Um

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A estrada de terra não parecia a mesma de dois anos atrás.

Fazia um tempo que o sol se pôs atrás das videiras e o céu foi tingido de laranja, os faróis do velho Corcel iluminando um trecho da estrada rasa, cheia de pedras soltas.

Engatei a primeira e o Corcel resfolegou, chiou e se calou. Houve um minuto de silêncio, interrompido pelo estalo do motor, que respirou aliviado, enquanto esfriava. Sem chances, pensei. Você não vai me deixar na mão agora. Girei a chave, mas o motor, cansado, se recusou a pegar. Respirei fundo, me dirigindo ao veículo com a voz macia, como se falasse a uma criança pequena. O Corcel resmungou, tossiu e silenciou. Não era mais uma criança pequena, mas um velho ranzinza, resmungão e inútil. Adulei, briguei e supliquei, mas nada adiantou. O Corcel permaneceu imóvel no meio da estrada de terra, enquanto as sombras aumentavam lá fora.

Breve seria noite.

O asfalto devia ter ficado cerca de dois quilômetros para trás, o que significava que faltavam mais dois até o meu destino. Não havia nenhuma luz à vista, nenhum sinal de vida, a não ser a extensa plantação de videiras da velha vinícola.

Eu tinha duas opções: podia ficar ali sentada, esperando alguém aparecer, o que era improvável em se tratando de uma estrada particular que cortava a vinícola, ou podia caminhar dois quilômetros até a sede, de vestido e salto alto, no meio do breu, sendo atacada pelos insetos e sabe lá mais o quê.

Maldita hora em que resolvi pegar o atalho. Se tivesse permanecido no asfalto, cedo ou tarde um carro passaria por mim. Mas eu estava atrasada para o jantar na casa dos Castros Oliveira e não queria desapontar Dona Laura, que prezava pela pontualidade. Agora, eu não só estava atrasada, como provavelmente não estaria presente no jantar.

Se eu entendesse alguma coisa de motor... A verdade, porém, era que nunca havia aberto um capô e não sabia o que encontraria por baixo. Continuei sentada, a escuridão me envolvendo como um véu cálido e misterioso, apenas a faixa de luz que acabava poucos metros adiante.

Enquanto tentava decidir se devia ou não manter os faróis acesos, fragmentos de histórias invadiram a minha mente: de pessoas que pegavam uma estrada isolada e nunca mais eram vistas... Apaguei os faróis e fiquei ali no escuro, repetindo uma prece silenciosa, o coração dando pancadas no peito.

Parecia que havia se passado muito tempo — na verdade vinte minutos — quando dois feixes luminosos surgiram na escuridão, vindo em minha direção. Olhei pelo espelho retrovisor enquanto os faróis se aproximavam pela estrada. Parecia uma caminhonete, pela altura dos faróis; eles se aproximaram e encostaram atrás do Corcel.

A porta do lado do motorista se abriu e um homem saltou. Continuei imóvel, o coração batendo tão alto que eu podia ouvi-lo. Houve duas batidas de leve no capô, sobre a minha cabeça. Após hesitar por um instante, abri o vidro, o suficiente para olhar pela abertura. Um rosto surgiu na janela, me assustando.

— Sabia que está invadindo propriedade alheia?

Eu estava olhando para um rosto jovem, muito bonito por sinal, os olhos atentos examinando-me de volta.

— Conhece os Castros Oliveira? — Perguntei, sondando.

— Conheço. Essa estrada vai dar na casa dos Castros Oliveira. É para onde eu estou indo, se quiser uma carona...

Quem seria ele? Seria um dos filhos de Dona Laura?

Se fosse, devia conhecer o apreço que Dona Laura tem pela pontualidade. Àquela altura, o jantar já devia estar sendo servido. E depois, a televisão estava cheia de notícias sobre mulheres que aceitavam carona com estranhos e depois desapareciam.

— O... meu amigo foi pedir ajuda, ele já deve estar voltando.

Ele deu uma olhada no interior do veículo, voltando depois a me olhar através da abertura.

— Como quiser. Eu ficaria até o seu amigo voltar, mas estou atrasado, então, boa sorte.

Ele se afastou e entrou no veículo, que passou por mim, os faróis traseiros desaparecendo na escuridão, enquanto eu me perguntava se havia cometido um erro. Agora, só me restava esperar pelo dia seguinte e sair para pedir ajuda. Me preparei para a longa noite de espera.

Cerca de meia hora depois, outro facho de luz surgiu na estrada. Aquele atalho era mais movimentado do que eu pensava. O veículo encostou atrás do corcel e, como uma repetição, vi a porta do motorista se abrir e um homem saltar. Mais uma vez, bateram no capô.

— Ainda não tinha encontrado uma mocinha em apuro, mas dizem que há uma primeira vez para tudo.

Aquela voz era familiar. O rosto de Heitor Castro Oliveira surgiu na janela.

— Sua mãe não ensinou que não se deve pegar atalhos no meio da noite?

Dizendo isso ele enfiou um boné na cabeça, onde havia acoplado uma lanterna, encaminhou-se para a frente do Corcel e abriu o capô, acendendo a lanterna.

— Isso está cheirando a churrasco de gato. — Ouvi ele resmungar.

Abri a porta e saltei, tomando cuidado para não tropeçar numa pedra, sentindo o salto fino afundar na poeira. Fiquei ao lado de Heitor, enquanto ele examinava uma válvula suja de pó.

— Qual foi a última vez que mandou revisar essa lata-velha?

Era um insulto. O Corcel era o primeiro bem que eu adquiria depois de me formar em gastronomia. Só porque era um Castro Oliveira, ele não tinha o direito de desmerecê-lo. Mas eu gostava de Heitor.

— Me garantiram que ele tinha passado pela revisão, há um mês, quando o comprei — respondi, deixando claro o meu orgulho de proprietária.

Ele balançou a cabeça e voltou a estudar o interior do capô.

— Deve ser o radiador. Aposto como não trocam o óleo do coitado há anos.

Acenei com a cabeça, concordando, como se o que ele disse fizesse algum sentido para mim. Heitor voltou-se, me olhando de lado.

— Se eu não a conhecesse, diria que está atrás de encrenca.

Eu tinha escolhido o meu melhor vestido, um Alexandre Herchcovitch autêntico, que encontrei num brechó em Recife, um ano atrás. Quem se desfez dele não sabia o que estava fazendo. Ele era preto, com alças finas, elegante e discreto, o corte e o tecido impecáveis.

— Eu diria que é você que está encrencado, está uma hora atrasado para o jantar de sua mãe.

Depois de um breve silêncio, Heitor deu um passo atrás, fechou o capô e limpou as mãos.

— As coisas andaram mudando por aqui, enquanto esteve fora. — Diante do meu olhar inquisitivo, acrescentou: — Quero dizer que não sou um dos convidados de Dona Laura.

Eu passava dois anos longe, estudando e trabalhando como uma condenada, e quando voltava para casa, munida de sonhos, descobria que até em Paraisópolis as coisas mudavam.

Segredo de Família(Link no Perfil)Onde histórias criam vida. Descubra agora