Cap. 7

367 51 34
                                    

"Todas as palavras recolheram-se ao coração murmurando: eis aqui um que não fará grande carreira no mundo. As emoções o dominam." - Dom Casmurro, Machado de Assis.

#############

[SeuNome]

A impressão que a passagem daquelas duas mulheres causou em mim não durou muito. Claro, não nego que, em alguns momentos do restante daquele dia, a lembrança daquela estranha interação retornou a minha mente com mais insistência e vivacidade que eu gostaria, mas eis aí uma memória que era fácil e recorrentemente ofuscada pelos argumentos que eu queria ter utilizado para discutir com o Detetive Joe Hartmann, vulgo meu pai, mas que só apareciam depois que já não eram mais necessários. Não o esperei chegar, sabia que só sairia do trabalho durante a madrugada, o que fazia com que eu fosse uma presença solitária dentro daquela casa que há vários anos atrás, mas por um curtíssimo período, havia sido habitada por uma família comum, tradicionalmente feliz e completa. Mas uma ruptura se deu em tal perfeito lar quando eu tinha seis anos de idade: minha mãe conseguiu o divórcio que tanto queria e, em vez de me levar consigo como toda boa e qualquer mãe faria, me deixou a mercê do que era viver com meu pai.

Mas veja bem, não se pode dizer que só houveram pontos negativos provindos do rompimento. Eu cresci independente demais e, sem mãe e, sinceramente, ao que parecia, também sem pai, não haveria maneira mais propícia para uma criança amadurecer mais rápido do que era normal. É daqui também que surgem os relacionamentos com cães, a maioria já velhos amigos falecidos, porém, agora eu tinha Artie. Apesar da maturidade prematura, as pessoas da cidade ainda me viam como se eu fosse irresponsável porque eu não estudava e nem trabalhava, mas não era porque eu queria, há anos eu vinha esperando um e-mail das universidades para as quais havia tentado o processo seletivo e eu nunca havia recebido uma resposta favorável. Com o passar dos anos e o aumento das tentativas frustradas, fui deixando de lado as chances de estudar e passei a focar no adestramento de cães, mais por hobbie do que por trabalho.

Meu pai, quando estava por perto, sempre me consolava por não ter obtido sucesso nas submissões, porém, no fundo eu via que, de alguma forma, ele sentia certa felicidade por eu ainda permanecer ali. Entretanto, preciso e serei honesta: o que eu mais queria era escapar daquele lugar e via na oportunidade de visitar minha mãe, uma forma de sair dali, pelo menos por alguns dias. Eis aí o motivo da discussão com meu pai.

- Talvez amanhã ele possa mudar de ideia. - Murmurei mentindo para mim mesma antes de adormecer por completo.

(...)

- Artie, faça silêncio! - Exclamei roucamente quando comecei a despertar ao ouvir o latido insistente do cachorro vindo do lado de fora da casa.

Eu queria ficar na cama e até tentei ignorar o alarde do cão cobrindo minha cabeça com o travesseiro, porém, ele continuava, insistentemente, na sua tarefa de chamar minha atenção para o que quer que fosse que estivesse sob sua mira naquela fria manhã: era sinal que o inverno acabara de chegar a Fairfield.

Deixei a cama com o mesmo pijama que usava e com uma cara de mau humor que afastaria qualquer indivíduo. Apenas passei a mão pelo cabelo para que ficasse mais aceitável e coloquei os óculos. Eu não podia mais ignorar aquele alarme tão estridente e vivo na minha varanda, pois, para tanta insistência, só poderia se tratar de alguma visita indesejada.

Passei pela sala de estar, olhei no relógio de ponteiro já bem antigo pendurado na parede acima de uma estante: 9 horas da manhã. Que dia é hoje? Quinta-feira? Quinta-feira, creio que sim. Abri a porta e a claridade do dia e a brisa gelada de início de inverno me acertaram em cheio causando, a primeira, irritação em meus olhos, e a segunda, um arrepio no meu corpo. Situação desconfortável, mas não pior do que ver do outro lado da grade que cercava a minha casa uma Anne toda embalada em um sobretudo. Eu esperava qualquer pessoa, desejava qualquer outra pessoa, mas Anne era como ser acordada com um balde de água fria na cara.

(In)Finito [Hailee Steinfeld/You]Onde histórias criam vida. Descubra agora