Couch

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O cheiro de Harry está por todo canto.

É o que me motiva a abrir os olhos, meu corpo inteiro dói e é como se tivesse levado uma surra e, nessa surra, no mínimo oitenta socos na cabeça. Meus olhos tomam foco com dificuldade, estou deitada numa superfície macia e gostosa.

Aquele teto não é familiar. Pisco, pendo a cabeça para o lado e a figura de Harry numa poltrona me confunde ainda mais. Ele está tranquilo, assiste algo no celular e tem a cabeça apoiada numa almofada. Não sei quanto tempo o assisti, acho que mais supliquei para que me olhasse porque não conseguia dizer nada, mas nossos olhos se encontraram e sua feição mudou.

— Achei que tinha morrido. — Se levantou, bloqueando o celular.

— Você é bem engraçadinho, não? — Oh, não é que eu conseguia falar? — O que aconteceu?

— Você despencou de um morro. Eu te trouxe pra cá e limpei sua testa, você não sangrou muito e sua bolsa está intacta. — Ajoelhou do meu lado, me encarava. — Como você está se sentindo?

Meus olhos marejaram.

Patético. Agora tudo faz sentido. Sim, nós chegamos num morro não tão grande eu gritei que odiava Sam com todas as minhas forças. Também contei a Harry que hambúrguer é minha comida favorita e odeio escuro, conversamos sobre relações e futuro, era o tipo de papo que as pessoas têm após quatro taças de vinho às duas da manhã.

Não eram duas da manhã. Não tinha vinho. Só neve e, agora, um homem com olhos confusos me observando desmoronar em seu sofá. Funguei baixo, instintivamente cubro o rosto e me deixo chorar. Não consigo verbalizar nada que sinto, minhas lágrimas fazem isso por mim.

Estou no meu limite. Choro como uma criança, como a criança que fui. Não, como a criança que sou. Choro, mas não choro da mesma forma que fiz nesses dias. É como se aquela simples pergunta tirasse um fardo das minhas costas, minhas mãos tremem, não sei o motivo.

Eu apenas choro.

— Há anos não escuto isso. — Sussurrei tão baixo que jurei que ele não conseguiu ouvir.

Me sinto péssima. Um lixo. Meu nariz está sujo. Harry umedece os lábios e sua íris não sai de mim, mas não me julga: longe disso, olhos compreensivos e um tanto receosos me dizem que está tudo bem chorar. E aquele sentimento de acolhimento e afeto talvez fosse o que eu precisava.

Eu chorei muito. Muito mesmo, e quando terminei, me senti bem, revigorada. Limpo mais uma vez os olhos, lufo ar aos meus pulmões e tento dizer sem falhar:

— Estou ótima, seu sofá é confortável.

Ao contrário do que pensei, Harry riu. Sua risada nasalada me contagiou, seu hábito de negar com a cabeça foi perceptível e ele se sentou no tapete, de frente para mim.

— É um ótimo sofá, achei por trinta dólares.

Eu gosto. Ele não me perguntou o motivo. Harry não se incomodou com meu choro, não me perguntou nada. Harry me deixa confortável. Seus cachos são definidos agora, tenho uma boa visão de suas tatuagens já que os braços estão expostos, é estranho não o ver todo coberto por roupas de frio.

— Isso é uma borboleta? — Aponto para seu abdômen, ele cora.

— Sim, é a minha favorita. Eu fiz antes de vir pra cá, acho que duas semanas antes. — Se levantou, colocando os cabelos para trás.

Ergueu a regata branca para que eu conseguisse enxergar o traço bonito de sua tatuagem, a borboleta contornava seu estômago e acho que nunca vi uma tatuagem tão bonita. Tive vontade de tocar, mas me reduzi a sorrir curto e o analisar.

Oh não, aquilo...

— Você tem quatro mamilos?! Wow, eu tenho uma amiga que também tem quatro mamilos!

Sim, Sabrina. Minha fiel amiga.

— Sério?! Eu nunca ouvi falar de outra pessoa com quatro mamilos! — Senta no sofá de frente para mim, cruzando as pernas. — É o meu sonho dividir essa coroa com alguém.

Contei sobre a vez que Sabrina saiu com um cara e ele lambeu os quatro mamilos. Harry riu tanto que imitou um porco, jurou que isso nunca aconteceu com ele. E então me conta sobre a história de cada uma das tatuagens, eu me aconchego como uma criança naquele estofado, completamente focada em suas palavras.

Me sinto bem. Como se estivesse na casa de Sabrina ou Jordan ou qualquer outra pessoa que tenho intimidade. E então nós entramos no assunto de escola e eu não fico na defensiva. Ele me conta que beijou uma menina no ensino médio, atrás da quadra, e ela disse que ele era o príncipe encantado que procurou a vida toda.

Na semana seguinte, disse o mesmo para seu amigo. Eu ri e o chamei de idiota, ele não negou.

Harry era mesmo idiota.

— No meu último dia de escola, Sam disse que eu era uma vadia problemática na frente de todos. Eu bati nele. — Dei ombros. — Acho que isso explica bem minha passagem pela escola.

— Você não parece gostar muito dele.

— Eu o odeio. Com todas as minhas forças. Sam é um idiota compulsivo, um mentiroso. Eu tenho todos os motivos para o odiar.

— Ele não parece ser uma pessoa legal. É mais como um uau, que belo filho da puta. — Harry pega uma meia cinza do lado esquerdo, só noto a presença do objeto naquele momento.

Sam já aprontou muito comigo. Sou uma testemunha viva de sua personalidade fútil

— Ele não é. Ele é um filho da puta mesmo. Eu só tinha que aguentá-lo pela minha família, mas isso já não interessa. O que você está fazendo?! — Puxo meu pé.

— Você está com frio. — O assisto colocar as meias felpudas em mim como se fosse algo casual. — Não quero ser um anfitrião ruim.

Minhas bochechas ardem. Ele dá ombros e, após meus pés estarem aquecidos, volta a me cobrir e parece pensar por um segundo antes de dizer:

— Conte comigo, Rebelde sem Causa. Eu não sei se tenho mais que meus ombros e piadas horríveis para oferecer, mas não quero que você passe pelo que eu passei.

Há empatia. Minhas batidas aceleram com aquilo, o sentimento estranho de acolhimento me atinge como um soco no estômago. Eu quero chorar, mas não faço, me contento a encará-lo com admiração.

— Samantha.

— Perdão?

— Samantha. Meu nome.

Suas covinhas aparecem tímidas. Ele nega com a cabeça e ri divertido.

— É um prazer, Sam. — Brincou, o sotaque carregado me fez sorrir.

Harry foi o primeiro a me chamar de Sam.

Me sinto feliz por ter um amigo.

Babe [H.S/PT-BR]Onde histórias criam vida. Descubra agora