9. Arson

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Oir!

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_Alguns anos antes_

Dias de treinamento eram os mais exaustivos para Jeremy. Estudar pessoas, criar personalidades diferentes, fingir ser outra pessoa, caçar, sequestrar e torturar gente, tudo isso também era muito cansativo, mas lidava bem com o cansaço causado por suas atribuições. Seu trabalho externo envolvia pessoas que não conhecia, com as quais não formava afinidades, por isso, se sentia tranquilo, de certa forma. Apesar de estudar cada um com o qual se envolveria muito bem, não reservava a esses indivíduos nenhum aspecto sentimental de seu ser. Tinha aprendido direitinho como se manter emocionalmente de lado quando trabalhava. Isso não acontecia com as crianças e os adolescentes da Família, porém. Com eles, acabava por deixar que alguns sentimentos aflorassem.

Nem sempre tinha sido assim. Antes de Jane, para ser mais específico, Jeremy conseguia se manter bastante frio em todos os aspectos dos treinamentos. Depois dela, contudo, um dos muros que construiu dentro de si começou a ruir, e nunca mais foi o mesmo. Todas as vezes em que precisava ensinar um jovenzinho a lutar, a atirar, a manusear uma arma branca, um pedacinho desse muro se quebrava um tantinho mais, deixando um dos lados de sua autoproteção cada vez mais exposto. Isso era ruim para alguém em sua posição. Deixava-o com uma escolha muito difícil a fazer: reconstruir o muro e voltar a ser quem era antes, ou destruir tudo de uma vez, queimando pontes e largando aquela vida para trás? Nenhuma das alternativas era fácil. Permitir-se sem que sempre tinha sido doeria demais, lhe cobraria um preço bastante alto. Tentar sair daquilo... Ninguém tinha conseguido fazer isso com vida. Alguns até tinham tentado, mas não viveram o suficiente para contarem a história mais de uma vez.

Jeremy não sabia o que fazer. Não havia um caminho promissor para ele. Não queria arriscar a própria vida, mas também não queria passar os seus dias a ser uma pessoa que não o agradava. Cometer crimes não tinha vindo de modo natural, tinha lhe sido imposto. Entretanto, teria a chance de recomeçar, de descobrir quem realmente era e o que gostava de fazer, em algum lugar bem longe da Família? A história dizia que não, e quando pensava no conjunto da obra, achava que a única solução era a morte. Não tinha nada a perder morrendo. Amava Rooster e Polly, mas os amava tanto assim ao ponto de seguir com eles numa trilha que o machucava? Sabia que eles o amavam, igualmente, e que sentiriam sua falta. Porém, também estava ciente de que na Família ninguém era, de fato, insubstituível. Em algum momento eles teriam outra pessoa para ocupar o seu lugar. Poderia até ser Jimmy, o garoto que estava naquele exato momento tentando atirar numa maçã apoiada no topo da cabeça de Johnny, um de seus colegas de treinamento. Ele era um jovem promissor. Um tanto tímido e inseguro para conseguir dar conta dos afazeres que cabiam a Jeremy, mas perfeitamente moldável e capaz. Jeremy não era lá grandes coisas quando iniciou carreira na Família. Se quisesse, Jimmy poderia aprender. Não aprenderia, contudo, se continuasse hesitando diante de seu novo desafio. Precisava atirar logo e acertar a maçã para não ser punido. Todavia, pelo que Jeremy vinha presenciando até então, ele não faria a tentativa sem um incentivo.

Seu muro podia estar ruindo, mas ainda era parte da Família. Ainda tinha obrigações a cumprir. Seguia tendo suas responsabilidades. Se não as concluísse, o punido seria ele. Era um dos preferidos do Appa, qualquer um era capaz de dizer. Rooster, Polly e ele eram, sem sombra de dúvidas, os herdeiros naturais daquele núcleo da Família. Em algum momento o Appa escolheria um dos três para ocupar o seu lugar depois de sua morte, e os demais seriam os braços esquerdo e direito do escolhido. Nada daquilo jamais tinha sido falado, porém era um fato consumado, sabido por qualquer um. Se o Appa sabia o que era o amor, um filete que fosse de tal sentimento, era para esses três que ele o dedicava. Isso, contudo, não o impedia de punir severamente qualquer deles que cometesse erros ou não agisse de acordo com as regras. E as punições eram proporcionais ao tamanho da preferência que o Appa tinha por eles. Jeremy não tinha se recuperado muito bem da última vez em que foi punido. Polly mantinha uma pequena falha no caminhar por conta de uma delas, e Rooster tinha cicatrizes que, apesar de achar bonitas, o faziam se lembrar constantemente de como as tinha conquistado. Nenhum deles, em sã consciência, faria algo para deliberadamente enfrentar algo assim. Por isso, Jeremy precisava fazer algo a respeito de Jimmy.

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