A COLHEITA

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Darsah ( A bordo da nave interplanetária Anúria)

— Alteza?!

O Sussurro longínquo me traz de volta à realidade.

— Sim, Ária?!

— Algo o está aborrecendo?

— É sério, meu amigo, que está me perguntando isso?

Ária sabia o quanto isso tudo me aborrecia.
Estávamos a um dia de distância da Terra e o que íamos fazer lá era o motivo de todo o meu incômodo.
Nunca me agradou a ideia de buscar fêmeas em outros povos, mesmo que esse fosse um selecionado para cultivo desde sua tenra existência.
Meus ancestrais haviam ajudado a civilização humana a caminhar em seu início, ainda assim, eu não me sentia a vontade para fazer isso.

Meu pai me empurrou para essa situação; de acordo com seus conceitos, eu só seria um bom soberano se conseguisse sacrificar algo em benefício do meu povo.
Mas fico aqui imaginando se eu de fato estava sacrificando algo ou se estaria apenas sacrificando essas fêmeas em nosso benefício.

A nossa decadência de natalidade nos fez buscar o cruzamento de espécies e o povo escolhido era aquele com quem tínhamos um pacto ancestral do qual apenas um grupo seleto tinha conhecimento; aqueles que nos serviam desde sempre.
Nessa parte, até considerava uma troca benéfica.
Sim, estivemos por trás de muitas descobertas científicas e dos avanços da humanidade.
Desde a área tecnológica, à medicamentos importantes.

Era no mínimo contraditório que uma raça milenar como a minha sofresse uma degradação que nem nossos melhores cientistas foram capazes de resolver; talvez a culpa fosse nossa mesmo. Tentamos forçar a natureza à nossa vontade e a coisa saiu do nosso controle e o resultado era estarmos aqui na terra para uma colheita nada comum.
Havíamos aprendido: subjugar a natureza é um caminho tortuoso e perigoso, é flertar com a própria perdição.

Eu nunca havia participado de nenhuma colheita, aliás adiei isso o quanto pude, mas obviamente meu pai percebeu que eu estava de má vontade e me obrigou a vir à Terra dessa vez.
Ah, aquele velho tirano!
Quando dei por mim estava cerrando os punhos.

— Meu príncipe, não tome isso como uma tortura...pense que é para o bem do nosso povo. Os outros estão animados com essa possibilidade de colheita...

Maldição!

Olho em volta e observo o nítido entusiasmo de alguns tripulantes.
Ah, quem me dera fosse só descer à Terra, cumprir minha obrigação e retornar.
Não, ainda teríamos que aguardar o resultado da maldita colheita.

Como eles podiam estar tão animados com isso?

— Não se preocupe, comandante, não vou estragar as coisas.

Depois dessa conversa acabo retornando para o meu alojamento. Preciso descansar para cumprir meu papel logo mais.
A questão é que ter tanta coisa em mente acaba tornando meu sono relutante e mal consigo dormir.
Sei que minha aparência deve estar péssima para apresentar diante de uma fêmea e acabo indo tomar um bom banho; preciso estar apresentável.

Embora ainda não tenha sido comunicado, sei que estamos próximos à órbita da Terra e devo estar pronto para a cerimônia, mesmo com uma chance em um milhão de achar meu par perfeito nessa primeira tentativa.
Enquanto coloco minha túnica, um bip no meu bracelete me puxa para a realidade.

— Chegamos, alteza! Estamos à sua espera!

A voz de Ária é contida, mas não esconde sua emoção.
Respiro fundo e sigo para a sala de desembarque.
Estamos em modo invisível agora, a tecnologia da Terra não será capaz de nos detectar. Portanto, não teremos contratempos.
Então, descemos para o ponto de encontro.
Quem nos recebe é uma fêmea diminuta de olhos amendoados e azuis.
Ela veste sua túnica sacerdotal e nos saúda em nossa língua, conforme o protocolo.

Depois disso a seguimos para um ponto mais alto, enquanto ela ilumina o caminho com uma tocha.
Está uma noite fria e agradável. Não posso negar que o céu da Terra visto deste ponto é excepcionalmente belo.
Após subir os degraus das ruínas, nos deparamos com aquilo que tentei evitar numa centena de anos.

As fêmeas estão dispostas em altares de sacrifício com seus corpos esguios sob a luz do luar. Não é uma cena que me agrade ver e acabo cerrando os punhos até sentir a dor em minhas palmas.
O cheiro espesso de feromônios atinge minhas narinas.
Faço um sinal para que meus companheiros passem adiante de mim e eles vão.
Observo-os passarem por cada uma delas.

Ária é o primeiro a se deter diante de uma fêmea de cabelos vermelhos e pelo modo como a criaturinha o agarrou pela túnica e passou as pernas em volta do seu quadril, ele estaria entretido nas próximas horas.
Vejo com absoluta surpresa quando uma outra fêmea salta da plataforma e vai até ele.

Duas?

Realmente, ele estará muito ocupado mesmo. É raro encontrar uma fêmea compatível, duas então? É uma grande benção.

— O senhor não vai lá? — A fêmea ao meu lado me questiona na minha língua.

— Posso sentir daqui que não tenho compatibilidade com nenhuma delas. — Respondo e não lhe dou chances de dizer mais nada. — Não precisa me acompanhar!— digo contornando alguns degraus e indo noutra direção.

De certo modo, estou feliz que o resultado seja esse. Aproveito para espairecer e apreciar a bela paisagem.

Quando uma rajada de vento me atinge, por pouco não cambaleio, mas não por força do vento e sim, do cheiro. Meu corpo se move automaticamente naquela direção e logo à frente vejo uma fêmea paralisada, olhando a cena nada comum de acasalamento coletivo; suas mãos vão para seu rosto, cobrindo a própria visão.

— Meu Deus, só posso estar bêbada...eu não estou vendo isso...droga! Por que me sinto tão quente, de repente?!

O som da sua voz parecia um encanto proferido pelas sereias e eu era o macho sendo atraído para o abismo da perdição.
Quando outro macho a encarou mostrando interesse de se apresentar diante dela, mandei imediatamente um sinal de alerta e ele se afastou, ciente de que me enfrentar seria cortejar a morte.
Ao tentar se afastar do local, ela vem diretamente para mim e esbarra no meu corpo.

— Maldição! Quem pôs um muro aqui?!

Ela afasta as mãos do rosto e ao dá de cara comigo, se afasta, cautelosamente me olhando com olhos arregalados.

— Se afaste, estou armada...

Ela me ameaça puxando algo do bolso; não me parece nada que possa me machucar, mas por via das dúvidas, agarro seu braço fazendo-a derrubar o objeto.
Um grunhido baixo sai de sua garganta e pelo cheiro que ela exala, compreendo o porquê; embora ela não esteja como as outras fêmeas, ela certamente bebeu da bebida oferecida no ritual de celebração.
Seu corpo está quente e clama pelo meu.
Simplesmente não consigo me desviar e nem me controlar.
Meu corpo parece um vulcão em erupção.

— Céus, eu preciso de ajuda...

A suplica dela me faz perder o domínio de mim e termino puxando-a para os meus braços.
Seu corpo está quente e necessitado; ela está sofrendo. Algo de errado aconteceu, pois mesmo ela tendo tomado a porção de fertilidade, não era para perder o controle de si mesma dessa forma.
A porção era apenas um amplificador de feromônios que despertava o gene de compatibilidade com nossa raça, caso a fêmea tivesse o gene adormecido em seu corpo; esse método era utilizado para testar nossa compatibilidade com outras espécies.
Se as fêmeas reagissem a nós e nos escolhessem, éramos compatíveis; do contrário, íamos embora sem ter contato com elas.

Apesar de eu estar relutante, eu sei que nesse momento só há uma forma de ajudá-la e é isso que farei. Ela escolheu a mim, mesmo eu sabendo que todos deveriam se apresentar diante dela para tornar isso mais justo para ela.

De repente, senti medo que ela escolhesse a outro.
Por quê?!

Luzes No CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora