Delírios ao meio-dia

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Tsukishima acordou suando. Odiava o clima esquisito da ilha, que deixava sua pele fria grudenta e fedendo em questão de horas, por mais que ficasse imerso na água repleta de óleos e sais cheirosos. Seu quarto estava abafado, a luz alaranjada que era impedida de entrar completamente pelas janelas fechadas deixava tudo pior.

— Hoje vai ser um dia de merda. — resmungou, saindo da cama com um pulo impaciente. Ele bocejou uma vez, quase miando, e procurou os óculos redondos na mesa de cabeceira; não se importou em trocar de roupa nesse primeiro momento.

Assim que abriu a porta, deu de cara com Tadashi olhando para a parede com concentração, o indicador acariciando o material com uma delicadeza admirável, como se o castelo inteiro pudesse cair com um toque errado. A princípio Tsukishima não lhe deu muita importância, mas quando ele colocou aqueles olhos castanhos e brilhantes em si, o loiro sentiu o estômago fervilhar. Yamaguchi tinha as sardas. Tá, ele tinha notado em seu pescoço no outro dia, mas agora o padrão do rosto estava mais visível; aquele padrão. E não era apenas nas bochechas, mas também nos ombros, elas os cobriam como uma constelação particular. Incrível, infinita e ardente.

— Ei, ouviu o que eu falei? — Tadashi acenou na frente do rosto de Kei, parecia impaciente.

— Hm, não, desculpe. — ele desviou o olhar, que recaiu sobre o colar gêmeo de esmeralda. A pedra estava opaca, sem brilho.

— Eu disse que tenho perguntas a você, Tsukishima. Sobre... algumas coisas.

O pirata assentiu, um nó se formou na garganta. Devia ser apenas efeitos colaterais do calor, mas Tsukishima teve certeza de ter se lembrado do rosto dele. Só que tinha coisas erradas, não se encaixavam...

— Você está bem? — o esverdeado se viu obrigado a perguntar pelo modo que estava sendo olhado.

— S-sim, claro. Vamos para outro lugar mais fresco, capitão.

Era meio-dia quando Kiyoko apareceu no porto onde o Ophelia estava atracado, e Tanaka trabalhava com tanto empenho. A pirata estava decidida a dar uma chance àquele rapaz que tentou sem muito sucesso flertar com ela no jantar e durante as outras refeições. Mas Kiyoko tinha um buraco em seu coração, e tinha medo de preenchê-lo com algo que fosse quebrar novamente.

— Oi, Ryuu. — ela disse, a voz melodiosa e tímida. O engenheiro trabalhava no casco do navio, então foi fácil achá-lo em terra firme. — Está na hora do almoço, e como sei que provavelmente ficará aí até tarde, trouxe comida.

Kiyoko colocou uma trouxinha de pano ao lado dele, ela tinha cheiro de pão fresco e carne.

— Ah, obrigado, Kiyoko! — respondeu, sem tirar os olhos do prego que estava marcando para fincar na madeira. — Daqui a pouco eu pauso, isso está com um cheiro bom.

— Sem problemas.

O silêncio retornou, Tanaka nem assobiava, tamanha era a concentração para tudo sair perfeito. Perfeito, assim como ele! Esse pensamento fez Kiyoko sorrir minimamente, mas o sorriso logo se transformou numa expressão triste ao lembrar que havia dito isso para a pessoa que deixou seu coração com um buraco.

— Sabe, nós tínhamos outra pirata na tripulação. Yachi Hitoka, era o nome dela — o rapaz assentiu devagar, sinalizando que estava ouvindo. — Ela também foi nossa engenheira, a melhor que eu conheci durante todos os anos no mar. Mas... aconteceu um acidente e ela se foi.

Ela engoliu em seco, mexendo nos fios de cabelo para se distrair e não chorar na frente de Ryuu. O único indício de surpresa da parte dele, foi a parada súbita no martelo, que estava a centímetros do prego.

— Eu a amava, céus, como amava. E ela também me amou.

— O que eu... deveria fazer com essa informação? — Ryuu perguntou baixinho, receoso. — Quer que pare, te dê espaço? Qualquer coisa, me diga!

Mas Shimizu já não ouvia mais. Enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto como aquela cachoeira da ilha, a morena se aproximava com passos lentos até ele, os braços abertos imploravam por um consolo. Tanaka soltou todos os objetos das mãos e a abraçou, por reflexo. Seu coração estava disparado no peito, não por medo de ser rejeitado, mas preocupado com o estado de Kiyoko.

— O-obrigada, Tanaka. — soluçou ela, apertando o tecido da roupa dele.

Tanaka não reparou que agora só havia um braço o rodeando.

— Mas eu não posso amar outra pessoa que vai me deixar. Por isso — algo frio tocou seu estômago — você vai embora.

A dor aguda que se espalhou pelo corpo de Ryuu quando aquela adaga entrou até o cabo em seu corpo foi capaz de fazê-lo delirar; ele via duas Kiyokos, e cada uma tinha um par de olhos assustadoramente vermelhos.

O sangue manchou suas mãos, e saía rapidamente. Ele tentou andar, mas caiu de joelhos, tentou se arrastar até a mulher que havia virado as costas para si, limpando a faca com as mãos nuas, mas sua cara já estava no chão quando percebeu. Com custo, ele deitou de barriga para cima, com o sol queimando sua pele. É assim, então...

Tanaka fechou os olhos, respirando fundo e se arrependendo na hora, porque o simples ato desencadeava uma dor horrível. O vento soprou e começou a secar seu sangue quando perdeu a consciência completamente.

"Jovem rei de aparência serena

Descendente de sangue impuroFadado a ver seu lar cair em desgraça eterna

Pagará com sangue pelo mau agouro

Quando a lua estiver raivosa,
Um traidor com estrelas ardentes

Que carrega a pedra preciosa,

Vai reviver o deus da ilha onividente"

As palavras queimavam na pele de Tadashi, que estava diante do trono de pedra preta naquela sala escurecida que fora levado amarrado pela primeira vez. Uma profecia, era o que essas palavras significavam, e o esverdeado estava nela. Tsukishima havia dito que daria algumas respostas, mas ele não esperava que fossem tão específicas e assustadoras.

Aquela língua maldita, dos nômades, traçou seu destino sem um pingo de dó, o chamou de traidor e herói ao mesmo tempo. O trono era banhado na profecia, pois onde quer que tocasse na pedra, as palavras douradas surgiam e se entalhavam, como se alguém estivesse constantemente avisando a Tadashi sobre a ilha, sobre Tsukishima, sobre tudo.

Tadashi se afastou com um salto, soluçando. Kei observava alguns passos atrás, em silêncio, os olhos indo do pirata para o trono. Seu trono, Yamaguchi percebeu.

— Eu... — ele se ajoelhou no chão frio, os olhos arregalados — quero ir embora. 

𝐎𝐡, 𝐎𝐩𝐡𝐞𝐥𝐢𝐚!; TsukkiyamaOnde histórias criam vida. Descubra agora