6. Dog days are not over

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Seokjin tinha bastante paciência e era bem resistente, de fato. Os anos nas ruas, no orfanato e na "Família" tinham o ensinado a ser assim. Sua vontade era de gritar com Hoseok e o torturar até que ele dissesse onde estava sua garotinha, e depois o espancar até que ele apagasse. Em vez disso, obedeceu a ordem calado, com a respiração tranquila, sem que uma única gota de suor caísse de sua pele. Sem demonstrar nenhum sinal do desespero que sentia, dirigia com calma, dentro do limite de velocidade, pelo caminho indicado no GPS, como se estivesse num encontro casual e não numa espécie de sequestro. Não esboçou, igualmente, nenhuma reação quando Hoseok saiu do banco de trás e se posicionou no assento do carona, com a arma em punho, invisível para quem estava fora, mas bastante exposta para o motorista. Seguiu dirigindo, fazendo o trajeto ordenado, enquanto o silêncio os engolia. Agia como se nada estivesse acontecendo, mas por dentro, estava em pânico.

— Eu senti mesmo a sua falta, bro. — Hoseok falou num dado momento. — Todos nós sentimos muito a sua falta lá em casa.

A resposta de Seokjin foi continuar calado. Nenhum sorriso. Nenhuma repulsa. Nada se podia depreender de suas feições impassíveis.

Seokjin não gostava do que a vida tinha o levado a ser. Durante anos ele foi alguém desprezível que enganava pessoas inocentes para que o Appa pudesse se aproveitar das informações que conseguia. Por vezes, torturou pessoas não tão inocentes assim para tirar delas o que sua diplomacia não conseguiria. Tinha feito atrocidades, e era absurdamente bom em todas as ações para as quais era designado. E essa era a pior parte: ser tão bom em executar suas funções.

Quando se deu conta do tipo de monstro que tinha se tornado, ao reconhecer o quanto era bom em mentir, ludibriar e machucar física e psicologicamente alguém sem sentir a menor culpa, isso o fez desejar que nunca tivesse nascido. Mas, apesar de toda a parte ruim, algumas coisas valiam muito, e dentre elas estava a relação com seus dois "irmãos", Hoseok e Heejin. Podia dizer que os amava, tanto quanto possível, e os dois sempre o fizeram se sentir amado. Se tinha algo do que sentia falta daqueles tempos criminosos, era de ser um trio com eles. Muito mais que um trio, ele sentia falta de ser uma família com os dois irmãos que o destino o tinha dado, ainda que de forma torta. No meio de tanta violência e podridão, haviam memórias gostosas que Seokjin não contava a ninguém, mas que não se furtava de acalentar vez ou outra.

O primeiro bolo que tinha assado na vida fora para comemorar o aniversário de onze anos de Heejin. Tinha ficado horroroso, mas ela ficou tão contente e comeu com tanto gosto que Seokjin decidiu ali que aprenderia a fazer bolos cada vez melhores, a fim de deixar as pessoas tão felizes quanto Heejin tinha ficado. A primeira vez que ficou bêbado foi quando Hoseok roubou um uísque do armário do Appa. Tinha treze anos na época, e tinha ficado tão fora de si que apanhou do Appa em meio a gargalhadas, que faziam Hoseok e Heejin gargalharem junto enquanto também recebiam surras de chicote. Dirigiu um carro pela primeira vez aos quinze anos, quando precisou ir buscar Heejin num encontro escondido com uma garota da escola, enquanto Hoseok enrolava o Appa para garantir que ele não descobriria a escapada da irmã. Quase tinha batido num poste, mas conseguiram chegar a tempo, e mesmo desconfiado, o Appa nunca descobriu a façanha — ou fingiu que nunca descobriu.

Eram essas e tantas outras as lembranças familiares que ele tinha. Lembrava-se de seus pais e de sua irmã de sangue, mas eles eram mais como borrões do que outra coisa. As memórias da Coreia do Norte eram ofuscadas pelas que construiu com seus dois irmãos durante sua estada na Família. Elas faziam com que sentisse falta deles, apesar de tudo. Eram extremamente conectados, e isso era algo que não tinha preço. Toda essa ligação, contudo, também era manchada de sangue e dor, e por isso Seokjin teve que se afastar de tudo aquilo e nascer de novo, bem longe deles.

— Você pode falar comigo, Jeremy. Eu sei que você quer. Não precisa ficar se segurando tanto. — Hoseok comentou baixo, depois de um bom tempo observando o outro.

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