Na altura, eu havia chegado à escola toda encapotada de roupas. Ainda que estivéssemos no inverno, aquela sexta-feira estava surpreendentemente fria e chuvosa, muito mais do que o habitual. Já para dentro da classe, a professora de Língua Portuguesa escrevia na lousa sobre Camões enquanto falava de Portugal renascentista. O assunto era da minha gama de interesses, motivo pelo qual estava de todo absorta na aula. A sala estava incrivelmente silenciosa, pois a grande maioria do pessoal estava, de fato, prestando a atenção no conteúdo. Os pingos de chuva que caiam sobre o teto pareciam compor uma agradável sinfonia relaxante. Aqueles ares de inverno traziam-me paz. Entretanto, três batidas súbitas na porta da classe romperam com essa canção tão querida e hipnótica.
Assim que ouviu os toques, a professora se direcionou até à porta de madeira e abriu-a, revelando-nos um grupo de cinco alunos da turma da sala ao lado. Depois de cochicharem qualquer coisa entre si, voltaram-se até nós:
— Olá, gente — anunciou uma das garotas, um pouco tímida. — Somos do 2º ano A e viemos fazer um convite a vocês.
— Todos devem saber que a escola está organizando um show de talentos para daqui um mês. Por isso, a nossa sala resolveu montar uma espécie de teatro musical — continuou a outra garota. — Vamos ter uma banda, formada pelos nossos amigos aqui — apontou para os três garotos que estavam logo ao lado esquerdo da porta —, as pessoas que irão compor nosso coral e aqueles que irão atuar na peça. Então estamos convidando todas as classes de Ensino Médio para participarem do nosso teatro musical.
— A gente vai deixar esta folha com vocês — desta vez falou um garoto de cabelos compridos, entregando uma folha de caderno em branco para a professora. — Quem se interessar pela ideia pode escrever o nome completo e se deseja participar do teatro ou do coral. Na última aula, voltaremos para recolher a lista dos interessados.
— Aliás, vamos chamar todos os que escreverem os nomes na lista para nosso primeiro ensaio, logo na segunda-feira. Conversamos com o diretor e ele deixou a gente ensaiar durante as duas últimas aulas deste mês de junho inteiro. Nenhum professor vai marcar falta para quem estiver ensaiando — completou a garota tímida.
— Bem, acho que era só isso mesmo — concluiu o garoto de cabelos compridos, com um sorriso simpático.
Disso, o grupo recolheu-se para fora da sala. Entretanto, mal consegui prestar a atenção em todo esse movimento, tampouco no restante da aula sobre Camões. Havia um particular naquela cena tão natural que me abismou um bocado: o garoto de cabelos compridos, quem entregou a folha em branco à professora, era idêntico ao "muso" da aula de Artes, o homem dos cabelos loiros que eu usava como foto de user da minha conta Jmilani537, na qual eu escrevia meus romances pseudofilosóficos. Na verdade, para ser pontual e realista, o garoto tratava-se da versão adolescente do quarentão estampado na imagem. Mas, invariavelmente, fiquei admiradíssima pela coincidência.
Esse homem da minha foto de user chamava-se Giuseppe De Luca. Nascido em Milão, havia sido diretor de cinema em meados dos anos 90, numa altura em que o cinema italiano estava praticamente falido. Giuseppe não era meu ídolo, menos ainda referencial. Nunca havia sequer me dado o trabalho de assistir a algum de seus filmes. O caso é que em meados de 2010 ele participou de uma sessão de fotos sensuais que encontrei na internet de uma forma incrivelmente aleatória.
Havia qualquer coisa na aparência do quarentão que despertava meus desejos mais luxuriosos. Talvez a fonte do meu encanto fossem seus misteriosos olhos cinzentos, os fios cacheados e alourados ou, quem sabe, o ar bad boy por trás dos seus quarenta e dois anos de idade. Por mais esquisito que isso possa parecer, suas linhas de expressão me causavam vertigens.
Foram durante essas lembranças desorganizadas que associei o garoto, cujo nome sequer conhecia, a um possível parceiro a altura daquilo que idealizava em Giuseppe. Motivada pela semelhança notável que existia entre a aparência de ambos, despertei uma paixão sedenta e, definitivamente, imatura pelo rapaz que integraria a banda do teatro musical.
Pensativa, criei mil suposições para o fato de eu nunca ter notado, em qualquer outra ocasião, o garoto de cabelos compridos. Imaginei que talvez tivesse sido transferido à escola ainda por aqueles meses, invariavelmente à minha distração. Com efeito, por entre todos os meus pensamentos, o sinal da segunda aula tocou, anunciando-nos a hora do intervalo. Não tardei para levantar-me de minha cadeira num ímpeto, direcionando-me até o grupinho de minhas amigas. Assim que me juntei a elas, percebi que Fabiana estava comentando algo sobre o teatro musical. Ouvi-a comentar:
— Que ideia idiota!
— Mas por quê? — indagou Gisele.
— Você acha mesmo que juntar um monte de gente da escola toda para montar um teatro em menos de um mês vai dar certo? Tenho certeza que vai ficar uma droga — respondeu ela.
— Ah, mas como você é chata. — Direcionei-me até Fabiana. — Na verdade eu me interessei bastante pela ideia e acho que vou até participar.
— Sério? — exclamou Fabiana, surpresa.
— Sim, quero fazer parte do coral — respondi.
— Se você vai, eu também vou — levantou a voz Karen.
— Vocês são corajosas. — declarou Maria. — Eu morreria de vergonha.
E assim que o intervalo terminou, Karen e eu fomos escrever nossos nomes na folha deixada em cima da mesa dos professores. Estava decretado: cantaríamos no teatro musical.
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Café Amargo 1 - A Morte Mão Amiga (Duologia Cafés Parte 1)
RomanceJuliana é uma jovem moça de vida apática e vazia. Reduziu-se ao apartamento em Lisboa, às novelas brasileiras e ao futebol do Sporting CP. Vive para um passado mal resolvido registrado, não somente em sua memória, mas também através dos versos de um...