#23_Cuidar_

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Capítulo 23

Marinette

— Seu nome é Juleka Couffaine, se não estou enganada. — A Professora encarou-a de forma simplória, julgando a coloração de suas mechas e suas vestimentas somente com o olhar. Ao franzir o cenho, seus lábios são comprimidos em uma linha fina, demonstrando sua desaprovação. Verificou sua postura e a forma como erguia o queixo nas notas mais altas, acompanhando de maneira rígida o modo como Juleka movimentava as mãos na tentativa frustrada de se soltar. — A música é uma arte, ela exige paixão! Você está tensa e desconfortável com sua própria voz. Falando nela, onde está sua potência vocal? Por que canta como se estivesse contando um segredo? Queremos ver a verdadeira Juleka, não isso! Você não está sabendo se expressar. Relaxe os ombros, inspire pelo nariz e exale pela boca. Saiba se conectar com o que você está cantando. — Seu tom exigente fazia com que Juleka se encolhesse contra o assento. — Eu já pedi para que você pensasse em alguma memória relacionada à música, para que pudesse transparecer algum sentimento, mas você falhou. Você não me dá outra escolha a não ser retirar pontos da sua nota final.

O silêncio se estabelece como um grito na escuridão. Os outros se mantiveram calados, distraídos com seus próprios pensamentos. Alya me cutucou com um lápis, forçando-me a virar a cabeça na sua direção. Ela ergueu as sobrancelhas, surpresa, dando de ombros logo em seguida. Inclino a cabeça para o lado, confusa com suas interpretações não verbais exageradas. Ao desviar o olhar para Juleka, pude vê-la de cabeça baixa, as mãos fechadas em punhos sobre seu colo, rígidas como pedra.

— Pode se retirar, Juleka. A aula já acabou pra você.

Ela se levantou de maneira súbita, agarrando a alça de sua bolsa com força o suficiente para lançá-la contra a porta. Ouvi suas botas contra o assoalho de madeira, descendo os degraus e caminhando até a saída. Juleka permanecia aprisionada em seu próprio silêncio, sem forças para erguer a voz ou questionar uma atitude superior. Deixava que julgassem suas roupas, a cor do seu cabelo e sua personalidade, sem filtrar o que penetrava os poros da sua pele e atingia seu íntimo. Ergo meu corpo da cadeira, ignorando os olhares insistentes de Alya, e elevo a voz por um momento:

— Com licença. Professora, eu poderia ir ao banheiro? — Minha voz quebra o silêncio como um copo sendo estilhaçado no chão, atraindo sua atenção e a de todos os alunos presentes na sala.

— Tudo bem, vá. — Disse com o tom indiferente, voltando sua atenção às apostilas didáticas sobre música.

Sigo pelos corredores até a porta do banheiro, empurrando-a com dificuldade. Encontro Juleka debruçada sobre a pia, às mãos penduradas sob a água que caía da torneira. Sua cabeça encontrava-se erguida em direção ao espelho, o olhar ferido, baixo, encarando fixamente a fina corrente de água que deslizava por seus dedos. Sinto alguém segurar meu braço, os dedos finos e quentes, as longas unhas tingidas de rosa roçando em meu pulso. Viro o corpo na direção contrária, dando um passo na direção da porta novamente. Rose sorri para mim, o olhar baixo, os cabelos curtos tampando parcialmente sua visão devido à longa franja lateral. Seus dedos soltam meu pulso, as mãos trêmulas devido ao nervosismo. Ela permanece sorrindo, agradecendo-me com um aceno de cabeça. Seu pequeno corpo passa por mim em um instante, empurrando a porta e adentrando o cômodo no meu lugar.

— Juleka, você está bem? — Sua voz me lembrava um sopro quente de verão, calma e reconfortante, fazendo-a apertar os olhos enquanto lágrimas brotavam dentre camadas espessas de lápis de olho. Juleka virou-se na direção de Rose, agarrando seu corpo com força ao buscar carinho e segurança nos seus gestos, algo que ela sabia que só Rose poderia oferecer. — Calma amiga... Você foi muito bem. Eu vi. Você está melhorando.

— A professora não concorda... Eu acho que... Não nasci pra isso, Rose. Eu não consigo cantar. Não consigo me soltar, não consigo agir como se isso fosse natural. E se não for? E se eu não quiser mais fazer isso? — Suas palavras saíram com pressão, explodindo por sua boca como uma cachoeira de adjetivos ruins transferidos contra si mesma. O efeito daquelas palavras foi instantâneo. Os ombros de Juleka caíram, os ombros curvando-se para frente. As mãos trêmulas apertavam o tecido de sua calça com força enquanto negava com a cabeça com convicção. — Eu acho que... Está na hora de superar isso. Eu não sou boa. Eu nunca vou ser.

Ameacei empurrar a porta, mas no mesmo instante Rose a afastou com força, olhando-a com seriedade. Mesmo vestindo roupas fofas e possuindo um olhar sensível, Rose sabia o seu objetivo. Ela era firme, e em relação à Juleka, ela sabia perfeitamente o que queria que ela não sentisse. Ela a conhecia. Rose segurou suas mãos, acariciando as juntas de seus dedos, subindo o polegar pelo seu pulso e voltando em ritmo singular. Juleka a olhou com os olhos arregalados, as sobrancelhas franzidas diante da situação. Rose afastou os lábios, fechou os olhos e começou a cantar. Não era uma melodia agressiva ou triste, era calma e tranquilizadora. Assemelhava-se a uma música de ninar, mas carregada de sentimentos subentendidos. Rose apertou as mãos de Juleka, encarando-a fixamente, incentivando-a a cantar. Juleka negou com a cabeça, os olhos enchendo-se de lágrimas.

And you can find me in the space between
Where two worlds come to meet
I'll never be out of reach
'Cause you're a part of me
So, you can find me in the space between

You'll never be alone
No matter where you go
We can meet in the space between

A música parou. Um suspiro cortou o silêncio. Rose estendeu a mão até o rosto de Juleka com os olhos tristes, suplicantes. Ela se permitiu ser tocada, seus rostos se aproximando de maneira natural, como se ambas já tivessem feito aquilo diversas vezes. Quis fechar os olhos, mas ao ver Rose apoiar a testa na de Juleka, meu coração afundou no peito ao ver as duas se desabarem em lágrimas.

— Ela não sabe quem você é. Eu sei o talento que você tem. Eu sei pelo que você passou pra conseguir tocar em público. Eu sei o que você fez pra chegar até aqui, pra conquistar sua própria guitarra. Eu vi todas as suas discussões com sua mãe, eu estava lá todas as vezes que você achou que não fosse conseguir. Eu sei exatamente pelo que você passou. Eu sei quem você é. Então não deixe que ela tire de você esse sorriso que eu tanto amo, por um dia que você não estava bem. Você é melhor que isso. Eu to aqui pra você. Eu nunca vou te deixar sozinha. — Suas palavras a envolveram como um cobertor quentinho, pois a vi abraçá-la com força o suficiente para erguê-la do chão. Rose riu baixo, acariciando os cabelos escuros de Juleka com os dedos. — Viu? Eu lembrei a música que a gente mais gosta de Descendentes. Eu mereço um sorvete!

Abri um sorriso envergonhado, limpando o rosto e virando o corpo na direção contrária a porta do banheiro. Caminhei silenciosamente pelos corredores, as lágrimas de alívio escorrendo pelo rosto. Juleka possuía diversas camadas de traumas e fobias sociais, pra ela era muito difícil se destacar, se manifestar ou até estar em público. As coisas que sentia ficavam presas nela, sufocando-a até que não tivesse forças pra lutar contra. A tristeza era como uma amiguinha que ela levava pra passear, acariciando e dando comida toda vez que se recusava a enfrentá-la. Fiquei aliviada por Rose estar ajudando ela no processo. Elas ficariam bem contanto que tivessem uma à outra. Entrei na sala de aula com a cabeça baixa, caminhando até meu lugar ao lado de Adrien. Ele me olhou com um sorriso reconfortante. Retribui o sorriso, desviando o olhar para o quadro.

— Marinette, onde está Rose? — Perguntou, a expressão fechada e rígida como uma rocha. Imóvel, sem emitir qualquer ruído que não fosse seu salto se chocando contra o piso de madeira de maneira contínua.

— Ela não está se sentindo bem. Está na enfermaria. — Menti, sentindo o olhar de Alya sobre mim. Me mantive firme.

Por elas valia a pena.

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⏰ Última atualização: Nov 17, 2023 ⏰

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