Capítulo 14

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WILL

Acordar jogado em um beco é sempre algo horrível, mas quando a última coisa que você se lembra é de ir para cima de um deus para conseguir respostas, permanecer vivo — a não ser que o mundo inferior tenha passado por reformas — era uma dádiva.

Meu corpo doía, o chão duro e molhado de neve derretida fazia o frio entrar nos meus ossos e, pelo meu estado, parecia que eu estava deitado ali fazia um tempo. Um peso no meu peito me prendeu no chão, me impedindo de levantar, e a minha visão embaçada foi clareando até ver que o peso era, na realidade, as pernas do Sérgio. Bufei e o empurrei para o lado, tirando-o de cima de mim.

Fui levantando e o sentimento de alerta voltou com tudo. Procurei a espada emprestada do arsenal do Acampamento e não a encontrei. Olhei em volta e, além da arma desaparecida, notei algumas coisas: minhas roupas não eram as mesmas.

O habitual uniforme laranja do acampamento tinha sumido e eu vestia uma calça jeans escura, uma camisa branca e uma jaqueta preta com capuz e havia um anel em cada dedo anelar, que eram de bronze e entalhados, sendo χάος no direito e σκοτάδι no esquerdo, respectivamente caos e escuridão. Algo nesses anéis me atraiu, mas antes de tentar entender mais, Sérgio acordou com um susto e gritou um: "Não!!!", fazendo que o som ecoasse pelas paredes.

A acústica do beco poderia não ser das melhores, mas o grito ainda fez meus ouvidos doerem.

— Bom dia, pintassilgo. Agora que já acordou qualquer monstro num raio de 4 km, poderia me diz... — meu cérebro congelou. De toda a cena, uma peça do quebra-cabeça faltava. — Cadê a Mynara?

Sérgio estava prestes a rebater o apelido, mas qualquer resposta travou na garganta dele.

Ele olhou para baixo, percebendo que a nossa irmã não estava mais aninhada em seu colo, e se pôs de pé em um salto, procurando em volta por um sinal da nossa irmã. O pânico transparecia em seu rosto. Sérgio ameaçou gritar, mas parou, provavelmente por medo de realmente ter algum monstro nas redondezas. Eu já ia me dirigindo para a saída do beco para ver onde estávamos e se Mynara estava lá, quando ouvi uma risada familiar vinda de cima.

Mynara estava apoiada no alto da escada de incêndio do prédio:

— Hahahaha, vocês são fofos preocupados, mas podem ser discretos. Não estamos mais no Acampamento. Subam logo, temos que conversar.

O balão de pânico que comprimia meu peito murchou e dei uma risada fraca, tentei subir na escada, mas senti um empurrão na lateral do corpo, me fazendo bater na parede.

Sérgio me olhava com ferocidade e falou, entredentes:

— Nunca mais ponha nossos irmãos em perigo assim. Não avisar que um deus ou monstro te atacou e ainda tentar invocar ele?

Encarei ele de volta enquanto me erguia da parede:

— Não foi intencional, e tanto eu quanto você entendemos que era necessário para a missão.

O rosto do Sérgio ficou vermelho como se fosse explodir, mas a futura briga que teríamos foi acabada por um projétil que passou a centímetros do nosso rosto. Mynara, do alto do prédio, apontava o arco para baixo e disse:

— Parem com isso e subam logo.

O Sérgio olhou para ela com uma cara de "sério? Você quase me matou?" e subiu, falando baixo pra mim:

— Isso não acabou.

Eu recolhi a flecha no chão coberto de neve suja e fui atrás dele.

Ok, momento de me explicar: eu me sentia culpado pelo ocorrido? Claro. Mas com tanta coisa acontecendo, é fácil se perder em um ou outro ataque de deus, né? Por favor, relevei o que foi feito por meu pai relapso (talvez a vontade de esquecer a existência dele tenha ajudado).

O prédio tinha 4 andares de tijolos vermelhos, e o céu que adquiria tons de cinza dizia que era manhã. Subir tudo já foi um esforço considerável para ser tão cedo. O terraço era desprovido de vida, nenhum vaso de planta ou qualquer coisa, só uma abobada de vidro embaçado e coberto de neve.

Mynara estava com um gorro púrpura, uma jaqueta de neve e uma calça camuflada cinza, com a aljava e o arco às costas completando o visual. Ela estava debruçada no beiral do prédio, olhando em volta para a cidade, como se estivesse vigiando o amanhecer.

O Sérgio olhava em volta também, mas com mais curiosidade do que alerta.

— Onde estamos, exatamente?

— Não no Acampamento — provoquei.

Ele virou para mim e ia me xingar, mas a Mynara cortou:

— Se começarem de novo, a próxima flecha não vai acertar o chão. E respondendo à pergunta, estamos em Nova York, na 79° avenida.

— Então a missão já começou — Sérgio continuou girando o rosto até encontrar uma direção e fixou o olhar em um prédio, depois de um gramado ornamental e uma escadaria.

Contos de Natal no Acampamento Meio-SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora