Golden Eagle

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Estava extremamente entediada. Passava metade do dia deitada me perguntando como deixei minha vida chegar neste ponto, na outra, tomava café na varanda assistindo a vida pacata dos Kim.

Os Kim eram meus simpáticos-até-demais vizinhos. Com três filhos adolescentes, Sarah e Robert sempre me ofereciam fatias de torta de maçã, até me ajudaram a arrastar algumas caixas. Julgo que ficaram felizes por terem uma vizinha nova.

Sarah me contou a vida toda dela, e o melhor é que nem perguntei. Sarah não sabia meu nome, nem que eu não ligava para o filho dela que colocou fogo no laboratório de química da escola. Mas eu sabia sobre seu casamento, seus filhos, sua comida favorita, seus gostos, até do sutiã roxo que ela comprou errado.

Eu só queria uma torta de maçã.

Stowe é deprimente. Tinha de usar uma lanterna e botas de neve para chegar na rua de trás, mas assim que pus meus pés no Golden Eagle, sorri satisfeita. Era um lago por ora congelado, com árvores grandes ao redor e poucas casas, a maioria com as luzes já apagadas e picapes com crostas de gelo.

Desligo a lanterna e corro até um tronco firme para sentar, os postes iluminam parcialmente e deixam com a sensação de filme de terror, mas dou ombros e coloco os earpods. Com minha playlist favorita tocando, sinto minha alma tomar vida novamente e puxo um maço de cigarro do bolso junto a um isqueiro.

— Achei que já tivesse ido embora daqui. — Sinto o maço ser tomado de minhas mãos.

Meus olhos estalam com o susto. Harry está em minha frente, a íris verde é tranquila e parece até me cumprimentar, mas o resquício de deboche em sua voz me irrita. Harry me irrita.

— Não é como se eu tivesse opção. — Murmurei, disfarçando a respiração descompassada.

Ele tem cheiro de gordura da cozinha da Sally e amaciante. É uma combinação nojenta. Harry joga uma mochila preta na neve e senta ao meu lado, o mínimo calor corporal me faz arrepiar de uma forma boa, o assisto levar um cigarro até os lábios e acender, me estendendo junto ao isqueiro.

— Não sabia que fumava. — Comentou, retiro meus earpods e jogo no bolso.

— Há muito que você não sabe sobre mim.

— Inclusive seu nome, turista.

— O que faz aqui, Harry? — Desconversei.

— Eu deveria estar lhe perguntando isso, não acha? Eu moro aqui.

Traguei suavemente, sinto a nicotina adentrar meus pulmões e acalmar o turbilhão de sentimentos que motivavam meus punhos cerrados a pular em Harry. Ele não parece se abalar, percebo poucos flocos de neve no topo do gorro preto que esconde os cachos tímidos.

— É verdade, essa é a rua de sua casa.

— Vizinho dos Schmit, os conhece?

— Deveria?

— Não está perdendo nada. — Riu sem humor, negando com a cabeça. — Gostaria muito de saber o que anda fazendo por aqui.

— Quer saber a verdade? — Pisquei.

Harry umedeceu os lábios. Seus olhos esbugalharam e notei que a curiosidade o fez se aproximar, o calor de seu corpo era gostoso e, por um segundo, quis até o abraçar.

— Nada. Meu maior entretenimento é espiar a casa dos Kim e chorar na banheira. Parando para pensar, você está bem curioso sobre minha vida, não?

Ele não esperava essa resposta, era nítido. Notei os ombros tensionados.

— É óbvio, quem não está? Te conhecem como a Garota da Mercedes. Inclusive, como conseguiu aquele carro? Seus pais são ricos ou algo assim? — Joguei meu cigarro na neve, apagando com o pé e sentindo meu sangue ferver com as palavras dele.

— Me diga você o que faz aqui, então. Do que está se escondendo?

— Saia da defensiva, Rebelde Sem Causa, isso não te levar a lugar nenhum. — Apagou seu cigarro, se levantando. — Me encontre no Mountain Resort amanhã às 13h, não esqueça de usar luvas! — Colocou a mochila nas costas, um sorriso de canto estampava o rosto.

— Hm? O que te garante que vou?

— E tem motivos para não ir? Até amanhã, Rebelde Sem Causa. Obrigado pelo cigarro! — Acenou, começando a se afastar.

— Pare de me chamar assim! — Gritei.

— Me diga seu nome, então.

E, com essas palavras, Harry se afastou. Fico no mesmo lugar, nossos encontros pareciam marcados por conversas fúteis e irônicas. Talvez eu devesse ser mais legal e tratá-lo melhor, sinto falta de seu calor. No fim, ele era o mais próximo que eu faria de uma amizade aqui.

Pela primeira vez em Stowe, encarei o céu: estrelado como não via há tempos nos Estados Unidos. O brilho me fez sorrir, me lembra quando viajei para a Suécia com minha família e Sam no meu aniversário de 21 anos. Assistimos à Aurora Boreal e tomei chocolate quente num chalé com mamãe, até congelei o nariz quando cai na neve, tentando subir nas costas dos meus pais.

E, diferente do que pensei, não chorei ao me lembrar deles.

Totalmente sozinha, eu estava totalmente sozinha.

Isso poderia ser incrivelmente interessante.

Babe [H.S/PT-BR]Onde histórias criam vida. Descubra agora