Free

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— Eu não vou discutir.

Mamãe sempre dizia que honestidade era uma bênção. Ela costumava endeusar essa qualidade nas pessoas sempre que possível e comigo não era diferente. Por outro lado, achava estúpido e, se pudesse ser honesta naquele momento, mandaria todos a merda.

Inclusive mamãe, que sorria largamente com alguns investidores, talvez embarcando numa conversa patética sobre a instabilidade do mercado.

Por outro lado, Sam parecia imóvel à medida que seus pais glorificavam o noivado, notava sua frustração pela forma que as mãos iam e vinham na taça de cristal, o canto dos lábios levemente arqueado e a névoa densa no olhar. Eu era uma ótima observadora, e mamãe achava que isso também era uma virtude.

Mas Sam sorriu nervoso, se aproximou em passos largos e se posicionou ao meu lado, sua gravata borboleta era tão feia quanto sua personalidade. Será que era tão mesquinho quanto sua mãe?

Não ousei perguntar, pelo menos não hoje.

— Está aproveitando a festa, Samy? — Apoiou o braço livre em minhas costas desnudas, arrepiei com o toque.

— Absolutamente sim, amor. — O abracei de lado, sibilando um palavrão em seu ouvido.

Os Orlov eram conhecidos da família há anos, papai costumava contar a história da amizade que surgiu com Phillip quando íamos passar férias em Montreal. Phillip Orlov era um homem robusto, dedicado a família e gostava de tortas de maçã. Também gostava de pescar com meu pai nos poucos dias de folga ou quando não estavam numa disputa eterna.

O espírito competitivo nas famílias era forte, cada um montou seu império numa área diferente e sempre queriam se superar. E como idiotas natos, prometeram casar os filhos para estabelecer um vínculo de vez.

Sam e eu temos a mesma idade. Crescemos juntos, mas isso não significava que gostasse dele: eu o odiava. Sua personalidade, até seu cheiro me incomodava. Sam era um idiota compulsório, gostava de jogar sujo e a ironia exacerbada me enjoava, mas não podia negar que sabia ser charmoso.

E conquistar tudo que queria. Pessoas, carros, cargos, absolutamente tudo. Meus amigos o achavam bonito e até suportável quando pagava drinks caros e ria de suas próprias piadas idiotas.

Sam e Samantha. Eu não gostava do meu apelido, Sam parecia mais legal que Samy, mas estávamos sempre juntos e foi o que me restou. Não gostava do meu apelido, tampouco de Sam, tinha certeza que o detestava mais que meu apelido.

Assim como detestava aquela ideia.

— Poderia ao menos sorrir mais? Até parece que não quer casar comigo. — Sussurrou. — Acho que preciso de um calmante.

Sam girou os calcanhares e, com seu terno perfeitamente cortado e a postura de babaca, desapareceu num piscar de olhos. Mamãe disfarçou ao me observar, os braços cruzados e a expressão séria denunciavam que eu estava encrencada.

E eu não dava a mínima.

Sabrina estava sentada sozinha próxima a mesa de buffet. É tarde, e com certeza sua bolsa estava repleta de canapés e doces. Me aproximo sem pressa, cumprimentando um ou outro que cruzei o olhar pelo caminho até chegar.

— Samy? O que foi? — Deixou a taça na mesa, o tom genuinamente preocupado me irritou.

— Eu vou fugir.

A verdade é que, quando disse, queria fazer graça. Mas a ideia não é ruim, e pensei um pouco mais: oh, sim, poderia fugir. Quem sabe aparecer anos depois com uma vida totalmente diferente e aquele papo moroso de superação. Fugir não parecia ruim, aquela vida não era para mim.

Não conseguia me imaginar casada com Sam.

— Fugir? Como assim?

— Eu vou embora. Não vou casar com esse filho da puta. Eu não preciso, eu não vou.

Ao contrário do que pensei, Sabrina tinha o típico olhar de: sei o que está pensando, concordo, mas não vou dizer que está certa porque não quero me sentir culpada. Notei os cílios piscando excessivamente, seus olhos verdes esbugalharam em pura confusão.

Sabia que ela me entendia, e ela não disse absolutamente nada, seu silêncio foi o aval que precisava.

Se Sam não era corajoso, eu era.

Levantei. Meus pés se projetaram para os fundos do salão ridiculamente iluminado e feio. Tinha o coquetel em minhas mãos, e aproveitei para deixá-lo numa mesa aleatória até que Sam chamou minha atenção.

Escorado numa parede, a íris fixa em mim parecia julgar meu comportamento, minhas roupas, minha alma. Sam era um idiota, assim como sua família, seu cargo, seus títulos. Talvez ele não esperasse um sorriso, já que o cenho franziu, os cabelos amarelados repletos de gel em destaque.

Mas sorri, e lhe mostrei o dedo do meio antes de correr para longe.

Sentei no chão, tirei os sapatos tão rápido que mal me reconheci, alguns garçons me olhavam torto à medida que seguia para o elevador, o vestido vermelho parecia chamar mais atenção do que o noivado.

Um noivado. E eu sou a noiva.

Aquela festa não era minha. Mamãe decidiu os detalhes e perturbou todos por semanas com os detalhes e aperitivos. Eu não queria me estressar, então bloqueei as notificações e me fingi de idiota. Papai apenas deu o cartão e disse que eu tinha de ser amigável, criando a lista de convidados junto com Phillip. Seria amigável mandar Sam se foder?

Eu não era obrigada a casar.

Cheguei ao térreo e levei ar aos meus pulmões quando corri desengonçadamente para o estacionamento. Tremia, e notei quando vasculhei as chaves na pequena bolsa de mão, bolsa essa que ganhei de Sam na formatura do ensino médio.

Queria jogar fora, mas era uma bela bolsa. Oh, foco, preciso de foco. Destravei o carro e me joguei dentro, colocando a chave na ignição e encarando o absoluto nada.

Fugir para onde?

Eu não queria ser encontrada. Não era lá muito inteligente, então pego meu celular e procuro pelas cidades mais pacatas e no interior dos Estados Unidos, encontro Stowe. Do outro lado do mapa, numa hipótese maluca e falha, se alguém me encontrasse conseguiria pular para o Canadá rápido.

Sim, meus pais. Precisava avisá-los, uma ligação cairia mal, uma mensagem?

Sim, uma mensagem.

[Samy]: Oiê, estou fugindo. Amo vocês, não me procurem por favor, pai, terça-feira temos uma reunião com um investidor.
Eu estou bem, confiem na minha criação e não me procurem — é sério — .
Amo vocês <3 ;)

Coloco o caminho no GPS, meus dedos trêmulos agarram o volante com força à medida que respiro fundo e mentalizo a minha decisão. Pensar demais me faria desistir, ligo o rádio no último volume e, com um sorriso largo, dou partida.

Stowe tinha de me reservar coisas boas.

Precisava me reservar coisas boas.

Babe [H.S/PT-BR]Onde histórias criam vida. Descubra agora