8- Silêncio

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Antes do nascer do sol, eu já estava em pé, com um morango na mão direita, enquanto observava o horizonte escuro diante da sacada do quarto. Era inevitável sentir saudades de Quartzo, da mesma forma que era inevitável, me questionar do por que eu estava em Lêmur. Minha justificativa era que eu apenas queria as minhas asas de volta, e talvez o fogo violeta correndo pelo meu corpo novamente.
Enquanto eu olhava o céu escuro, avistei um pequeno risco cintilante se movendo bem distante. Eu reconheceria o cintilar das asas negras de um lúrido, mesmo que houvesse um nevoeiro tentando ocultá-lo. Nerian não demorou muito para pousar em minha frente, seus cabelos úmidos devido ao sereno noturno desgrenhavam-se sobre sua cabeça. Em suas mãos tinham quatro almofadas e uma manta, as quais ele havia levado na noite anterior.
– Achei que eu a encontraria dormindo. – Ele sorriu meia boca, formando pequenas covinhas nas bochechas, as quais eu nunca havia reparado antes. –Bom dia, Eileen.
– Bom dia. – Respondi ainda observando-o. Os olhos violetas de Nerian estavam marejados, o que me fez pensar que ele devia estar com sono, por ter passado outra noite sem dormir.
– Por que acordou tão cedo? –Nerian esquivou uma das sobrancelhas e entortou a boca. – Teve pesadelos?
– Não... – Murmurei desanimada e me virei para entrar no quarto novamente.
– Há algo errado, Eileen? –Nerian me seguiu, largando as almofadas e a manta no chão.
– Não... –eu disse simplesmente, enquanto parava em frente a bandeja cheia de frutas. Nerian se aproximou de mim e da bandeja, pegando um cacho de uva e começou a comê-lo enquanto me fitava intrigado.
– Aconteceu alguma coisa... – Ele refletiu em voz alta, estreitando os olhos para mim. –E você não esta querendo me contar...
– Não aconteceu nada, Nerian – Fiz uma careta infantil e mordi o morango que estava em minha mão. –Acho que estou ficando gripada, apenas isso.
Os olhos violetas de Nerian se estreitaram ainda mais, e ele franziu o nariz de um jeito engraçado. Eu o encarei de volta, esquivando as sobrancelhas como se silenciosamente estivesse perguntando, "Qual é o problema?".
-Eu te conheço, Eileen. –Nerian fez uma careta infantil –Essas mudanças repentinas de humor sempre significam algo.
-Fiquei pensando no que você me disse ontem. –Dei de ombros –Acho que fiquei chateada.
-Com qual parte? –ele se aproximou mais de mim, parando em minha frente, seus olhos violetas se prenderam nos meus.
-Acho que devemos voltar para Quartzo... –Eu mantive meu olhar firme no dele.
-Mas e as suas asas? –ele franziu o cenho –Desistiu delas?
-Você disse que eu era insegura... –me virei de costas para ele, caminhando de volta para a sacada do quarto.
Nerian gargalhou atrás de mim.
-Achei que estávamos falando das suas asas.
-E estamos! –eu grunhi –Me sinto insegura sem elas.
Nerian ficou em silencio por um momento.
-Eileen, eu sempre vou cuidar de você. –De repente Nerian surgiu atrás de mim, sua respiração perto do meu ouvido. –Eu gostaria de te abraçar agora, mas você me disse para não tocar em você.
Eu me virei de frente para ele, e nossos olhares se encontraram. Ficamos assim por um momento, e meu olhar instintivamente desceu para os lábios naturalmente cor de cereja de Nerian. Ele percebeu, e um sorriso surgiu nos lábios dele. O que me fez voltar a olhar em seus olhos. Meu rosto ficou instantaneamente febril.

De repente, Calleo afastou a folha que servia como porta do quarto e entrou.
– Bom dia. –Rapidamente Nerian desviou meu olhar e com um sorriso nos lábios cumprimentou o jovem lemuriano.
– Bom dia. –Calleo respondeu.
– Eu estava apenas te esperando. – Disse a Calleo, me voltando na direção dele.
– Ótimo. –Calleo sorriu –Podemos ir então?!
Antes que eu respondesse, Nerian interferiu.
– Fiquei sabendo que você esta obrigando minha esposa a mergulhar na água gelada. –Nerian comentou em um tom de voz estranhamente cínico ao caminhar pelo quarto, passeando entre os tecidos de seda que pendiam do teto.
Eu me obriguei a encará-lo.
– Faz parte do treinamento. –Calleo replicou com indiferença, enquanto acompanhava o andar despreocupado de Nerian.
– Faz parte do treinamento deixá-la doente também? –Nerian franziu o cenho enquanto despreocupadamente olhava na direção de Calleo. Cruzei os braços enfrente ao peito, e fiquei observando Nerian com curiosidade. O que ele estava tentando insinuar com aquilo... –Eu não quero que minha esposa fique doente, você não faz à menor idéia do que é cuidar de uma "Eileen" doente. –Nerian fez uma careta de pavor. –Ela fica assustadora!
– Nerian não dormiu bem essa noite, e isso faz com que ele fique meio... IDIOTA! –tentei "sutilmente" amenizar a maneira infantil que Nerian estava agindo, e sorri para o jovem lemuriano. –Me espere lá fora, Calleo. Desço em um instante.
– Tudo bem. –Calleo se limitou a dizer e saiu do quarto.
– Obrigada. – Disse para Calleo e depois fiquei olhando intrigada para Nerian.
– O que é? –Nerian ergueu os braços para cima e fez uma careta ao perceber que eu o fitava semicerrando os olhos. –Eu só quero que eles saibam que eu sou um marido que se preocupa com a esposa.
– Aham! – Eu o encarei cética e dei de ombros.
– Vá logo antes que ele volte aqui. –Nerian me jogou uma maça a qual,eu quase não consegui pegar. –E se cuide, eu realmente não a quero doente, Eileen.
– Estou indo. – Disse indo em direção a porta.
– Eileen... –Nerian me chamou de volta antes que eu chegasse à porta, e eu me voltei na direção dele novamente. –No final do dia quando tiver acabado seu treinamento, me espere na cachoeira, precisamos conversar.
– Tudo bem. – Sorri e me virei para sair do quarto. –Até mais tarde, Nerian.
– Até. – Nerian respondeu com um murmuro baixo.

Encontrei Calleo escorado ao lado de fora da bromélia, ele parecia estar irritado. Andamos em silêncio até a cachoeira, o que me permitiu ficar divagando sobre algumas coisas enquanto andávamos pela floresta.
O sol em Lêmur estava ameno, quase não haviam nuvens no céu, e a temperatura era ambiente, o que me desanimava um pouco, por concluir que a água do lago continuaria fria como no dia anterior. Pelo caminho, avistei vários lemurianos trabalhando na terra, cuidando da irrigação das hortaliças e do imenso pomar que se expandia pelos vales de grama verde clara. Aqueles pássaros que eu havia visto pela manhã, com a calda semelhante a um arco-íris, plainavam entre as enormes árvores que se estendiam quase até o céu. Eram bonitos pássaros,que de alguma forma instigavam a minha curiosidade.
– Amanhã só poderei ficar com você até o almoço. –Calleo disse ao se sentar na beirada do lago. – À tarde prometi ajudar meus pais com a colheita das frutas.
– Colheita das frutas? – Repeti curiosa.
– Sim. –Calleo anuiu com a cabeça. –Amanha é noite de lua azul, por isso comemoramos.
– Comemoram a lua? – Sentei ao lado dele na beira do lago, e delicadamente coloquei as pontas de meus pés na superfície da água, mas logo retrocedi. A água continuava gelada como no dia anterior.
– Não. –Calleo deu um risinho baixo ao perceber meu desgosto ao constatar que a água estava fria. –Comemoramos a confraternização entre nós lemurianos e os selvagens do norte. –Calleo fez uma pequena pausa –É a época em que dividimos nossa colheita com eles.
– E eles dividem o quê com vocês?
– Quando repartimos o que temos com eles, garantimos a paz entre nossos povos. –Calleo sorriu meia boca. –Não viemos aqui para jogar conversa fora. Então, mergulhe, Eileen!
– Eu não me importo em ficar aqui... – Disse despreocupadamente –Jogando conversa fora.
Calleo riu.
– A água está tão fria assim? – Ele perguntou divertido.
Apenas balancei a cabeça assentindo.
– Não querendo duvidar da sua capacidade em me fazer "ouvir", Calleo. –Comentei gentilmente, tentando não irritá-lo. –Mas confesso que não consigo enxergar maneiras de você estar me ajudando, ao me manter submersa abaixo dessa água fria.

Eileen (PARTE II) (Em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora