1-Ritual núbil

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Eu enrolava uma fina mexa de cabelo envolta do dedo, enquanto uma brisa suave deslizava livremente entre as folhas douradas das árvores, colhendo-as tão delicadamente dos galhos, como se as embalassem em sono profundo até tocarem o chão. O gramado verde, vagarosamente desaparecia abaixo de meus pés, como se estivesse sendo arrebatado por tons envelhecidos de outono em um único instante.

Eu sentia como se tivesse ficado ali parada por um longo tempo, imóvel, apenas observando enquanto a estação mudava repentinamente, de uma noite escura e fria de inverno, para um vazio fim de tarde de outono. Desde que Aelle me deixou naquela cripta, era como se o passar do tempo fosse apenas uma companhia apática, com a qual não tinha graça de estar. Eu não suportava olhar meu reflexo no espelho e ver aquela criatura mórbida, sem brilho nos olhos, ou qualquer vestígio de emoção. Era como se eu estivesse ausente de mim mesma, alheia aos acontecimentos externos, e omissa aos internos.

Sem asas eu estava presa ao chão, completamente esquecida pelos céus.

Havia um vazio em meu peito, que se fortalecia a cada segundo através daquela cicatriz ressaltada em minha pele. Repetidas vezes eu conseguia sentir o metal frio perfurando minhas costas e atravessando para fora do meu peito. Uma dor latejante me atormentava todas as noites, trazendo lembranças cruéis daquela noite em que lutei com Aelle.

Aelle havia deixado em mim algo mais que uma simples cicatriz no peito, ele havia conseguido levar com ele toda a minha vontade de existir. Não havia sobrado o calor das chamas correndo dentro da minha pele, nem mesmo força em meu corpo. Da antiga Eileen, sobrara apenas uma pálida cópia, a qual nem sequer podia voar.

Constantes fraquezas me tragavam para um abismo sombrio, ao qual por muitas vezes eu quis me entregar, mas Nerian jamais permitiu que isso acontecesse. Todas as vezes em que eu simplesmente desmaiava, ouvia a voz dele me chamando bem baixinho, suplicando para que eu voltasse. Eu não sabia como ele conseguia isso, apenas sabia que sempre quando abria meus olhos, ele estava lá, como uma sentinela, ansioso para encontrar o meu olhar. Por muitas vezes, seus olhos violetas estavam marejados por lágrimas, aflitos ao me encarar, certificando-se se eu estaria realmente bem.

Nessas horas eu me perguntava o motivo dele não me deixar partir.

Por diversas noites, acordei aos prantos, suplicando por minhas asas, sentindo a dor daquela barra de metal atravessando o meu corpo, e Nerian cansado, com os olhos vermelhos de quem pouco dormia, cambaleava sonolento para a beira de minha cama, acolhendo-me em seus braços até que eu me acalmasse, para logo depois voltar a dormir em uma poltrona que ele havia trazido para desconfortavelmente, passar todas as noites ao lado de minha cama.

Por muitas vezes tentei mandá-lo embora, mas ele não foi.

E todas as noites, eu tinha o mesmo sonho, onde aquela garota do reflexo do espelho que eu vi quando recebi as acepções, vinha me atormentar. Era como se eu estivesse diante de mim mesma, pedindo para que me libertasse como da última vez, mas nos sonhos alguém me mandava fugir, o que me fazia correr para longe dela, até chegar em um jardim de rosas azuis. Nesse jardim, haviam doze crânios de cristal formando um círculo, e no meio deles, estava a menina do reflexo novamente, eu não conseguia fugir dela. Ela acenava para mim, me induzindo a ir até ela, mas quando eu tentava me mover, alguém me segurava pela mão, impedindo que eu me aproximasse.

Era quando eu acordava, assustada, gritando alto, enroscando meus dedos entre os lençóis, agarrando-os com força, quase rasgando-os, fazendo com que Nerian se desesperasse e viesse ao meu socorro.

E desta forma o tempo passou em Quartzo, com dias e noites tortuosos, roubando de mim cada suspiro sem que eu percebesse. Foi aí que me dei conta de que o tempo havia passado como um ladrão sorrateiro, roubando-me mais do que suspiros tristes. O tempo roubava-me algo que nem mesmo me pertencia, o meu próprio tempo. E agora, estou aqui neste fim de tarde, onde o sol já esta se pondo na imensidão do horizonte, enquanto uma leve garoa insiste em se fazer presente. Através dos galhos secos das árvores quase sem folhas,vislumbro um fraco arco-íris, irradiando seus singelos arcos coloridos, ressaltando um pouco de vivacidade entre tantos tons de esquecimento.

Nerian esta a minha frente,envolto por réstias de sol e belos tons castanhos, escorado em um tronco de carvalho seco,seus braços cruzados sobre o peito, desalinham o tecido preto da camisa. Seus profundos olhos violeta me observam com exagerada atenção através de fios de cabelo negro que se grudam pelo rosto umedecido devido a garoa fina. Apesar da pálida iluminação dourada que invade a floresta, a plumagem negra das asas dele reluz com as gotinhas de água que se impregnam entre elas, se espalhando como pontinhos reluzentes.

– Você está bem, Eileen? –ele perguntou usando um tom casual enquanto mantinha seus olhos cravados em mim.
– Sim. – Respondi automaticamente. – Apenas preciso ficar um pouco sozinha.
–Entendo... – Ele balançou a cabeça devagar sem tirar os olhos de mim e suspirou –O tempo passou e até agora não temos nenhuma notícia de Aelle.
–É. – Disse-lhe, desviando meu olhar para o céu caramelo de outono.
–Você realmente não sabe para onde ele foi, Eileen? – Ele perguntou ainda parado com os braços cruzados sobre o peito ao me encarar.
– Não. – Fechei os olhos devagar, torcendo para que Nerian percebesse que eu não estava afim de conversar.
–Tem certeza? – Ele insistiu educadamente.
–Tenho. – Suspirei e abri meus olhos para olhar diretamente nos olhos violeta dele. – Por que insiste em me fazer essa pergunta? – Suspirei pesadamente – A resposta será sempre a mesma, Nerian.
–Se é assim que você quer... – Ele riu nervosamente – Não posso obrigá-la a me dizer o que não quer,–Nerian levou a mão direita dele até a testa e ponderou por alguns segundos – Então,apenas me diga o que ele te disse antes de ir...
– Desculpe... – Respirei profundamente –mas não tenho nada para te dizer, Nerian.
–Por que? – Ele inquiriu e pude observar sua mandíbula se contraindo – Você prometeu a ele que guardaria segredo?
Não lhe respondi, e então, ficamos em silêncio por um longo momento. Eu não estava mentindo ao dizer que não sabia onde Aelle estava naquele momento, mesmo que Nerian não acreditasse nisso. E quanto ao que Aelle me disse antes de sair... Era algo sem importância.

Eileen (PARTE II) (Em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora