Pensamentos em poças

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Ando de um lado ao outro em frente a casa de June. Ela estava fora, mas não vim para a ver, não, vim ver Damian. Mas me faltava coragem de bater na porta ou tocar a campainha, mas o desespero gritava e chacoalhava minha mente a cada instante que eu gastava na frente daquela enorme casa. Toco o botão que ecoa um leve som de passarinho por dentro do edifício e em instantes vejo Damian caminhar para abrir a porta e me liberar a entrada. O garoto boceja antes de me ver, e quando o faz, fica surpreso e solta uma pequena risada. Sorrio a ele e o mesmo me convida a entrar.
    — Quanto tempo, Milley. Veio ver June? Juju está no shopping com nossos pais... Ela não te falou, não é? Céus, ela não sabe mesmo como namorar alguém! — rimos baixo.
    — Não... Ela me falou. Mas eu queria conversar com você, na verdade. — cerro meu punho em nervoso e ele sorri.
    — Oh! Que surpresa agradável te ter aqui, então! Quer um chá? Estou fazendo um de camomilla, mas tenho de frutas vermelhas.
    — Eu aceito um de camomilla... — Sussuro e ele concorda, me ajeito no sofá enquanto ele vai até a cozinha. Jayne desce as escadas mexendo em seu telefone e ao me ver sorri, o garoto se aproxima e me cumprimenta.
     — Ei, Milly! Não te vejo tem algum tempinho, não? Como vão as coisas?
     — Ah... Vão até que bem. — ele se senta so meu lado e desliga o aparelho. Damian chega com o chá e me entrega, faz uma careta ao próprio irmão e se ajeita no sofá a frente, cruzando as perna e dando um gole na bebida.
     — Então, oque queria conversar mesmo, pequena? — Dam sorri e suspiro baixinho acariando a caneca com bebida.
      — Oh, perdão, estou atrapalhando? — Jay diz e se prepara para levantar, trocando o foco de seu olhar entre mim e o mais jovem.
       — Não... Não. — vejo o chá soltar o vapor e tomo um pequeno gole para acalmar os nervos — Lembra, Damian, do que eu lhe disse da última vez que vim?
       — Você diz sobre o câncer? — Jayne se estremece e me olha.
       — Você tem câncer...? Mas você está tão bem... Oque houve, nanica?
       — Eu nasci com uma genética bem propensa a tumores mais fáceis de se espalharem pelo corpo... E isso vem piorando desde meu seis meses de idade. — sua mão brinca no meu cabelo e respiro fundo — Meu problema respiratório é devido a um tumor mal posicionado... Entende? — o homem concorda e ajeita meu cabelo.
      — Não tem cura?
      — Não... Está no meu sangue, na minha pele, nos meus órgãos, todas minhas células. É meu DNA, não tem muito oque se fazer... Não mais.
      — Mas oque aconteceu? — Damian diz colocando sua xícara sob a mesa de centro.
      — Expandiu. — olho o chá e seu calor já me parece insuficiente — Os tumores principais aumentaram mais, e bem... Suas células viajaram até meu cérebro. Não tem mais oque fazer. Tenho apenas sete meses e duas semanas, não mais que isso, talvez até menos... — suspiro — Eu já aceitei meu destino, para alguém nascer outra pessoa tem que morrer, não é? É a natureza... Mas não sei como contar a June. — Jayne solta um pequeno suspiro e tamborila os dedos na mesinha de centro, causando um som calmo e constante além da minha voz naquela casa vazia — E se der tudo errado? E se ela me odiar? E as promessas que fiz com um pouco de esperança...?
      — Perdão por isso, Milley... Mas já tentou aquilo que lhe disse? Se afastar dela?
      — Não consigo, Dam... Ela é meu santuário... Ela me salvou mentalmente. E fazer isso seria tão doloroso quanto se fosse um ataque físico no coração. Eu a amo, e gosto disso... Mas no fundo sempre desejei que não tivesse me apaixonado, tudo seria tão melhor para nós duas...
       — Por quê não diz isso a ela? June te ama mais do que qualquer um de nós já foi capaz de entender o amor... Vocês são o melhor exemplo desse sentimento que que eu já conheci. Eu tenho certeza que ela vai entender e vai te apoiar ao máximo. — Jay sussura olhando para o chão e depois a mim — Seja sincera... Amor é isso. Amor não é um sexo casual ou um "eu te amo" ao final de um dia qualquer. Amar é estar ao lado até onde aguentar, amar é um simples sorriso e só um toque de mãos já é capaz de curar as piores injúrias sentimentais em alguém.
     — Mas eu prometi estar com ela até o fim. E se ela se enraivecer? E se ela desacreditar em nós? E se eu me tornar só uma memória boba?
      — Pessoas tem fins diferentes, Milly. Ninguém morre da mesma forma ou desiste na mesma hora. Em algum momento isso ia acontecer, talvez você fosse estudar fora e ela trabalhasse longe... Sentimentos às vezes somem por mais fortes que sejam, nada é para sempre. Alguém ia descansar antes, e esse era o fim para essa pessoa, o parceiro tem que reconhecer que ele cumpriu a promessa, o único ponto é de que o fim de um, não era o mesmo que o de outro. — Damian diz — Eu achei que eu fosse morrer, me senti assustado... — ele diz tocando o próprio peito — Mas no fundo, fiquei calmo, por quê tudo oque eu podia ter feito no tempo em que tinha vivido, eu fiz. Meu fim seria um incidente, mas ele chegaria mesmo assim. Você não tem culpa, e ela tem de entender que nem sempre o conto de fadas é real... Pessoas vão e pessoas vem, é como a vida funciona. Se não fosse assim, que graça teria?
     — Mas como eu digo isso a ela? — bebo um gole do chá gelado, mas que desce ardendo pelo esôfago.
     — Chame-a em um lugar calmo, um parque... Se você ficar calma, ela também irá, pessoas são muito influenciadas sentimentos de pessoas próximas... — Jay comenta e se ajeita no sofá, evitando me olhar diretamente.
      — Fale com calma, explique o que nos explicou... Não sei... — Damian termina seu chá e um único gole e funga o nariz — Você saberá melhor do que nós, eu tenho certeza. Você sabe que palavras usar com ela, não sabe?
     — Sei... — ele sorri e vejo seus olhos se avermelhando.
     — Eu admiro muito sua coragem. Ter passado por tudo oque passou e ainda estar em pé, tentando ajudar outras pessoas e as por pra cima...
     — Acho que se o mundo não me ajudou, ele ao menos me deu a chance de ajudar outros, e eu preciso agarrar essa oportunidade com força... E talvez no futuro exista uma cura para oque aconteceu comigo? Milhares de crianças se curarão... E melhor ainda, eu posso ter ajudado na cura com meus exames. O lado positivo sempre existe, só temos de aprender a usá-lo e apreciá-lo algumas vezes...
     — Acredite que vou levar isso para a vida. — Dam levanta e me abraça com força, depois Jayne. Deixo algumas lágrimas escaparem, mas seguro as restantes.
     Ambos irmãos de June me acompanham até a porta e me despeço com um aceno, caminhando pela calçada até a minha casa. No meu ritmo, eu levaria o dobro do tempo, então tinha muito para pensar durante o caminho. Uma leve garoa me recebe e suspiro, lembrando da chuva que o céu chorou no dia em que senti a maior conexão entre mim e June até então, deixo que me banhe e me desacelere mais ainda. Piso em várias poças durante o trajeto, molhando minha meia e meu tênis branco por inteiro, no qual também fica sujo de lama e pedrinhas pontiagudas, mas a água nos meus olhos não eram da chuva. Eram por tudo, quais eram as chances disso? Menos de um em um bilhão? Menos? Mais? Ou seria isso incalculável? Suspiro, talvez eu devesse deixar meu pensamentos nas poças e deixar com que a chuva os levasse para longe de mim. Os carros passam a toda velocidade e um deles espirra água em mim propositalmente, suspiro e limpo meu rosto da água barrosa que havia na rua e que foi jogada em mim.
     — Ei! — escuto uma voz até que familiar a frente e levanto a cabeça já imaginando quem era.
     — Hey... — a mãe de June, Fabiana, sorri segurando um guarda-chuva para si e seu marido. Logo atrás vejo June fechando a porta do carro preto do transporte pago e erguendo seu próprio guarda-chuva, segurando uma sacola de uma loja que eu não reconhecia. Também, nunca tinha ido ao shopping, não havia como eu nem sequer conhecer — Tudo bem?
    — Sim! Tudo ótimo querida. Esses jovens de hoje em dia são uns palermas não? Você está toda molhada... Quer passar em casa e tomar um banho? Acho que as roupas de June não vão servir totalmente, mas podemos tentar secar as suas nesse tempo.
      — Não, Dona. Não precisa de tanto trabalho, minha casa é uns poucos minutos daqui... — falo querendo despistar June.
      — Que isso. Não tem problema, você é muito bem vinda em casa, e oras, pobrezinha, está toda molhada da chuva.
      — Se você insiste... — não tinha porquê negar mais, ela iria insistir até que eu aceitasse de qualquer forma. Mães de amigos e namoradas são assim. Não que June seja minha namorada confirmada. Enfim! A garota se aproxima e ao me ver fica levemente confusa, mas sorri.
     Respiro fundo antes de soltar meu sorriso mais sincero até então. Apenas uma simples meia lua com a boca, sem mostrar os dentes ou coisa parecida. Ela extende seu guarda-chuva até mim e rio baixinho.
      — Já estou encharcada, não acho que vá adiantar muito. — ela solta uma risada nasal.
      — Por quê saiu nessa chuva, meu anjo?
      — Quando saí para caminhar não estava chovendo. — suspiro e paro, consequentemente ela também o faz. Seus pais continuam e nem dão bola para nós — June...
       — Pode falar, Milly.
       — Se importa em se molhar um pouco?
       — Nem um pouco. Quer o guarda-chuva emprestado para ir até sua casa?
       — Eu não quero ir a lugar nenhum. — Agarro suas bochechas e choco nossos lábios que logo entram em uma dança apaixonada e nossas línguas se encontram maravilhosamente, como fizemos diversas vezes, há poucos dias ou meses atrás. Era impossível enjoar, um beijo mágico.
     Ela fecha o guarda-chuva e o joga no canteiro de flores que havia ao nosso lado da calçada. Suas mãos agarram minha cintura e puxam até ela, só me separo quando sinto a falta de ar e sinto as lágrimas escorrendo. A sorte era a chuva escondendo meu choro, caso contrário isso seria um desastre... June me encara seriamente e me abraça com força.
     — Fiz algo errado? Oque aconteceu? Porquê está chorando? É por causa da chuva? — discordo e suspiro, é claro que ela percebeu. Porquê ela não iria? Isso de lágrimas se disfarçarem na chuva é mentira, os olhos vermelhos sempre vão entregar de alguma forma.
      — June... — seguro sua mão e a dou um selinho. Ela acaricia minha bochecha com aquela mão já gelada, a mesma sensação de toque que me surgiu no acampamento. Mas agora eu não queria seu calor me queimando, pelo contrário, não queria nada íntimo demais. Só uma companhia para assistir um filme, ou até menos. Junto toda minha coragem e suspiro — A gente precisa conversar sério. — ela estremece e nos encaramos, olho a olho. Vejo as lágrimas brincarem em seu rosto em um padrão específico e seus lábios tremendo, e com certeza não era de frio — Eu só quero adiantar minhas desculpas...
      — Quer acabar tudo entre nós, não é? — ela resmunga baixinho, soltando uma risadinha.
       — Não! Nunca... É outra coisa...
       — Pior?
       — Sendo sincera, June. Muito pior. — ela concorda silenciosamente e brinca com os próprios dedos, pegando o guarda-chuva.
        — Não sei se estou pronta para oque quer que seja... Mas eu estou aqui. — encaro os pais dela já nos olhando, bem a frente — Sempre vou estar... Lembra?
         — Lembro... — a beijo e ela retribui imediatamente — promete que não vai se arrepender dessas promessas?
         — Prometo. Você é meu porto seguro... — ela abre o acessório e seguimos até seus pais, arrisco e seguro sua mão que continha a sacola. Ela a troca de lado para segurar minha mão e suspiro, preocupada. Era hoje ou nunca mais, literalmente.
    
      Adentramos a casa e a mãe dela avisa que irá pegar toalhas para nós, mas Damian se prontifica e me entrega o tecido primeiro e depois a sua irmã. Ele me encara e dou um aceno quase imperceptível com a cabeça. Então o garoto apenas sai e nos deixa sozinhas, mas não seria agora. Eu queria tomar um banho e relaxar antes, então ela me leva até o banheiro e me deixa entrar antes.
     Retiro minhas roupas e me examino no espelho, estava mais magra do que me lembrava, mais desanimada e mais idiota. Podia ter poupado tudo isso em um simples negar com a cabeça naquela maldita festa, June era tanto uma maldição quanto uma benção. Ela me ajuda, me ama e me faz me amar, mas ela não faz nem ideia de que no fundo, só me deixa mais confusa, preocupada e até triste ao mesmo tempo em que ela me faz rir imensamente e me faz ser a mulher mais feliz do mundo. Queria que tudo se resolvesse. Nem que tivéssemos que nunca ter nos conhecido, ou que eu morresse agora ou em oitenta anos ou só a sensação de certeza de que ela entenderia tudo, enfrentaria meus últimos meses de vida ao meu lado, como prometeu. E eu dependia dela, e sabia disso quando até o pensamento de que nem que ela tivesse de ser só minha amiga para ficar comigo durante esse período final. Eu vivi basicamente dezesseis anos sem ela, por quê não posso viver alguns meses sem?!
     Entro no chuveiro e o ligo, deixo as lágrimas caírem sem controle já que não havia ninguém para me ver nesse momento, encosto minhas costas na parede e deixo a água lavar meu corpo. Queria que lavasse minha memória também, mas isso...? Isso é impossível, infelizmente, impossível.

Feelings - Feel Something (2021)Onde histórias criam vida. Descubra agora