Passei os dois últimos anos no curso tecnólogo de gastronomia no UNINASSAU em Recife. Voltei a Paraisópolis, minha cidade natal, há um mês e nesse exato momento eu estava numa estrada isolada que cortava a vinícola Quinta do Sol, com Heitor Castro Oliveira.
Heitor desligou a lanterna e tirou o boné, passando os dedos entre as madeixas escuras.
— Feche o carro, vou levá-la até a sede. Pedirei a um conhecido para guinchar o carro até a oficina.
Tirou o celular do bolso, procurando captar o sinal.
— São as malditas videiras — disse, depois de procurar em vão. — Elas bloqueiam o sinal, que já não é dos melhores.
Heitor me ajudou a travar as portas do Corcel e escoltou-me até um SUV.
— Vou voltar com você, se não se importa. Eu não me atreveria a aparecer à essa hora na sua... na casa de sua mãe.
Heitor não disse nada. Manobrou e seguimos para a cidade.
— Está gostando do trabalho no Riviera?
Pelo visto, as notícias continuavam correndo rápido por ali.
— A pressão é grande, o salário pequeno, mas nada que não possa piorar.
— Falou a garota da capital — murmurou Heitor, acendendo um cigarro. Ofereceu-me um, eu recusei. — E como estavam as coisas por lá?
— Sabe como é... agitação, oportunidade, mas tudo caro pra diabo. Acredita que senti falta daqui? De tomar banho no São Francisco, do cheiro da terra, o sossego...
— Achei que tivesse voltado por minha causa — brincou ele.
— Eu até teria, se não o conhecesse como conheço.
Ele virou o rosto para a janela e soltou uma longa baforada. Era um dos melhores partidos, quando saí da cidade. BTS — Bonito, tesudo e safado. Ainda por cima, de família rica.
— Se lembra do Vinícius? — Ele perguntou.
Vinícius era o outro irmão, do meio. Ele tinha deixado a cidade quando eu estava com os meus 13 anos, para morar com a avó materna no Rio. Nossos caminhos pouco tinham se cruzado no passado, mas eu me lembrava do efeito que ele produzia nas garotas, quando aparecia acompanhado da tia nos bazares beneficentes da paróquia, na cidade. Eram momentos raros, que ocorriam poucas vezes no ano, mas suficientes para incendiar a imaginação das pobres adolescentes.
— Lembro do que a sua mãe falava sobre ele, quando trabalhei lá.
Eu havia passado um ano trabalhando como cozinheira na casa dos Castros Oliveira, antes de me mudar para Recife a fim de estudar.
— Pois é — continuou Heitor, sem desviar os olhos da estrada. — Vó Ana morreu há seis meses e Vinícius voltou para casa.
— Por que ele foi morar no Rio, afinal?
Heitor não contava com a pergunta, pensava que todos sabiam o motivo, pelo menos aquele que a família contava.
— Por causa da saúde. O médico recomendou o ar marítimo, e como em Paraisópolis não temos mar, o bastardo do meu irmão se mandou para o Rio.
Quando chegamos na cidade, Heitor estacionou em frente ao prédio de dois andares onde eu alugava uma quitinete, mostrando que sabia mais a meu respeito do que eu a respeito dele.
— Eu a levaria para jantar, mas não quero comprometer a sua reputação, então...
Eu estava sendo dispensada. Ele devia estar atrasado para um encontro. Não sei se invejo ou sinto pena da vítima.
— Não se preocupe com a lata-velha, eu mando entregá-la amanhã com o radiador zerado — continuou ele enquanto eu descia do carro.
Eu me virei, encontrando os olhos verdes me examinando através da fumaça do segundo cigarro. Fechei a porta, apoiando-me na janela aberta.
— Alguém já lhe disse que cigarro em excesso broxa?
Ele levou o cigarro até os lábios e tragou profundamente, para me afrontar.
— Não, mas com você nenhum cabra corre esse risco.
Não pude deixar de sorrir. Ele havia me importunado durante os doze meses em que trabalhei na casa da família, mas nunca ousou levar adiante as provocações, Dona Laura fora categórica ao exigir respeito em tudo o que dizia respeito a mim.
Se você, Heitor, mesmo sendo meu filho, brincar com os sentimentos dessa moça, vou mandá-lo pessoalmente para o Tibet, para viver entre os monges.
Todos que a conheciam sabiam que era melhor ouvir Dona Laura.
— Se a conta não ficar muito alta, pode mandar para cá também — brinquei. — Junto com a lata-velha.
— Posso mandar outra cobrança no lugar da conta.
Bati de leve na porta, indicando que estava na hora de ele partir.
— Prefiro a conta — Virei e caminhei até a entrada, voltando-me no meio da calçada. — E Heitor, obrigada.
O SUV continuou parado durante algum tempo em frente ao prédio, antes de Heitor dar a partida e arrancar.
❦❦❦
Como o prometido, no início da tarde do dia seguinte, o Corcel foi entregue na frente do prédio pelo dono da oficina. Eu o conhecia de vista, mas agora que tinha um carro, tratei de estabelecer um vínculo amigável.
— Quer dizer que ele não vai mais me deixar na mão?
— Não, a senhora não precisa se preocupar.
— Eu não vou me preocupar — continuei sorrindo, sem saber mais o que dizer. Não entendia nada sobre a mecânica de um automóvel, mas lembrei do que Heitor havia dito. — O problema era só o radiador ou... ?
Dez minutos depois eu continuava sorrindo, acenando com a cabeça, enquanto o mecânico-chefe-dono da oficina me explicava a origem do problema. Aproveitando o breve intervalo que ele fez para tomar fôlego, eu perguntei:
— O senhor trouxe a conta, seu Alberto?
Ele piscou, surpreso.
— A conta?
— A conta.
Ele sorriu, sorrateiro.
— Ele pagou para a senhora, o Heitor.
Minutos depois eu estava falando com ele pelo telefone.
— Eu disse que era para mandar a conta!
— Você disse: Se não ficar muito alta. Acontece que ficou, então mandei lá para a vinícola.
— Quê?!
Ouvi a risada dele.
— Era o que eu devia fazer, por não mandarem remover aquelas pedras.
— Não foi culpa das pedras.
— Claro que não, foi da sua lata-velha. Mas Dona Laura não ia se importar em pagar a conta.
— Heitor...
— Calma. Se faz tanta questão de pagar a conta, jante comigo esta noite.
— E jogar minha reputação no lixo? Não, obrigada. Além do mais, vou estar ocupada.
— Entendi, o Riviera. O trabalho antes do prazer, quero dizer, do lazer.
Quando eu ia desligando, Heitor retrucou:
— E Ariana, alguém já lhe disse que preocupação em excesso é culpa?
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Segredo de Família(Link no Perfil)
Roman d'amourDois irmãos, nascidos nas terras semiáridas no Vale do São Francisco, em uma família abastada, passam a disputar o amor da mesma mulher. Vinícius Castro Oliveira é o filho do meio, envolvido em um escândalo e afastado por sua família quando era adol...