A Linha Cruzada - I

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São Paulo, julho de 2001...

Vivem dizendo que minha vida daria um livro, que as coisas que acontecem comigo a gente só vê em novelas. Não sei se chega a tanto, mas quando olho para trás e lembro de algumas delas, quase sempre dou risada. Só rindo mesmo para esquecer os sufocos pelos quais eu passei. Por que será que a gente acaba rindo da própria desgraça? É que, na verdade, desgraça é outra coisa. Desgraça é perder um filho, como já aconteceu comigo, ou então não ter o que comer ou onde morar. E não é dessas coisas ruins que eu quero falar. Vou falar é das coisas que a gente não acha graça na hora, mas que depois acaba rindo. Coisas que acabam virando piada. O problema vai ser colocar no papel. Não sou escritor nem tenho ideia de como começar. Minha filha sugeriu que eu escrevesse um conto, uma história curta que, segundo ela, não deve dar mais do que vinte páginas. É, mas para quem nunca escreveu uma linha, escrever vinte páginas não é uma coisa muito fácil. Está certo, o que eu escrevi até agora já é um começo. Mas e daí, como é que eu continuo?

— Filha, o que você acha se eu escrever assim: tudo começou naquele dia em que fui levar o carro para consertar e...

— Acho um horror!

— É mesmo? Então acho que não darei conta do recado. Não era melhor você escrever pra mim? Eu vou falando e você vai escrevendo.

— Pai, vou fazer vestibular no mês que vem, não estou tendo tempo nem pra respirar. O senhor consegue. Vai tentando.

— Não sei não. As ideias até vêm na minha cabeça, mas eu não consigo colocar no papel. Pelo menos me dá uma dica de como eu continuo.

— Sabe, eu acho que agora o senhor devia ir direto ao ponto.

— Como assim?

— Ir direto ao ponto, falar logo o que tem que ser falado, ser objetivo.

— Não sei se entendi bem, mas vou tentar.

— Então mãos à obra. E vê se me deixa estudar.

— Ezequiel, por que você não escreve um livro?

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— Ezequiel, por que você não escreve um livro?

— Um livro?

— É claro, Ezequiel. Ia vender a beça. As coisas que acontecem com você, só em filme e novela.

— Isso lá é verdade.

— Então, Ezequiel, por que é que você não tenta? Ia ficar muito bom.

— É, mas o que tem que ficar bom é o meu carro, viu? Vê se presta atenção no serviço.

— Tá bom, Ezequiel. Mas acho que você devia pensar nessa ideia.

O Farias até que era um bom mecânico, só que costumava dar umas mancadas, tudo por falta de atenção, principalmente se a gente ficasse dando conversa para ele. E o pior era aquela mania que ele tinha de ficar repetindo o nome da gente quinhentas mil vezes.

QUATRO VEZES O INESPERADOOnde histórias criam vida. Descubra agora