5- Lêmur

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A primeira coisa que percebi quando acordei, foram as mãos de Nerian e Aelle, que ainda se mantinham segurando firmemente nas minhas, apesar deles ainda estarem adormecidos. Estávamos deitados no meio de uma relva rasteira e fofa, entre meio a flores coloridas. O sol brilhava no alto, através das copas das árvores de cerca de trinta metros de altura.
Ainda me sentindo um tanto zonza, virei meu rosto na direção de Aelle.

Seu rosto estava voltado para mim, seus olhos estavam fechados, e os lábios rosados formavam uma linha tênue na face branca que estava sendo iluminada pelo sol. Os cabelos negros, que agora estavam mais longos, se espalhavam pelo gramado verde, onde suas asas brancas prateadas também se estendiam. Cada linha reta traçada em seu rosto era harmônica com os demais traços angulares que desenhavam a face indiscutivelmente bela de Aelle. Era uma beleza infantil, e ao mesmo tempo exótica. Extremamente atrativa, o que não ajudava em nada para que eu o ignorasse. E eu queria me empenhar nisso. Em ignorar Aelle. Pelo menos enquanto essa fase matrimonial com Nerian não tivesse um fim.
Para que isso fosse possível, eu procuraria manter vivida a sensação daquela barra de metal atravessando minhas costas. Eu precisava me lembrar do tanto que Aelle foi traiçoeiro, e mais ainda, eu precisava ter consciência do quão estúpida fui naquela época. Eu me convenceria de que não existiu e nunca existirá um motivo plausível para que eu me sentisse demasiadamente atraída por ele. Desta vez, eu não o usaria como pretexto para me manter agarrada aos velhos maus hábitos, onde minha falta de sobriedade obviamente prevaleceria. Eu controlaria meus impulsos, pelo menos faria de tudo para isso, de forma que em um determinado momento, meu coração deixasse de acelerar apenas por olhá-lo dormir ao meu lado, sentindo o toque cálido de sua pele enquanto sua mão estava presa na minha.
Respirei profundamente e me virei na direção de Nerian, ele também estava com o rosto virado na minha direção. Suas asas negras estavam um pouco arqueadas, pois ele estava de bruços no gramado macio. Sua bochecha estava se amassando contra o antebraço esquerdo, e a aliança brilhante ainda descansava em seu dedo anelar.
Olhei o rosto sereno de Nerian, que dormia tranquilamente. Ele era tão singular. Um ar de gentileza exalava dos traços lineares de seu rosto, e mesmo sabendo o quão independente Nerian era, me senti compelida a querer cuidar dele. Talvez eu me sentisse assim pelas coisas que Sara havia contado, ou talvez não. Nerian era tão belo quanto Aelle, e com certeza mais confiável também. Se eu fosse comparar os dois, Nerian certamente se sobressairia. Seu temperamento passional e gentil, acompanhados de suas atitudes conscientes e cautelosas, desbancariam Aelle num piscar de olhos. Sem contar que eu poderia apostar que Nerian jamais teria coragem de me atacar pelas costas, apesar dele ter me feito refém de um ritual núbil, onde nossas vidas ficaram totalmente ligadas. Aquele ritual nos fez ficar dependentes um do outro para continuarmos vivos, ele dizia que sabia o que estava fazendo, mas eu não conseguia ver o lado bom disso, apesar de secretamente confiar nele.
Com Nerian era fácil me sentir segura o tempo todo, como se eu não precisasse me preocupar com nada além de meus próprios disparates, dos quais ele certamente tentaria cuidar também. E era isso o que me incomodava nele. Nerian era protetor demais, com ele eu não corria riscos, e isso fazia com que não houvessem expectativas maiores, ou algo que pudesse me surpreender. Eu não me defrontava com "Será's" ou e"se's", e isso fazia falta as vezes.Nerian representava tudo o que uma lúrida definiria como "para sempre", e isso fazia com que ele parecesse perfeito demais, e coisas perfeitas nunca foram muito interessantes para mim.
O fato, é que a dedicação dele me sufocava. E nós dois não merecíamos passar por isso, pois era degradante para ambos. Não era justo que ele vivesse sua vida ao redor da minha, precisávamos ser livres um do outro. Nerian e eu, não éramos compatíveis. Seu bom senso constantemente seria abalado por minhas escolhas nem sempre certas, e por mais que obter o apoio incondicional de alguém fosse bom, acredito que encarar minhas imperfeições de frente seria algo melhor.
Lentamente me desvencilhei deles e me levantei, na tentativa de não fazer nenhum movimento brusco de forma que eu os acordasse. Eu estava confusa com meus sentimentos. Nerian e Aelle eram tão diferentes. E mesmo assim eu não me sentia boa o bastante para nenhum deles. Eu havia chegado a um ponto em minha vida, no qual eu não tinha mais tanta certeza de quem eu queria ser. Antigamente, quando eu só pensava em mim e em minhas vontades, as coisas pareciam mais fáceis. Tudo é mais fácil quando o centro de nossa atenção somos nós mesmos, mas as coisas costumam se complicar quando resolvemos dividir essa atenção com mais alguém. E é a partir daí que geralmente sofremos.
De alguma forma, quando minhas asas e todos os meus outros poderes foram arrancados de mim, parte de minha essência pareceu desaparecer também. E eu desconfiava que a parte que estava faltando era muito forte, pois a que sobrou só me oferecia vulnerabilidade. E eu estava detestando isso. O que me fazia desejar a parte que me foi arrancada de volta.
Eu desejava não me importar com coisas tipo, o bom senso de Nerian ou o que supostamente eu representava para ele. O egoísmo me mantinha segura de fraquezas como esta, com ele era fácil se desligar dos sentimentos. Sara não devia ter me contado sobre o passado de Nerian, sinto que as coisas mudaram depois disso...
"Se concentre, Eileen!" –A voz daquela menina invadindo meus ouvidos me deixou alerta. "Você precisa manter o foco".

Eileen (PARTE II) (Em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora