A Linha Cruzada - II

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— Filha, acho que agora vai. Depois que eu terminar, você dá uma revisada pra mim?

— Claro, pai. Pode deixar.

Onde é que eu parei mesmo? Ah, estava na padaria, conversando com o seu Irênio. Eu tinha tomado mais um gole de café e seu Irênio colocou mais um pouco no copo, o famoso chorinho:

— E o Farias, hem? Quem aguenta o sujeito? Trabalha até bem, mas quando começa a falar... Benza Deus!

Concordei com ele em número, gênero e grau:

— É verdade. E o pior é aquela mania que ele tem de ficar repetindo o nome da gente.

Seu Irênio riu:

— Ô mania chata, não? E sobre o livro, ele falou com você?

— Que eu devia escrever sobre a minha vida?

— É. Ontem de tarde ele esteve aqui, falando sobre isso.

— Sabe que até é uma boa ideia? Pena que eu não sei escrever.

Um sujeito, que estava sentado do outro lado do balcão, perguntou:

— Desculpe, mas o senhor é analfabeto?

— Não, não foi isso que eu quis dizer. Sei ler e escrever, sim. É que tenho dificuldades, pois nasci em Portugal. Vim para o Brasil com 13 anos.

O atrevido retrucou:

— Mas a língua é a mesma.

— É a mesma, mas tem diferenças. Por exemplo, se eu te disser: "Tu queres levar uma pica no cu"?

Seu Irênio já conhecia aquela e deu uma gargalhada. O sujeito, do outro lado, quase ameaçou se levantar:

— O quê?

— Calma. Eu só perguntei se tu queres uma injeção nas nádegas. Tá vendo como não é igual? É igual àquela do português que veio para o Brasil e teve que ir ao banco. Pegou uma fila danada. Lá pelas tantas, perguntou a um cabeludo, alto, que estava na sua frente: "As bichas aqui no Brasil são assim mesmo, grandes desse jeito"? Quase apanhou. Acontece que bicha, em Portugal, significa fila. No Brasil, significa viado. E viado, em Portugal, é paneleiro.

Seu Irênio não se aguentava de tanto rir:

— Essa é boa! Essa é boa! Não sei como pode, você é português e adora uma piada sobre os patrícios.

— Fazer o quê? Já que não posso com os brasileiros, junto-me a eles. Mas não sei se o senhor sabe, lá em Portugal só se conta piada de brasileiros. Tem aquela do português que estava no Brasil e que voltou para Portugal dez anos depois. Foi aí que descobriu que tinha um filho de oito anos. É claro que o filho não era dele, mas ele não se importou. Ficou satisfeito com o filho e comunicou uma decisão à mulher:

"Vou mandar o gajo a estudar no Brasil."

"Mas por quê?", perguntou ela.

"Ora, Maria, porque lugar de filho da puta é lá no Brasil!"

Seu Irênio riu e deu um suspiro:

— Boa! Mas pensei que era outra de português.

— Não, essa é de brasileiro mesmo.

— Xi, lá vem o Farias.

Virei-me para a rua. Ele vinha depressa, o macacão sujo. Era um sujeito troncudo, acima do peso, cabelo raspado, com o pescoço grosso. Na verdade, nem parecia ter pescoço, a cabeça parecia emendada no peito.

— Ezequiel?

Ele entrou, sentou do meu lado e pediu um café:

— Deu zebra, Ezequiel!

QUATRO VEZES O INESPERADOOnde histórias criam vida. Descubra agora