7- Submersão

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Pela manhã quando acordei, me deparei com Calleo parado no batente da porta, com os braços cruzados e um semblante nada amigável estampado no rosto.
– Bom dia. – Eu disse meio sonolenta.
– Eklere pediu que eu a ajudasse! – Seus olhos cor de rosa se estreitaram ao observar a túnica vermelha que Kepri havia me dado para vestir na noite anterior, mas logo depois se desviaram para olhar outra coisa. – Seu marido ainda esta dormindo?
Lentamente me virei para o lado onde Calleo olhava, e ao ver Nerian deitado sobre as almofadas senti que meu rosto enrubescia.
– Posso te encontrar daqui alguns minutos? – Murmurei meio sem graça ao me levantar.
– Estarei te esperando lá fora, não demore. –Calleo disse friamente me dando as costas e saiu do quarto. –Temos um longo treinamento pela frente.
Assim que Calleo saiu olhei para Nerian novamente, ele dormia pesadamente, como se já estivesse assim por algum tempo. Eu não havia visto quando ele voltou.
Ao lado esquerdo do quarto tinha uma bandeja cheia de frutas, a qual alguém devia ter colocado enquanto eu ainda dormia. Me encaminhei até ela, e observei uma tigela cheia de morangos vermelhos, ignorando o resto das frutas, peguei um deles. Eu não fazia idéia do que Calleo queria dizer com treinamento, mas Eklere havia dito algo sobre Calleo me ajudar a recuperar a resistência física do meu corpo, e isso era algo que me interessava bastante.
Apesar de estar curiosa para descobrir o que Eklere havia planejado para mim através desse treinamento com Calleo, não me senti muito entusiasmada.
Peguei alguns morangos que haviam na bandeja, me dirigi até a enorme sacaca que havia no lado norte do quarto. Lêmur era sem dúvida encantadora. Da altura de onde eu estava, a visão era completa, eu podia avistar as cachoeiras altas que se distribuíam entre o imenso vale, de onde as águas caiam como um manto de seda azul sobre as rochas.
Haviam montanhas e planícies cobertas por um verde vívido, que era suavemente iluminado pelos primeiros raios solares do início da manhã. No céu haviam criaturas divagando pelo céu azul e sem nuvens. Eram pássaros com asas enormes, maiores que o próprio corpo, variando em tons de laranja, azul e rosa. Tinham caldas coloridas, idênticas a um arco íris luminoso que se diluía conforme se balançava. Esses pássaros plainavam em torno da bromélia, como se cuidassem dela.
Terminando de comer o último morango que estava em minha mão, olhei novamente na direção de Nerian. Ele continuava dormindo profundamente, provavelmente a noite que ele passou fora, não devia ter sido tão tranqüila, de forma que ele deixou para dormir aqui.
Eu gostaria de conversar com ele sobre esse nosso casamento, como também sobre a forma como Sara se suicidou, mas não conseguia uma oportunidade adequada. Os acontecimentos pareciam se amontoar uns sobre os outros, nos ocupando com diversas coisas das quais muitas me confundiam bastante. Assim, me aproximei de onde Nerian estava e passeei as pontas dos dedos sobre os cabelos dele, tão macios e lisos, quase conseguiam roubar a textura da seda que enfeitava o quarto.
– Não desista de mim ainda. – Sussurrei baixinho ao me inclinar e depositar um suave beijo na testa dele. –Eu não conseguiria ficar aqui sozinha...
Lentamente me afastei dele, e segui para a porta do quarto, deixando-o dormir em paz.
As crianças lemurianas, todas esguias e magrelas corriam pelo corredor com suavidade, seus movimentos eram tão delicados que mesmo correndo, elas pareciam flutuar sobre o chão verde da bromélia. As meninas, tinham o rosto em forma de coração, e sobre suas cabeças haviam coroas de flores, por onde os espessos cabelos prateados serpenteavam, escapando em pequenas mexas para emoldurar o delicado rosto. Já os meninos tinham os cabelos mais curtos, o que realçava as orelhinhas pontudas e os arredondados olhos cor de rosa.
Algumas lemurianas penduravam flores dentro da bromélia. A leveza de seus movimentos eram tão femininos e delicados, que era quase impossível, imaginá-las manuseando uma adaga para se defender, caso fosse necessário. Até mesmo a suavidade de seus traços físicos, sugeria uma inocência peculiar. Tão simétricos e anelados, denunciando extrema fragilidade. Eram mulheres de uma beleza exoticamente infantil, que se ressaltava através dos grandes e arredondados olhos cor de rosa.
Olhando ao redor com mais atenção, percebi que só haviam mulheres e crianças dentro da bromélia.
– Bom dia! – Uma delas me disse educadamente. –Calleo esta esperando lá embaixo.
– Obrigada. – Lhe dei um sorriso tímido, e olhei novamente ao redor. –Só há mulheres aqui?
– Sim! – Ela anuiu com a cabeça. – Os homens cuidam da terra pela manhã, enquanto cuidamos da bromélia.
– Hum. – Eu não havia entendido o que ela quis dizer com "os homens cuidam da terra", mas balancei a cabeça positivamente como se tivesse entendido, e segui para a escada, deixando que ela continuasse mexendo com as flores no interior da bromélia.
Desci as escadas devagar, era esquisito usar aquela túnica comprida, que não me permitia dar passos muito largos sem tropeçar. O que me fez pensar em voltar lá em cima e trocar de roupa, mas Calleo me esperava no final das escadas, o que me desmotivou a voltar.
– Temos que voltar antes do almoço, então se puder se apressar... – Ele disse de uma forma um tanto rude e estendeu a mão para mim.
Eu fitei a mão dele com a palma voltada para cima, me perguntando se ele estava esperando que eu a pegasse. Vendo que eu não me decidia, ele retirou a mão e deu de ombros.
– Para onde vamos? – Perguntei quando ele começou a andar em direção a saída.
– Para uma cachoeira.– Ele respondeu sem olhar para mim.– Hoje te ensinarei a ouvir.
– Me ensinará a ouvir? – Eu ri. –Não sei se você percebeu, mas não tenho problemas de audição.
– Se não tivesse, teria ficado em silêncio agora. –Calleo replicou com indiferença, e seguiu andando mais depressa. Confesso que pensei em parar no meio do caminho e deixá-lo prosseguir sozinho, mas eu havia me comprometido em fazer as mudanças que fossem necessárias para recuperar minhas asas.
Saímos da bromélia, e raios de sol nos encontraram, mornos e suaves, acariciando a pele. Em frente a bromélia haviam alguns lemurianos sentados em silêncio sobre a grama rasteira, todos de olhos fechados diante ao sol, numa espécie de meditação coletiva. Calleo e eu passamos por eles sem fazer barulho.
Logo mais a frente estava a mesma garota lemuriana com que Calleo estava de mãos dadas no dia anterior. Ela vestia uma túnica cor-de-rosa, combinando com a cor dos seus olhos que eram grandes e arredondados. Os cabelos prateados dela, escorriam em uma longa trança sobre o ombro direito. Calleo olhou fixamente na direção dela, e ela então sorriu timidamente para ele.
– Bom dia, Lenir. –Ele disse gentilmente, ao parar na frente dela.
– Bom dia, Calleo. –Ela murmurou timidamente para ele, e depois olhou para mim acenando com a cabeça. Eu acenei de volta para a garota, enquanto Calleo se afastava de nós.
Então me apressei em alcançá-lo, deixando a garota para trás.
Depois de passarmos por uma estreita trilha entre as árvores, passamos de frente a uma plantação de hortaliças, na qual haviam lemurianos espalhados cavoucando a terra e plantando outras sementes.
– Vocês parecem dominar a terra. – Comentei admirada ao perceber um extenso pomar, onde outros lemurianos pareciam estar fazendo colheita.
– A terra não se domina. –Calleo disse andando a minha frente. – Apenas cuidamos dela, e em troca recebemos os frutos.
– Não foi isso que eu quis dizer... –Suspirei. –Deixa pra lá!
Continuamos caminhando em silêncio até chegar em uma enorme cachoeira, onde as águas cristalinas ondulavam até a beirada do lago que se formava embaixo dela.
– Quero que você mergulhe, e tente se concentrar apenas no barulho da água fluindo ao seu redor. –Calleo disse de repente.
– Pra quê? – Cruzei os braços rente ao peito, a água deveria estar gelada àquela hora da manhã.
– Quando eu era pequeno, meu pai me contou uma história, sobre um anjo de asas douradas... –Calleo se voltou na minha direção, me olhando de um jeito desafiador. –Ele possuía muitos dons, mas tinha medo deles.
– Dons? – Interrompi, eu havia conhecido um anjo dourado, e a única coisa que ele não tinha era dons.
Calleo anuiu com a cabeça e continuou com um tom de voz sereno.
– Na verdade, o anjo não os queria. –Os olhos cor de rosa de Calleo se estreitaram. –Não adiantava ele possuir asas, se ninguém o ensinava a voar.
– O que está tentando me dizer? – Cruzei os braços rente ao peito. –É óbvio que sua historinha é sobre mim.

Eileen (PARTE II) (Em andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora