá-la, isso seria mais aceitável para mim.
      Paro de andar em um pequeno espaço. Aqui está bom. Não faço ideia de como se quebra uma barreira, então não sei o que tenho que fazer. Eu poderia levar Alasca para o meu quarto e pedi para ela me explicar como funciona, só que a audição dos meus amigos é boa, não tão ampliado quanto a minha. Não quero a presença deles — não preciso de babá. Eu também não sei se terei recaídas de não conter o fogo em mim, embora eu não me sinta recarregado para explodir como aconteceu para matar os Trituradores, então se for para queimar Alasca viva, que seja na floresta longe de todos.
      — Vai me matar? — perguntou Alasca, para tirar a dúvida que está a corroendo.
      Virei-me para ela.
      A soldado não parece preocupada em ser morta, apenas está duvidosa, como se ainda tivesse querendo entender se veio aqui para me ensinar a quebrar uma barreira ou ser morta.
      — Vou — afirmei. — Mas farei isso depois.
      — Ufa. — Ela deixou o ar sair de seus pulmões. Eu sei que fez isso para debochar de mim. — Quando for me matar, me avise algumas horas antes. Preciso me arrumar para morrer bela.
      Revirei os olhos.
      Alasca usa calças soltas, com um cinto para firmar no corpo. A camisa preta é grande para ela, tendo que dobrar as mangas até o cotovelo. Alasca não possui roupas aqui, e nenhuma cabe nela — Miranda já providência roupas para a soldado. Enquanto a irmã de Oliver não traz roupas da medida certa para Alasca, a 5 precisa pegar emprestado. Como da última vez que Marta e Miranda viram o absurdo que a soldado fez com as blusas caríssimas delas, não querem mais emprestar — Alasca passou a tesoura nas roupas, deixando mais pequenas, na medida completamente errada, mas boas para entrar em uma briga sem tropeçar em tantos tecidos. Agora temos que emprestar roupas pra ela. Se as das meninas ficavam grandes, as nossas são vestidos, mas deixamos Alasca passar a tesoura.
      A camisa que a soldado usa é minha. A fiz trocar de camisa antes de virmos para a floresta. Se Alasca não me ensinaria a derrubar a barreira errada em mim com o cheiro de erva doce, de Amélia, eu também não aprenderia nada com ela usando a camisa de Miguel, impregnada com o cheiro dele.
      A soldado infernal está com os cabelos embaraçados. Ela parece não se importar com a aparência. Alasca, nesse momento, não parece a assassina que mata a sangue frio. Parece mais uma garota normal que acabou de acordar e não se deu o trabalho de fazer nada depois. Me odeio em pensar em como ela ficaria se realmente estiver disposta a se arrumar como Marta e Miranda, porque do jeito que se encontra, está bonita.
      — Não perca o seu tempo se arrumando, ninguém irá para o funeral. — Sorri de lado. — Também não importa o quanto se arrume. Tudo será apenas cinza no final.
      — Depois que o garoto começou a falar não para mais. Virou um tagarela — zombou ela. — Vou ter que mudar minhas táticas com você, para fazê-lo ficar quieto.
      — É quais táticas são essas? — perguntei, erguendo uma sobrancelha.
      Ela deu de ombros.
       — Irá descobrir logo, logo.
       — Estamos aqui para me ensinar a quebrar uma barreira, então me diga como se faz isso.
      Alasca sentou no chão e cruzou as pernas, como se fosse meditar. A soldado apontou para frente, sinalizando que eu sentasse também.
      — Que barreira estamos falando? — perguntou ela.
      — Tem diferença?
      — Claro que tem diferença. Existem barreiras que impede o cheiro, ou que impede a identificação, até mesmo barreiras que impede emoções. Varia muito.
      Permaneço calado.
      Alasca não precisa saber que possuo uma barreira errada dentro de mim que impede de mim e Zenny sentir apenas um sentimento — amor. A soldado já sabe que tenho uma barreira a ser quebrada, não precisa saber mais do que isso.
      — A barreira impede algo entre mim e Zenny — tentei explicar sem me expor mais do que ela já sabe. — Quero quebrá-lo.
      — Como você ergue uma barreira sem saber quebrá-la?
      — Eu não ergui nada. Não sei como tenho ela, mas está em mim. Quero quebrá-la.
      Não parei para pensar em quem a colocou em mim. Foog, talvez. A mãe de Isaac disse que a Deusa me criou e deixou o errado, como se Foog não tivesse tirado essa barreira. Já que ela não tirou, então talvez não tenha colocado. Não tenho muitas ideias, então não descarto a possibilidade da própria Dulce, mãe de Caleb, Helena e Amélia, ter feito isso comigo. A maga me ligou a Ethan até na morte, então levantar uma barreira em mim deve ser o de menos. Mas para quê me excluir apenas um sentimento?
      — Se está aí, então quebrá-la não seja uma boa ideia — sugeriu Alasca. — Essa barreira está fazendo tão ruim assim pra você?
      A barreira não muda em nada em mim além de fazer me sentir errado. O sentimento não me faz falta, estou em meio ao conflito, meus instintos no momento são de sobrevivência. Eu, Nicolas, não está afetando em praticamente nada. Mas... Não sei o que Zenny pensa sobre isso, porque essa barreira impede quase tudo sobre o amor mesclado de nós dois.
      — É errado essa barreira em nós. É como uma necessidade. Uma necessidade que faz falta. — Zenny tentou explicar o que sente. — Há algo em mim que me espera, e preciso chegar até isso. Está em minha essência.
      Tento entender Zenny, mas não consigo. O amor de nós dois pelos nossos amigos e familiares é mesclado, junto e forte, o mesmo sentimento para nós dois. O amor que não sentimentos é por outra pessoa, não de amizade, algo mais romântico.
      — Preciso quebrar essa barreira. — Essa barreira é errada, então ela irá se romper até os pedaços. — Não quero ter nada contrário com Zenny.
      — Como sabe que possui uma barreira? — perguntou ela, duvidosa. — Se é uma barreira contrária com Zenny, então meio que você não deveria saber.
      — Eu... tipo. Eu descobri por um acaso — falei, meio sem jeito. Não quero dizer que precisei ficar com Amélia para pensar sobre relacionamentos e chegar em uma conclusão como essa. — Pare de fazer perguntas! Não está aqui para isso. O seu dever é me ensinar a quebrar a barreira. Devo ordená-la?
      Alasca revirou os olhos.
      — Existem barreiras que não se quebram — informou ela. — Talvez nunca quebre a sua.
      — Sua motivação é algo inexplicável — debochei. — Só me diga o que tenho que fazer, deixe o resto comigo.
      — Feche os olhos — pediu ela.
      — Prefiro ficar com eles abertos.
      Até parece que fecharei meus olhos com Alasca aqui. A soldado pensa que sou idiota, só pode. Não confio nela de olhos abertos, imagina de olhos fechados.
      — Você precisa se concentrar nessa barreira. Como pretende fazer isso com os olhos abertos?
      — Não tirarei meus olhos de você.
      Alasca sorriu.
      — Eu te afeto tanto assim, Esquentadinho? — Alasca se inclinou para frente, ainda com o sorriso de convencida no rosto. Odeio esse sorriso. — Fico feliz que ainda possui medo de mim.
      — Não tenho medo de você, Alasca. A única coisa que sinto por você é ódio puro. — Minha voz não esconde a repulsa que tenho pela soldado. — Quando você morrer, será o melhor dia da minha vida.
      O sorriso dela se desmanchou. O olhar provocativo se foi para dá lugar ao vazio que suas íris demonstram no momento, até o gelo parou de se congelar.
      Alasca piscou, como se ela mesma tivesse percebido a mudança de suas atitudes. Ainda me encarando, deixou que seus olhos se congelassem mais intensamente, mostrando que não liga pelo o que falei.
      Os meus olhos ambares estão ardentes, não estão em chamas, o fogo que queima a cada segundo aumentou a densidade, não para usar a dominância; para aquecerem na mesma proporção que os olhos de Alasca se congelam.
      — Patético! — disse ela, odiando a minha presença a cada inalada de ar.
      A soldado se inclinou para trás, apoiando as palmas das mãos no chão para sustentar o peso do seu corpo. Alasca me observa, julgando-me. Sua expressão era puro tédio, como se eu não fosse nada além de um incômodo para ela.
      Odeio quando ela faz essa pose maldita.
      Eu tenho poder sobre ela, mesmo assim não perde a marra de valentona, de fazer sentir-me um nada perto de si, além de um incômodo, uma pequena farpa no dedo. Quero ser mais do que um incômodo. Quero ser alguém que ela tenha medo, que tenha repulsa, tenha raiva — que não me tire dos pensamentos.
      Prefiro o ódio da soldado infernal por mim do que não ser nada.
      Avanço até Alasca.
      Ela mal conseguiu se levantar quando a empurro de volta para o chão. Sentei-me em seu estômago, pressionando minhas duas mãos em seu pescoço.
      Estou cara a cara com a soldado infernal que nossos narizes chegam a se tocarem. Meus olhos estão mais ardentes do que nunca. Posso ver o vermelho que eles transmitem pela luz que sai deles.
      Com os dentes trincados, exclamei:
      — Patético é você achar que tenho medo de você! Patético é você querer me enganar inventando historinhas! Você, Alasca, é patética!
      As mãos da 5 vão até as minhas, apertando-as para que eu solte o aperto que faço em seu pescoço, que a faz perder ar.
      — Patético é você não acreditar em nada do que eu falo — forçou uma frase, já sem voz.
       — Não irá me enganar! — rosnei com irritação.
       Afrouxo o aperto do seu pescoço ao sentir sua mão direita passeando por meu abdômen, por cima da camisa, em toques firmes, querendo sentir meus músculos do corpo. Com a mão esquerda, ela me fez praticamente tirar minhas mãos envolta do seu pescoço.
      Surpreendo-me pela mudança de humor em segundos.
      — Você está tão esquentadinho — ronronou ela, como uma gata dengosa querendo carinho, enquanto cheira o meu pescoço. — Eu deveria ensiná-lo a criar uma barreira que impedisse seu cheiro. Não faz ideia de como é viciante.
      Meu coração acelera.
      A única coisa que consegui dizer foi:
      — Seu cio ainda não acabou?
      — Acabou de começar — sussurrou, ainda cheirando-me, maravilhando-se com meu cheiro, viciada por mais.
      É claro que ela não estava no cio antes, não tinha um pingo de vestígios que comprovasse que estava. Alasca mentiu na cara dura, apenas para não me deixar saber que cheiro possui de identificação.  Agora, com ela dengosa, esfregando-se em mim, estar mais do que comprovado que seu cio entrou no ápice, onde a fêmea não consegue se controlar.
      Ali, com um dragão que gosta de se envolver no perigo e está louco para acasalar, eu soube que estava completamente fodid...
     Arfei, cortando meu xingamento metal, devido a uma mordida sedutora que Alasca distribuiu em meu pescoço, um choque ao meu corpo, um embrulho no estômago.  Zenny entrou em combustão, explodindo em chamas por dentro, atiçando meu corpo ao prazer da respiração gelada da soldado infernal na pele, o contraste eletrizante.
      Odeio Zenny, de todas as formas possíveis e impossíveis.
      O dragão me faz passear a mão pela perna esquerda de Alasca, a colocando mais para cima, entorno da minha cintura. Segui com a mão aberta ainda a cariciando, a fechando fortemente na pele macia de sua bunda. Alasca arfou e apertou meus cabelos, os dedos entre os fios, a minha perdição.
      Eu já não estava mais no meu autocontrole. Parecia perder consciência, um animal seguindo seus instintos primitivos.
      — Temos que voltar a ter foco — disse Alasca, ainda esfregando-se em mim, enquanto a trago mais para perto, a mão ainda a cariciando na perna, terminando na sua bunda. A outra mão gravando as garras na terra, meu último pingo de consciência de não atacar Alasca agora mesmo e cometer o maior erro da minha vida, se é que já não estou cometendo.
     Alasca quer ter foco. Eu, Nicolas, quero ter foco. Selene e Zenny são os responsáveis disso. Merda de dragões que agem pelos instintos animais.
     — Eu quero acasalar — rosnou Zenny, um animal puro cheio de desejos a serem suprimidos.
      — Não com essa! — o repreendi.
      — Com essa si... Oh, céus, o que ela está fazendo? — Zenny gemeu.
      Alasca movimenta-se abaixo de mim, querendo encontrar uma posição confortável para si, já sem os toques prazerosos que estava passando pelo meu corpo. Com esse remexe dela, acabou ficando de bruços para a terra e de costas para mim. Ainda tentando encontrar uma posição para sair de meus apertos, fica de quatro, convicta que assim irá sair, o que impulsionou seus quadris a se movimentarem no meu ponto central de prazer, já enrijecido e latejando.
      Segurei firme seus quadris, a mantendo imóvel.
      — Senão quer que eu te enforque enquanto meto com força por trás, sugiro que pare de se mexer.
      Minha voz saiu rouca, tão firme que rasgou a noite fria com a potência ardente da dominância que expeli do meu corpo, o que sei bem que muitos inimigos estremeceriam. Menos a mística de cabelos brancos. Sua alma se remexe, agitada, abraçando mais Zenny, excitada por mais ferocidade da minha parte. 
      Selene é uma dragão maldita. Uma dragão no cio.
      Usei o linguajar de Alasca, para ela entender de primeira que não estou brincando. Isso já foi além de provocações. 
      Nossas respirações pesadas tomaram conta do silêncio que a natureza traz. Eu e Alasca voltamos ao território inimigo, tão delicado de estar aqui, muito perigoso. Zenny parece entender agora o que faz, o que quer fazer. Coloco toda consciência no dragão, tirando seus instintos de animal.
      Sou atingido forte por uma cotovelada em meu maxilar. Caí para trás, saindo de cima de Alasca e limpando o sangue do canto da minha boca, devido ao meu canino cortar o meu lábio.
      Rosno para a soldado infernal.
      Meu prazer esvaziou-se por fúria. Como Alasca consegue me fazer sentir sensações extremas em segundos?
      Eu ia a xingar, mas parei de boca aberta ao ver Alasca, ou devo dizer, Selene.
      Os olhos brilhantes em completa perversidade. Os caninos se alongaram mais, prontos para rasgar carne. A boca entreaberta, respirando por ela, devido a inaladas de ar pesadas. Parece que eu sou uma presa, prestes a ser morto da forma mais cruel possível. Até a alma de Selene pareceu bater em Zenny, o expulsando de sua essência, não o querendo mais.
      O que Alasca disse a Selene, para deixar o desejo por mim a transformar sedenta por sangue, meu sangue?
      — Esqueci que gosta de meter mesmo é em curandeiras. Eu não ficarei com os restos de ninguém! Espero que Zenny tenha aproveitado muito outra fêmea e que você, Esquentadinho de merda, tenha a jurado proteção e afeto, algo que nós dois nunca vamos ter! — Alasca rosnou em gritos com a voz fria e cruel de Selene.
      Alasca deu passos para trás, balançando a cabeça, tonta pelo poder da dragão dela ter tomado o controle dessa forma.
      Eu e Zenny não sabemos o que fazer. Ficamos ainda processando o que acabou de acontecer. A culpa reinou em mim, facadas na minha alma, doloridas e me tirando o chão.
      — Vai se ferrar, Alasca! — a xinguei. Cansei dela, se acha a voz da razão, sempre apontando o dedo. — Eu juro proteção e afeto a quem eu quiser. Mas você estar certa. Eu nunca terei afeto por um monstro sem sentimentos como você.
      Alasca rosnou para mim.
      — Falou o místico mais emocionado do mundo — disse ela, sarcástica. — Seus sentimentos não valem de nada. Nada!
      — Cala a boca! — gritei, apontando o dedo para ela.
      — Você é um garoto de míseros 22 anos que não sabe no que estar se metendo. Eu vou te matar, seu miserável! Não entende isso?
      — Eu não era um garoto quando estava se esfregando em mim — rosnei, enfurecido.
      Zenny estressou-se.
      Não suporto ser chamado de garoto, parece que sou criança. Sou um adulto! Eu podia ser um garoto quatro meses atrás, um menino, quando minha avó ainda estava viva, porque eu era o menino dela. Minha avó morreu e o menino teve que crescer, aprender a viver sem a sua maior proteção.  O mundo cruel lá fora tenta me derrubar a cada segundo. Não serei mais abraçado por Aurora, levado a uma rede ao sereno, agarrado nela para querer inalar mais seu cheiro de sabonete de coco.
      O garoto cresceu.
      O dragão está livre.
      O menino não tem mais a avó. 
      Estou sozinho para cuidar da minha família e amigos, embora não queiram a minha proteção. Não os deixarei partir tão fácil enquanto não consigo fazer nada, onde um passo só não foi o suficiente para chegar lá. Salvarei o mundo, cada ser vivo, mas tenho contado nos dedos aqueles que são minha verdadeira motivação a continuar a resistir às artimanhas postas no meu caminho, apenas para ouvi seus corações batendo dentro do corpo, não jogados no chão sujo de um lixão. 
      — Mas também não é homem para aguentar a verdade — disse Alasca, o tom mais baixo, o desafio estampado nas cordas vocais, a decepção no olhar.
      Franzi o cenho ao perguntar:
      — Que verdade?
      Alasca mordeu o lábio inferior, percebendo que falou em voz alta algo que deveria se manter escondido em seus pensamentos. 
      — Todas aquelas que falei e não quer aceitar — disse ela, apressada, uma resposta para minha pergunta. Lá no fundo, eu sentia que não era bem essa do qual ela falava.
      — Quer que eu acredite em mentiras?
      — Quero que pare de me culpar por tudo.
      — Eu deveria amarrá-la a um poste e queimá-la viva, por tudo que você fez.
      Alasca estremeceu.
      Espera, ela estremeceu? A soldado recuou um passo, não com medo de mim. Com medo de minhas palavras.
      Por essa eu não esperava. Eu venci no diálogo?
      Os olhos brilhosos de Alasca perderam a luz magnífica, o gelo não se congela mais. Não importa quantas vezes ela pisque, o poder dentro de si se tornou névoa, deixando tudo em si sem emoção ou vida.
      Dentro de mim, algo se encolhe — a alma dela — como se o que ela está sentindo também a ferisse na alma, sendo sentida uma pequena fração por mim. Meu interior fica gelado, bem no núcleo do meu poder, fazendo-me esfriar e a irritação ir embora. Zenny se encolhe com isso, odiando o que está acontecendo. Não por dentro está frio, e sim por tudo ao meu redor. Posso senti a alma de Alasca presa, na cela que sou eu. Senti o desejo de liberdade, a vontade de não pertencer a ninguém.
      — A barreira em você pode ser bem resistente, impossível de ser quebrada por si só, já que não foi você que a ergueu — explicou Alasca, sem emoção, tranquila e vazia. — Barreiras colocadas por outras pessoas existe um propósito. Se algo separa você de Zenny, então tente achar algo externo que ambos sintam por conta própria a mesma coisa. Assim, a barreira pode ser quebrada. — Suspirou, exausta. — Me leve de volta para a mansão, não tenho mais nada que queira tirar de mim. Faça meditação em um lugar que se ache seguro, pode ajudar a sentir essa barreira. E faça de olhos fechados.
      Tento entender tudo que Alasca disse.
      Meditação nunca foi o meu forte, agora preciso focar nisso. Se eu não consigo quebrar a barreira, então preciso me apaixonar verdadeiramente por alguém; não só eu, Zenny também. Eu e o dragão temos que amar apenas uma pessoa, sem compartilhar tal sentimento. Dois seres amando o mesmo alguém para ser mesclados e se tornarem apenas um sentimento — um só ser. Tudo para mim parece confuso, e realmente é.
      — O que aconteceu? — perguntei a Alasca.
      Eu poderia sair andando de volta para a mansão e nunca mais ter que ficar sozinho com a soldado infernal, mas o que acabou de acontecer foi confuso, estranho e errado. Alasca não recua passos dessa forma apenas com palavras, e ainda sentir na alma. Já a xinguei tanto e desejei que ela nunca tivesse nascido na cara dela, e ela nunca agiu dessa forma. O que eu disse que a fez estremecer tanto assim?
      — Nada — disse ela, apenas.
      Mentirosa, isso que Alasca é. 
      — O que te fez estremecer dessa forma? — perguntei. — Responda à pergunta sendo sincera em cada palavra. É uma ordem!
     Alasca fechou os olhos apertados. As rachaduras vermelhas começaram a surgir, fazendo-a gruir de dor e xingar-me de nomes impróprios. Seja lá o que tem por trás de tudo isso, Alasca não quer contar. A ordenei. Querendo ou não, ela abrirá a boca.
      — Você disse que irá me amarrar a um poste e me queimar viva — revelou, derrotada, fazendo com que as rachaduras vermelhas parassem de surgir nela. — Isso me fez estremecer.
      — Não gosta dessa ameaça? Imaginar ser queimada viva.
      Alasca abaixou o olhar.
      — Não preciso imaginar. Já sofri na pele tal castigo.
      Recuei um passo com a confissão dela. Zenny encolheu-se. Eu sei a dor do fogo queimar a pele, quando ainda negava ser místico.  Pequenas chamas ocasionavam um inferno ardente no meu corpo.
      — Conte-me a história toda. É uma ordem!
      Quero ouvi-la.
      — No palácio de Vannir, depois que matei Ethan e me tornei uma 5, estava tendo uma celebração aos soldados infernais. Todos os governantes mais importantes estavam presentes, reconhecendo-nos como demônios e filhos de Vannir. — A respiração de Alasca começou a ficar pensada. — Ira achou uma boa ideia de dizer a minha promessa de morte para ele e para Vannir, na frente de todos. Vannir ficou furioso. Me ordenou que eu falasse a verdade, então declarei a todos que a promessa era verdadeira. — Ela olhou para mim, seus olhos mais vazios do que um buraco sem luz. — Fui declarada impura. Minha sentença seria a morte, mas Vannir achou melhor me oferecer uma proposta. Disse que a filha dele merecia uma segunda chance.
      — Que proposta? — perguntei, o nervosismo na voz que não sei o motivo de tê-la.
      — Eu poderia ter a minha purificação de duas formas. A primeira: se eu me ajoelhasse perante a ele por conta própria e tirasse a promessa. A outra: por meio de um castigo severo. — Posso ver que Alasca abraça a si mesma, como conforto para continuar. Alasca se abraça, porque sabe que ninguém abraçaria ela. — Vannir me obrigou a contar em como passei a noite com Miguel, em como ele me tocou. Então, o castigo seria por meio de fogo, já que fui tocada pelo um príncipe do fogo. Vannir me ordenou a dizer se eu amava Miguel, e eu neguei, disse a verdade. — Alasca apenas deixava as palavras saírem. — Fui orgulha demais. Teimosa demais para aceitar me ajoelhar e tirar a minha promessa. Eu já tinha matado Ethan, aquilo me arruinou de todas as formas possíveis, então o castigo de purificação seria nada para tudo que eu já fiz com os inocentes. Invés de tirar a promessa, apenas a repetir em alto e bom som na frente de todos. Com isso, fui levada a um poste, no meio do salão de celebração, amarrada a ele. Vannir ordenou que Ryan se transformasse na aparência de Miguel. Depois me ordenou que o declarasse o herdeiro do trono. Assim que o declarava, eu era queimada viva.
      Alasca engoliu saliva, já cheia de dor que querem a fazer chorar. A soldado não derramará uma lágrima sequer na minha frente, não me dará o prazer de vê-la sofrer externamente, porque a alma dela aperta o meu peito, o sofrimento que já passou, e teme passar novamente.
      — Cada pedacinho de mim foi queimado, para que nenhum lugar que Miguel tocou ficasse intacto. Então, antes de eu morrer, o fogo apagou e fui levada para ser regenerada. Vannir usou o próprio poder para recriar minha pele, tudo de mim. Disse que a minha beleza seria apenas um disfarce para o monstro que eu realmente era.
      — Foi queimada viva naquele dia. — Sinto que perdi chão, sendo engolido pela terra, mais para baixo, um lugar vazio que os Esquelétros não conseguem chegar.
      Alasca negou.
      — Fui queimada viva por todos os anos que pertenci a Vannir. Sempre no dia que Ethan foi morto, eu era queimada viva e regenerada. Eu só seria parada de ser castigada se queimasse o Reino do Fogo e levasse Miguel até Vannir. Sem ordens, apenas com minha consciência, nunca fiz o que Vannir queria, então meu castigo continuou. — Alasca conta uma verdadeira história de terror. Uma história com ela de protagonista, aquela que sofre e não possui salvação. Onde, no final, a morte é uma benção, tendo que continuar viva como o maior castigo que a perturba: as lembranças. — Fui obrigada a passar noites com todos os meus irmãos, para ser os toques deles, pois eram puros. Não importasse se eu protestava, eu era obrigada a aceitar. Meus irmãos foram ordenados a me tocarem, já que preferiam serem torturados do que tocar na irmã sem o consentimento dela. Eram brutos e sem compaixão, como o rei ordenava que fossem. Vannir queria que eu aprendesse que não existe carinho quando tocam em mim, apenas a brutalidade. Além dos meus irmãos, também fui obrigada a ser tocada pelo príncipe do Inferno, Luxúria.
      Fico pasmo.
      Alasca continuava, não parava essa tortura ouvinte:
      — Era horrível, a dor, o sofrimento que depois ficava. Meus irmãos estavam lá, sempre subornando Vannir, o bajulando para que cada dia eu respirasse e fosse menos castigada. Eram eles quem realmente amava, meus irmãos desde o início.  Mas quando soube que me queriam presa, e minha alma está em você sem ser um acidente, senti-me sozinha desde o início. 
      Minhas mãos estão trêmulas. Tento me manter firme enquanto encaro Alasca, enquanto encaro os olhos vazios da soldado infernal, enquanto a encaro se abraçar para ter conforto. Tenho uma intensa vontade de envolvê-la em meus braços e apertá-la contra o me peito para que ela sentisse o toque de conforto de outra pessoa, não a brutalidade que todos passam. Nada faço, e nada farei.
      Talvez agora eu entenda o porquê de Maya viver abraçando a irmã, gentil aos pequenos toques, sempre delicada. A ninfa já ouviu essa mesma história, a única que está disposta de coração aberto a abraçar a ferida de Alasca, e tentar cicatrizar com o verdadeiro amor.
      Quero encher meus pulmões de ar e chamá-la de mentirosa. Pela primeira vez, desde que Alasca apareceu, quero que me diga que isso é realmente uma mentira, que inventou essa história para me enganar, que isso faz parte de seu plano. Mas foi uma ordem, uma que não pode ser quebrada. Alasca não sente dor da ordem que dei, não há rachaduras vermelhas, não há incômodo — ela disse a verdade.
      Se não posso chamá-la de mentirosa, então tento ficar, pelo menos, entusiasmado. Alasca sofreu, e eu deveria estar pulando de felicidade. A soldado infernal fez um inferno na minha vida, o virou de cabeça para baixo. Quero Alasca morta, desejo isso intensamente, mas, aqui e agora, não sei o que sentir.
      Por que eu quero chorar? Por que quero a abraçar? Por quê? Por quê? Por quê? Por que sempre existirá perguntas que tenho medo das respostas?
      Zenny se encolheu. Se encolheu para perto daquele núcleo gelado, o aquecendo aos poucos, como um pequeno conforto. Um pensamento de Zenny surgiu, e dessa vez faço questão de ampliá-lo.
      — E Selene? — perguntei pela dragão dela.
       Os pensamentos de Zenny grita o nome de Selene a cada segundo. A mística sofreu, então a dragão não ficaria de fora.
      — Eu só poderia me transformar se fosse para batalhar na guerra. As últimas vezes que voei sem ser em um campo de batalha foi nos três anos que passei no Reino de Fogo. — Alasca deixou um suspiro sair. Um suspiro de falta. — Zenny, o de Ethan, me mostrou o reino inteiro, me mostrou o ninho dos dragões. Selene tinha livre acesso para bater asas. — Ela abaixou o tom de voz. — Depois que Vannir morreu, fui presa. Não só eu, como Selene também foi em mim. Quando Ira me tirou da prisão, ele achou uma boa não me fazer mais voar. Fui proibida de me transformar, de caçar ou acasalar. Ira nunca me deixou comer carne quando estava em seus domínios, vivi de frutas e cereais, tudo que a terra poderia fornecer. Nos últimos quatro meses que se passaram, tentei me adaptar a minha dieta de carne. A respirar depois de anos sufocada.
      — Está presa por anos. — Zenny sentiu a dor disso. — Presa por anos... Sem voar, sem caçar ou acasalar. Presa por anos.
      Zenny odeia prisões, simplesmente por ele já ter sofrido na pele a sensação de estar em uma por anos.
      — Eu te ouço, Zenny. — Por hoje, Zenny tomará as rédeas da situação. Eu e Alasca precisamos escutar nossos outros eu. — Eu sinto você.
      — Também sinto você.
      Respirei fundo.
      Agora, vou além do meu ódio de Alasca, além de querer a sua morte. Vou até Selene, a dragão do meu inferno pessoal.
      — Quero quer se transforme essa noite. Quero que se transforme agora. — Eu dizia para mim mesmo: continue a ouvir Zenny. — Mostre-me Selene.
      A soldado parou de se abraçar e me encarou: seus olhos estavam ilegíveis. Toquei no ponto central de Alasca, forte e frágil, ao mesmo tempo. Não existe apenas Alasca, há Selene, dois em um. Em todas as vezes, Selene teve uma sentença daqueles que a ordenava: a prisão com celas invisíveis.
      Todos os mestres dela a prendeu. Eu a soltarei.
      — Vai me torturar na pele dragônica? — perguntou ela, duvidosa.
      Faço uma careta em reprovação.
      — Por sol. Claro que não! — praguejei. — O que te faz pensar que eu faria isso?
      Ela deu de ombros.
       — Então, posso me transformar mesmo? — Assenti com a cabeça. A soldado arrumou a postura. — Como está com a minha alma, então preciso do seu sangue e uma autorização mais coerente.
      Bufei.
      Esqueci que magias ou poderes de anulação requerem formalidades, palavras firmes e certas.
       — Eu, Nicolas Flames, autorizo que se transforme em Selene. Zenny Flames concorda com a decisão. Como seu mestre atual, anulo todas as ordens dos antigos. Agora estar livre da prisão que Selene foi colocada. Seja livre.
      Alasca caminhou até mim, estirou o braço para pegar o meu. A 5 alisou a tatuagem de luas em meu pulso direito, não como uma forma de carinho para mim, e sim para estar mais perto da própria alma sem a ferir — um simples rasgo e ela sentirá tudo na alma.
       Alasca levou o meu pulso para perto da sua boca. Não a impeço de fazer isso. A soldado olhou uma última vez para mim antes de me morder, bem em cima da tatuagem de luas.
      Sem dor.
      Alasca não sente dor por perfurar as luas com seus caninos. A alma dela fica agitada, querendo a todo momento mais aproximação da dona.
       Posso sentir meu sangue sendo sugado para a boca da soldado infernal. Alasca tomava cada gole dele com precisão e certa urgência — a 5 está sedenta. No fundo, sentir-me bem ao saber que meu sangue é a bebida que Alasca possui necessidade de tomar, assim como o dela é para mim.
      Alasca parou de beber o meu sangue, mas ficou perto do meu pulso. Seu peito descia e subia pesadamente, as mãos mais frias e a cada respiração saia fumaça branca, como se uma pessoa sentisse muito frio ao extremo.
       Levo minha mão esquerda até Alasca, erguendo o seu queixo para olhá-la. Assim que o fiz, Zenny se agitou.
       Os olhos da soldado infernal estavam brancos e brilhando com intensidade. Não tinha nada de humano naquele olhar, até porque para quem observo não é humana, e sim um dragão.
       Levo minha boca para perto do ouvido de Alasca — uma ação involuntária minha. Zenny quis fazer isso, e apenas soube que fiz a sua ação quando eu já estava com a boca bem do lado do ouvido dela. Então, o dragão me fez fazer outra ação involuntária.
      — Deixe-me vê-la, Selene — falei em provocação, a voz rouca e grave. A voz de Zenny. — Transforme-se!
      Alasca empurrou-me para trás, querendo distância de mim. Não Alasca, Selene — as duas. A dragão rosnou pra mim e me olhava mortalmente. Seu corpo já brilhava com intensidade. Magia azul a consumia sem parar.
      Assim como a soldado infernal, deixei que meu próprio corpo fosse consumido pelo meu poder, me levando além da carne mística.

A Árvore da Vida - Parte 1 ( Volume 3)Onde histórias criam vida. Descubra agora