6- Mentiras

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Houve um silencio dentro do tronco da árvore.
Aelle me fitava como se estivesse esperando por uma reação imediata, daquelas em que alguém se descontrolaria, mas não me manifestei. Acreditei que tanto eu, quanto Nerian pudéssemos estar em choque, sem saber o que pensar a respeito do que Eklere tinha acabado de dizer. Afinal, não havia a menor possibilidade de Aelle ter feito aquele fio de cristal.
Mas depois, percebi que talvez eu estivesse enganada sobre Nerian. Pois, apesar dele estar lançando um olhar sugestivamente cínico na direção de Aelle, seu semblante estava tranqüilo, como se aquela notícia não o tivesse afetado.
– É querida, acho que andaram escondendo coisas de você. –Eklere assoviou ao meu lado, e se afastou a passos longos e desengonçados.
Aelle observou o jeito desengonçado de Eklere e fez uma careta, logo depois voltou seu olhar para mim.
– Sim, eu fiz o fio de cristal. –Aelle suspirou como se aquilo fosse algo sem importância. –E antes que você conclua... –Aelle enrugou a testa e me fitou severamente. –Sou alguns anos mais velho que você, o que permitiu que eu estivesse presente quando os sentinelas te levaram até Quartzo.
– Alguns? –Nerian inquiriu provocante.
– É alguns! –Aelle respondeu olhando na direção de Nerian que sorria zombeteiro.
– Mas como isso é possível... – Murmurei quase que para mim mesma, olhando na direção de Aelle. Minha cabeça começou a dar voltas, e aquela sensação de fraqueza começou a me rondar mais uma vez. Eu já estava cansada desse sintoma, era como se meu corpo não conseguisse resistir a nada, nem mesmo a reações comuns como espanto e desapontamento, que era exatamente o que me inundava naquele momento. Eu tinha vontade de quebrar alguma coisa, bater em alguém, mas meu corpo lutava contra mim, me obrigando a ficar imóvel. Percebendo que meus olhos escureciam, cambaleei para um toco de madeira que avistei atrás de Aelle e me sentei nele.
– Eklere, há como evitar essas fraquezas? –Aelle correu para o meu lado e segurou em minha mão. Imediatamente eu a puxei de volta, não queria que ele me tocasse.
– Posso fazer com que elas diminuam por alguns dias, mas não posso fazê-las desaparecerem. –O velho lemuriano disse ao se dirigir até uma prateleira feita de madeira, que estava cheia de frascos de cristais. –Elas não são iguais a uma doença qualquer.
– Conte a ela como Lisimba possuiu seu corpo, para enfiar uma barra de metal nas costas dela? –Nerian ignorando o meu mal estar desafiou Aelle.
Olhei para Aelle, ele parecia estar furioso ao fitar o semblante desafiador de Nerian.
– Você não está ajudando... –Aelle rosnou na direção de Nerian e depois olhou para mim. – Ela não está bem...
Eu fiquei imóvel enquanto Eklere me entregava algumas folhas secas com a textura áspera, mandando que eu as mastigasse e engolisse. Tinha um gosto azedo e nauseante, mas eu obedeci. Meus olhos continuavam encarando Aelle, eu não sabia o que pensar.
– Eu não suporto mais isso! –Nerian gritou exasperado ao socar a parede do tronco da árvore.
– O que ele quer que você me conte, Aelle? –Minha voz vacilou, mas continuei encarando os olhos azuis que estavam me fitando temerosos.
– Lisimba e eu... –Aelle murmurou apreensivo. – Nós dois...Ah, Eileen! –Aelle balançou a cabeça indeciso.
– Conte a ela, ou eu faço isso. –Nerian se aproximou.
– Eu sempre controlei Lisimba, e não o contrario. –Aelle falou por fim, voltando a me fitar nos olhos, eu estava confusa. –Eu ataquei você... Era eu o tempo todo.
As palavras de Aelle me nocautearam, causando-me uma súbita paralisia, onde a única coisa que eu conseguia fazer, era continuar olhando para ele. Me lembrando de como eu havia me culpado por Aelle ter sido atacado por lobos dentro daquela cela de gelo. Me culpado por Lisimba ter se apossado do corpo dele. Me culpado quando vi Nerian e Aelle lutando dentro daquela redoma. Eu havia me recusado a lutar quando ele me atacou, por achar que era Lisimba controlando-o. Eu quis justificar quando Aelle covardemente me atacou pelas costas, quase me matando. E por fim, fui incrivelmente estúpida ao soltá-lo daquela cripta, tentando reparar meus erros, agindo cegamente ao obedecer meus impulsos insensatos.
Aelle ainda permanecia agachado ao meu lado, seu olhar parecia preocupado com qualquer coisa que estivesse passando pela minha mente. Eu não tinha certeza sobre o que exatamente se passava pela minha cabeça naquele momento e, antes mesmo de pensar direito sobre o que eu estava prestes a fazer, segui o impulso e quando vi, a palma de minha mão direita se chocava bruscamente no rosto pálido de Aelle. Houve um pequeno estalo, antes que ele se desequilibrasse, apoiando um dos joelhos no chão, enquanto a palma de minha mão deslizava sobre o rosto dele. Aelle manteve seus olhos azuis me fitando com uma mistura de espanto e ressentimento. E eu demorei para perceber que minha respiração estava arfante. O tapa que dei no rosto de Aelle não foi premeditado, eu apenas havia chegado ao meu limite, e meu corpo instintivamente reagiu.
– Ohhhhhhhhhh! –Eklere se agachou ao nosso lado e ficou encarando o local avermelhado no rosto de Aelle. Ele parecia surpreso, mas, ao mesmo tempo estava se divertindo com aquilo. –Mulheres são imprevisíveis, meu caro.
Lentamente me levantei do toco de arvore onde eu estava sentada e saí andando tentando não tropeçar nos meus próprios pés. .
Passei por Nerian que estava pasmo ao me encarar, olhei para ele assustada, e então ele sorriu para mim demonstrando satisfação, e se juntou a mim, indo para fora do tronco da árvore de Eklere.
Eu estava nervosa. Muito nervosa. E a palma de minha mão estava extremamente dolorida. Se eu tivesse asas, teria saído voando para muito, mas muito longe.
Após sair do tronco da árvore, respirei profundamente o ar puro que imanava entre todo aquele verde da floresta lemuriana. Andei de um lado para o outro como se isso fosse capaz de me ajudar de alguma forma. Eu precisava me acalmar.
Nerian se escorou em umas das enormes raízes que se sobressaiam pelo chão de terra fofa, e ficou me olhando caminhar na sua frente. Seus olhos violetas me sondaram por um breve momento, até que ele estendeu suas asas negras rapidamente, me assustando.
– O objetivo desse fio de cristal em nossas mãos, é me manter compelido a cuidar de você. –Ele comentou erguendo sua cabeça para cima, de forma que réstias de sol pairassem sobre sua face pálida e o cabelo negro. –Me manipulando á fazer isso mediante a qualquer circunstância. Colocando você como minha única prioridade.
Ao ouvir isso eu parei diante dele.
– Por não me contou sobre isso? – Eu me sentia traída.
– Não queira me questionar sobre isso. – Ele me lançou um olhar cínico e depois voltou a olhar o céu sobre sua cabeça. –Aelle é o vilão aqui.
– Eu não entendo por que Aelle teria motivos para querer nos ver presos um ao outro! –Encarei Nerian, mas ele continuava olhando para as copas das árvores acima de sua cabeça.
– Sara pediu a Lisimba que poupasse a minha vida. –Nerian riu sarcasticamente. – E em troca disso, eu viraria seu guardião. O que despertou em mim uma obsessão por manter você protegida o tempo todo.– Ele pareceu refletir por um breve momento. –Agora me pergunto se meus sentimentos por você são reais ou não. Isso me confunde.
-Isso explica o "radar de Eileen".–Eu murmurei inquieta. –Há quanto tempo você sabe disso?
-Desde á noite que Aelle voltou. –Nerian desviou o olhar. –Isso foi o motivo de termos estabelecido uma trégua temporária.
-Por que não me contou?
-Pensei no nosso casamento... –Nerian riu sem humor olhando na minha direção, seus olhos estavam tristes –Isso é apenas mais um motivo para você não dar uma chance para ele existir.
-Nerian você percebe que nada do que sente por mim, pode ser real? –Joguei as mãos para o alto consternada, eu queria bater em alguma coisa.
-Por isso quero que tirem isso de mim, Eileen. –Nerian murmurou me fitando nos olhos.
– Nerian... – Murmurei, eu não sabia o que dizer sobre isso. Apenas me sentia enganada, eu queria poder voltar lá e acertar uma adaga no coração de Aelle. Era só nisso que eu conseguia pensar naquele momento. –Eu desejava voltar a ser uma lurz por pelo menos um minuto...
– E tentaria me matar, Eileen? –Aelle surgiu atrás de mim, ele parecia enfurecido. –Lamento te informar, mas isso não será possível.
– Que pena! – Exclamei chacoalhando a cabeça. –Quem é você, afinal?
– Alguém em quem você não deve confiar!
– Tarde demais para me dizer isso, não acha? – Apertei minhas mãos em punho. Minhas pernas vacilaram, e eu cambaleei. O que fez com que Nerian se aproximasse de mim, passando um de seus braços ao redor de minha cintura, me mantendo firme.
Era como se o chão estivesse se abrindo abaixo de meus pés, enquanto o céu desabava sobre a minha cabeça. Eklere surgiu ao lado de Aelle, balançando a cabeça enquanto me lançava um olhar solidário.
– Eu não teria tanta pena da outra Caeli como estou tendo de você, menina.
-Aelle tentou me matar de verdade em Atalaia! –Eu tremia, meus olhos não se desviavam de Aelle um segundo se quer, lembrando de todo esse tempo em que fiquei esperando que ele voltasse, como uma tola. –Nem sei mais se vir até aqui foi uma boa idéia.
– Eu posso imaginar no que você esta pensando... –Aelle murmurou pensativo.
– Não faço questão de manter em sigilo, o quão estúpida eu fui! – Maneei a cabeça, enfiando meus dedos entre os meus cabelos. –Eu achava que talvez pudesse estar apaixonada... – Suspirei cansada.
Aelle me fitou de um jeito estranho por breves segundos, como se estivesse tentando encontrar a frase certa para retrucar.
– Eu também estou apaixonado... –Aelle vociferou –Há muito tempo aliás... Mas é diferente para nós dois.
-Com certeza é diferente! –eu bufei nervosa. –Eu disse que "achava" que estava apaixonada, não que eu "estou".
-Você é muito nova para compreender certas coisas, Eileen. –Aelle suspirou pesadamente –Na sua idade, nada é constante.
-Graças aos céus por isso! –balancei a cabeça negativamente e ergui minha cabeça, ao olhar para o rosto de Nerian ao murmurar cansada –Eu quero ir embora.
Por trás de Aelle, vi Eklere piscar para mim de um jeito malicioso, ele sorria como uma criança travessa que conspirava fazer alguma arte, enquanto se balançava de um lado para o outro sem sair do lugar. Internamente eu me questionava sobre a sanidade daquela criatura.
– Então é isso! –Eklere exclamou sorrindo, capturando nossa atenção.
– Isso o quê? –Nerian esquivou um das sobrancelhas voltando a sua atenção para o Eklere.
– Mandarei dizer a Kepri e ao Bomani que você e Eileen devem ficar em Lêmur por algum tempo. –Eklere falava com tanta naturalidade que era como se nada estivesse acontecendo de errado. –Eileen, você tentará recuperar sua resistência física enquanto estiver aqui, e mandarei que Calleo se encarregue de mostrar-lhe como conseguir isso. É o máximo que posso fazer por você no momento.
– Obrigada. –Era melhor que nada, pensei.
– Quanto à vocês dois, –Eklere ficou sério de repente alternando seu olhar de Nerian para Aelle e assim sucessivamente e logo deu uma gargalhada histérica –Aelle ficará comigo aqui na árvore, será mais conveniente. –Eklere lançou um olhar sorrateiro na direção de Aelle e depois olhou para Nerian que o observava pensativo. –Quanto a você, certifique-se de que esse casamento de mentirinha pareça real diante de todos, isso também será conveniente no momento.
– Conveniente? –Nerian estreitou o olhar e inclinou o pescoço para o lado como se estivesse avaliando a feição do Eklere. –Conveniente como?
– Para nós lemurianos, o casamento é algo sagrado, e levamos isso muito à sério.
– E quanto ao fio de cristal que Aelle criou? – Interrompi a troca de olhares entre Nerian e Eklere me colocando entre eles.
– Não há como ser removido, por enquanto. –Eklere sorriu, dando de ombros despreocupadamente.
-Mas há um maneira de libertar Nerian disso? –Eu olhei para Nerian, que pareceu não gostar do que eu disse.
-Talvez. –O Eklere suspirou –Mas temo que não será de uma forma agradável.
-Como assim? –Insisti.
-Segundo o que Aelle me disse sobre o casamento de vocês... –Eklere espiou Aelle pelo canto dos olhos, mas Aelle me observava fixamente –Sua espécie faz cálculos matemáticos para evitar maldições. E vocês dois juntos somaram um numero de enlace fatal.
-Se eu morrer, Nerian morre também, ou vice e versa. –eu disse tentando compreender o que Eklere estava pensando.
-Acho que posso conectar o fio de cristal á isso. –Eklere estreitou os olhos e olhou para Nerian, que o encarava com preocupação –Mas pode ser arriscado.
-Teríamos que morrer para que esse fio sumisse? –Minha cabeça doeu.
-Não necessariamente... –Eklere inclinou a cabeça fazendo uma careta –Mas há probabilidades consideráveis.
Houve uma troca de olhares significativa entre mim e Nerian, mas permanecemos em silencio. Eu podia imaginar como ele se sentia, mas isso poderia ser apenas por causa do fio de cristal. Talvez sem ele, Nerian tirasse um fardo dos ombros.
-Mas não vamos nos preocupar com isso agora –Eklere sorriu de um jeito estranho e passeou o olhar cor de rosa fosforescente por todos nós –Deixemos tudo exatamente como está, por enquanto, é mais seguro assim.

Após dizer isso, Eklere assoviou uma melodia animada, como se estivesse brincando ao fazer aquele barulho. Mas logo pequeninas criaturas verdes de textura nimbosa surgiram voando entre a mata. Suas asinhas quase transparentes batiam com rapidez, mantendo-os plainando no ar.
Apesar de terem traços físicos iguais aos lemurianos, eram completamente verdes, e a pele que mais parecia ser constituída por limbo, era homogenia, não deixando visíveis olhos, boca ou nariz, apesar de pequenos traços evidenciarem sua existência.
– O que são eles? – Perguntei curiosa, admirando-os com cautela.
– Mensageiros. –Eklere sorriu para mim encantado. –Esses pequenininhos podem ser muito mais perigosos do que aparentam, querida. Não deixe que sua aparência frágil a engane.
– Não pretendo continuar me enganando. –Balanceia cabeça, assentindo devagar quando uma das criaturas verdinhas parou diante de meus olhos, eu podia jurar que a tinha visto sorrir.
– Levem uma mensagem minha até Bomani. –Disse Eklere com um tom de voz infantil, as criaturinhas aladas se voltaram na direção dele. –Digam a ele, que cuide dos meus convidados, oferecendo-os estadia, comida e bebida, até que eu ache necessário. E mande Calleo vir até mim hoje, antes que o sol se ponha. Eklere anuiu com a cabeça como se agradecesse o favor, e então as criaturinhas saíram voando depressa entre os galhos das árvores.
– Quem é Bomani? –Nerian caminhou até uma raiz perto dele e se sentou nela.
– O lemuriano de túnica verde, ele é o marido de Kepri. –Aelle respondeu a pergunta de Nerian indo se sentar em uma raiz do lado oposto. –Ele é o rei guerreiro e ela a rainha mãe. Depois do Eklere, são eles que mandam por aqui.
– E como você sabe disso tudo, Aelle? –Inquiri indo me sentar ao lado de Nerian. Tanto Aelle quanto o Eklere me fitaram intrigados.
– Outra hora vocês conversam sobre isso. –Exclamou Eklere fazendo uma careta engraçada. – Logo irá anoitecer e vocês tem que voltar para a bromélia imperial.
– Não tenho certeza se me lembro o caminho de volta. – Refletiu Nerian preocupado ao olhar para Eklere.
– Aelle deve saber... – Comentei com desdém. –Pelo visto, aqui é como uma segunda casa para ele.
– Quase isso. –Aelle refletiu ao piscar malicioso. –Mas eu não posso te acompanhar até lá, Eileen, infelizmente.
– E por que deveríamos ficar aqui? – Desafiei. –Não confio em Aelle, e certamente não será seguro enquanto ele estiver por perto.
– Você quer suas asas de volta, não quer? –Aelle perguntou com raiva.
– Não sei mais se vale a pena. – Respondi azeda.
Eklere se aproximou de mim, colando sua mão direita em meu ombro ao dizer: –Querida, se uma águia se acostumasse com a vista aqui debaixo, perderia seu reinado lá no alto. Pense nisso!
Eu e Nerian fizemos uma rápida troca de olhares, na qual ele assentiu com a cabeça, concordando de voltar para a bromélia dos lemurianos. Na verdade, não tínhamos outra escolha, estávamos em Lêmur e não fazíamos idéia de como voltar para Carbert, o que deixava o traidor do Aelle um passo a nossa frente.
– Como eu já havia dito, e Aelle reforçou, Aelle não poderá acompanhá-los até a bromélia imperial hoje. –Eklere disse cordialmente. – Mas os guias irão levá-los de volta.
– Melhor assim... – Eu disse baixinho, Eklere me olhou de soslaio. –Mas só por curiosidade. – Fiz uma breve pausa: –Por que Aelle ficará aqui?
– Aelle não é bem vindo junto aos lemurianos. –Eklere piscou para mim. –Coisas do passado que logo se resolverão, não se preocupe.
– Entendi. – Maneei com a cabeça antes de desviar o olhar para Aelle.
– Então nos veremos amanhã durante o almoço. –Eklere disse: –Aproveitem sua estadia em Lêmur, e procurem não se questionarem do por que estão aqui, a compreensão dos acontecimentos virá com o tempo.
– Não temos outra escolha mesmo. –Comentei desanimada, e Eklere sorriu.
– O bom de não te oferecerem escolhas, é que isso impedirá que você faça a escolha errada. –O Eklere murmurou ao nosso lado enquanto apontava o dedo para a floresta. –Agora vocês dois devem ir à bromélia, é só seguir os lêmures das árvores.
Chegamos a bromélia sem nenhum problema. Kepri e Bomani já nos aguardavam, recebendo-nos com mais gentileza do que da primeira vez. O centro da bromélia era miraculoso. Haviam escadas circulares feitas das próprias folhas da bromélia, onde mesmo olhando para o alto, não era possível enxergar o final delas. Varias lamparinas se estendiam até o topo, pois tudo dentro da bromélia era iluminado.
Os lemurianos iam e vinham de todo o canto, caminhando devagar, cumprimentando uns aos outros de forma gentil. Kepri se encarregou de me acompanhar, enquanto Bomani seguia para outro lugar com Nerian. Segui Kepri por uma das escadas que ela foi, enquanto crianças desciam cuidadosamente por ela. Todos muito miudinhos, com os traços do rosto delicados e gentis, as orelhinhas pontudas pareciam atentas ao que Kepri dizia a eles enquanto passávamos, o que deduzi ser algo bom, pois eles sorriam.
Chegamos a um corredor iluminado, onde outros lemurianos passeavam. Kepri cumprimentou todos por quem passamos ate pararmos em frente a uma folha verde e larga que estava pendurada como se fosse uma porta.
– Aqui será seu quarto. –A voz aveludada de Kepri avisou enquanto ela afastava a folha para que entrássemos no cômodo por trás dela.
Era um quarto imenso, todo iluminado com luz fraca. No chão haviam várias mantas e grandes almofadas coloridas, que sugeriam ser como uma cama. Panos de seda estavam pendurados pelo teto balançando pelo vento que entrava através da enorme abertura que havia do lado oposto do quarto, de onde dava para ver o horizonte coberto por estrelas.
– É lindo... – Eu disse maravilhada com a vista ampla e tranqüila.
Kepri apenas sorriu anuindo com a cabeça.
– Atrás daquela folha, há uma cúpula cheia de água, na qual poderá banhar-se se quiser. –Ela apontou o dedo para o canto do quarto, onde havia uma passagem estreita. –E há mantas para se secar também.
– Obrigada! – Sorri ao fitar seus arredondados olhos cor de rosa.
– De nada! – Ela sorriu de volta para mim e observou minhas roupas. –Sobre as almofadas há uma túnica vermelha, vista-a após o banho se quiser.
Eu assenti com a cabeça, e ela saiu do quarto.
Os lemurianos haviam sido muito gentis conosco, nos oferecendo um lugar para dormir. Puxando a parte de cima perto do caule da bromélia como Kepri havia me ensinado, consegui fazer com que um boa quantia de água caísse sobre minha cabeça. A água estava fria, o que fez com que o calor percorrendo por baixo de minha pele fosse amenizado. Após um banho gelado, me enrolei nas mantas que ela havia me dado e saí da cúpula.
Ao sair, me deparei com Nerian e Bomani em pé, observando a esteira coberta por mantas que estava entendida sobre o chão verde.
– O que vieram fazer aqui? – Perguntei espantada, enrolando-me mais ainda nas mantas secas.
– Eu não sabia que vocês eram casados. –O lemuriano de túnica verde sorriu divertido.
Eu sorri meio sem graça, e olhei para Nerian.
– Eu e Nerian... nós não... hã... –Comecei a torcer meus cabelos tirando o excesso de água enquanto tentava descobrir o que dizer.
– Obrigado por me trazer até aqui, Bomani! –Nerian agradeceu cordialmente estendendo a mão para que o lemuriano saísse. –Tenha uma boa noite.
– Boa noite. –Bomani sorriu e depois se retirou, deixando Nerian e eu sozinhos.
Nerian se voltou para mim e eu o encarei.
-Não é como se nós dois nunca tivéssemos compartilhado uma cama antes –Nerian ponderou por um momento –Não é como se não tivéssemos nenhum tipo de intimidade.
-Eu sei... –Balbuciei, as maças do rosto ficando febris –Mas agora é diferente.
-Por causa do casamento? –Nerian riu sem humor ao me olhar nos olhos –Já deu para perceber isso, Eileen.
-Eu não tenho asas Nerian! –Eu apertei a manta com mais força envolta do corpo –Nem fogo violeta... –Eu o encarei constrangida –Eu me sinto insegura... vulnerável.
Nerian desviou meu olhar, e analisou o quarto, se demorando nas mantas e almofadas que estavam estendidas sobre o chão.
– Posso levar algumas almofadas? –Ele perguntou de repente ainda encarando as almofadas coloridas.
– Pode. – Murmurei, entendendo o motivo de imediato.
– Então amanhã antes que todos acordem, eu volto. –Nerian disse pegando quatro almofadas grandes.
– Aonde você vai? – Observei quando ele se dirigiu para a parte aberta do quarto que mais parecia uma espécie de sacada.
– Vou dormir lá fora, até você se sentir confortável com o nosso casamento, Eileen. – Ele respondeu despreocupado. – Mas como não sabemos exatamente quem são esses lemurianos e por que Aelle nos trouxe até aqui, é melhor fazermos o que Eklere sugeriu e fingirmos que esse casamento é real.
A indiferença com que Nerian disse aquilo me deixou estranhamente desapontada.
– Fingir? – Balbuciei baixinho quase que para mim mesma, o significado daquela palavra não me agradou.
– Não se preocupe, logo você se verá livre dessa aliança, se é o que tanto deseja.
-Você esta bravo comigo? –Franzi o cenho. Era nítido que ele estava.
-Bravo não é a palavra que eu usaria, Eileen. –Ele exalou profundamente –Você disse que achava que estava apaixonada por Aelle, e isso não foi agradável de ouvir.
-Eu fiquei confusa enquanto estávamos reunindo as acepções. –Tentei me defender –Você sempre me tratou como se eu fosse uma irmã mais nova que dava trabalho, e agora com esse fio de cristal, nem sabemos se você iria agir assim comigo caso ele não existisse.
-Eileen... –Nerian suspirou, fechando os olhos com força –Eu estou cansado!
-Você não precisa ir dormi lá fora... –Eu murmurei olhando para as almofadas no chão. –Me desculpe por fazer você pensar que eu achava que você me forçaria a alguma coisa... Eu nunca pensei algo assim de você, mas o casamento repentino me deixou apavorada. –Eu tentei sorrir –Você mesmo disse que eu sou imatura... tenha paciência.
-Eu sempre tive paciência, Eileen. –Ele me olhou com desanimo –Eu prefiro dormir lá fora hoje.
-Tudo bem. –Dei de ombros fingindo desinteresse, mas a verdade é que eu estava contrariada.
-Boa noite, Eileen! –Nerian piscou para mim e saltou no céu escuro.
– Boa noite! – Respondi ao observá-lo, enquanto as asas negras de Nerian desapareciam junto à escuridão noturna. Então ergui minha mão contra a luz da lua e observei a aliança de cristal mais uma vez, eu não sabia se queria realmente me livrar dela.


Eileen (PARTE II) (Em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora