A cova I

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Um mês e meio passa como vento diante dos meus próprios olhos. Minha tia que tinha decidido ficar uma semana, mudou de ideia e está lá até hoje, no quarto de visitas. Bruna — seu nome — é legal e me trata bem, mesmo depois de ouvir sobre meus sentimentos com a minha colega, June, infelizmente ela sabe da doença que corrói meu corpo aos poucos, mas não da minha morte iminente. Mesmo assim, faz de tudo para me agradar, nem que seja apenas um pouco. Voltando ao assunto de amizades, desabafei com Anica e ela disse para ir de uma vez, aceitar o pedido da Brown e que se dane o depois, não falei sobre a doença, obviamente, mas ela sabia que meu medo era meu pulmão parar de repente e eu ir dessa para uma melhor ou pior. Já a morena em si, refez o pedido obviamente, mas dessa vez não vi tanta esperança em seus olhos como das últimas vezes. Eu estava sem tempo para pensar, mas oque eu poderia fazer? Era minha felicidade ou a dela, e sinceramente, eu não precisava tanto assim.
     Mesmo assim, depois de tantas recusas vindo de mim, ela ainda insistia na nossa relação. Olley passou a ficar mais conosco, já que terminou com o namorado — que eu não fazia ideia da existência — há algumas semanas, e ah, claro, Bell está namorando o Pietro oficialmente agora, e com isso, o garoto ganhou popularidade, chamando cada vez mais garotos suados para perto de nós, os apresentando como seus amigos. Mas onde havia garotos suados, havia Bannu, e ele não largava do meu pé, sempre insistindo em algo a mais, mesmo que disfarçadamente, mas por incrível que fosse, ele não era chato e não parecia irritante como as meninas diziam que era. Acabamos nos aproximando em boa quantia, uma quase amizade estava se formando, mesmo sem a aprovação de cem por cento das pessoas confiáveis ao meu redor. Saio dos meus pensamentos quando o sinal toca, Anne havia faltado e Olley estava doente, e eu já não via June há uns dois dias, talvez estivesse resfriada ou só desistiu da escola. Olho o quadro lotado de anotações que não tive a menor vontade de marcar no meu caderno, se a loira estivesse aqui, me obrigaria a o fazer, mas como não estava, me deixei levar pelo tédio e quase dormi.
     Salto da carteira e pego o dinheiro para a cantina, coloco as notas no bolso e ajeito meu aparelho respiratório, e devido a isso, acabo saindo de forma mais tardia que os outros, mas nada muito importante. Caminho pela rampa despreocupada, e alguém me cutuca no ombro, antes que eu me virasse completamente, sinto um selinho nos lábios. A Brown sorri com as mãos sendo enfiadas nos bolsos.
     — Não te vejo faz algum tempo, já estava esquecendo como era seu rosto. — rio para ela.
     — O seu é inesquecível de feio. — resmungo para ela, que me dá um soquinho no ombro rindo — Onde você estava?
     — Recuperação. Cara, eu nunca vou gostar de química e física. — concordo e entramos na fila para comprar um lanche — E cadê aquelas duas?
     — Anne faltou, estava muito enjoada. Olley está doente, acho que enjoo também. Eu só espero que não seja um segundo sobrinho para mim. — Brown dá de ombros, rindo.
     — Não duvido... Mas isso quer dizer que estamos sozinhas, então? — concordo.
     — E? Qual a diferença? — ela ri baixinho.
     — O banheiro vai estar mais silencioso. — reviro os olhos enquanto rio — Ah qual é!
     — Pare com isso, chão de banheiro escolar não é lugar para isso. — dou alguns passos a frente e entrego o dinheiro — vou querer uma esfiha de calabresa, por favor. — o homem concorda e me entrega o troco junto da comida, chamando o próximo da fila em seguida. Ajeito as moedas no bolso e dou uma mordidinha no lanche.
      — Eu prefiro o hambúrguer que eles vendem, é uma delícia.
      — Você prefere outra coisa, e acredite, eles não vendem ai. — ela cora levemente e rimos.
      — Eu posso roubar corações se eu quiser ter isso. E não finja que não roubei o seu. — a encaro e lhe mostro a língua.
      — Você o sequestrou, eu posso muito bem pegar de volta. Se lembre disso, meu amor. — ela cora levemente com o apelido e solto um risinho, comendo mais um pedaço da massa com calabresa.
      — Ah, lembrei de algo, podemos conversar mais tarde? — arqueio uma única sombrancelha mesmo sem a encarar.
      — Por quê não agora? — resmungo.
      — Eu quero pegar todos os detalhes antes de te contar. Eu te mando por mensagem.
      — Me liga, é melhor. — June concorda e dá um pequeno beijo na minha testa — Onde você vai agora?
      — Estudar para a última prova. — Passo minha mão sobre a sua.
      — Boa sorte... — sussuro e nos encaramos.
      — Obrigada, Milly. — a garota acaricia meu rosto, brincando na bochecha e dedilhando meu lábio inferior com seu polegar — Acha que tem problema eu te beijar aqui?
      — Tem bastante gente dos terceiros e segundos anos... — sussuro.
      — Eu não me importo que vejam. Você se importa? — discordo e ela dá um sorrisinho vitorioso.
      Brown me beija e fico nas pontas dos pés para me manter em sua altura, ela sorri e me dá um selinho no fim do contato, acariciando meu cabelo e indo embora para seus estudos. Suspiro e solto um leve sorriso que guardei, me ajeito em um banco de madeira qualquer e continuo comendo meu lanche. Mas oque seria o motivo da futura ligação? Ela arranjou outra pessoa? Estremeço com o pensamento e tenho de olhar para baixo para me controlar, mas se esse fosse o caso, ela não teria me beijado, suspiro e relaxo contra o assento abaixo de mim, June e seus mistérios. Talvez ela só quisesse dizer alguma fofoca, não era difícil de ser isso. Mas se fosse um problema, seria um problema para o futuro eu. No momento eu queria me saciar, ir para a sala e depois ir para casa almoçar.
     Talvez minha vida gire em torno de comida também. Rio do pensamento e dou a última mordida na esfiha, jogando o guardanapo que vinha junto no lixo reciclável. Pego meu celular e mando uma mensagem para Anne, que incrivelmente responde logo após com uma foto em uma fila de espera, estava no médico para atualizar os exames do filho, os boatos se concretizaram há uma semana, quando ela ficou brava com o atual namorado e discutiram sobre Haru, alguém escutou e espalhou o fato, mas não foi uma grande surpresa já que a maioria já desconfiava, de qualquer forma, não tinha mais como esconder. Me pergunto como Haru seria ao crescer, eu jamais o veria completar um, dois e muito menos três anos, talvez ele fosse uma cópia da mãe, ou do pai, ou uma junção. Talvez fosse como eu, tendo uma característica do avô, tios, avó e tias... Eu nunca tinha visto como a mãe de Bell era. Ele vai crescer sem uma avó. Resmungo internamente, mas não sinto muita pena, não por falta de empatia, mas porquê conheci muita gente que não tinha ambas as avós e não reclamavam disso com frequência, de qualquer forma, a maior parte da pena que eu teria dele vai aos meus pais. Tiveram ao todo, três filhos — além do quarto, que não sobreviveu por ser prematuro demais — e jamais terão um neto sequer. É como cortar uma árvore no meio, partindo a genética em frangalhos e depois pondo fogo sobre os restos, eu era a luz de esperança, mas isso já se partiu em partes meses depois do meu nascimento, meus irmãos poderiam estar vivos na época, mas acho que não há como mudar um futuro...
     Será que esperavam que eu crescesse com eles? Talvez me formasse e fôssemos embora do país? Como ficaram quando souberam da minha doença? Eles eram jovens... Tinham oito anos quando eu nasci... Será que me protegeriam do bullying? Será que seríamos bons irmãos juntos...? Eles seriam bons tios...? Eu seria boa tia? Eles iriam gostar de June...? Se eu pudesse dar meus últimos meses por um momento com eles, alguns minutos que fosse, eu daria com um sorriso no rosto, conversaríamos sobre um futuro falso, mas divertido, falaríamos sobre nossas memórias prediletas que nunca nem existiram... Eu sinto falta de ter irmãos, concluo por fim. Talvez até tenha certa inveja de June por seu esquadrão formado pelo sangue e lealdade familiar, mas não admitiria.
     O sino toca e subo as escadas em direção a classe. Me lanço a carteira e pego meu caderno, me preparando para uma aula de história, tudo começa normalmente. O professor entra, nos cumprimenta, explica o módulo do dia, faz alguma piada sem graça que acabamos rindo por motivo algum, anota três livros de mil páginas na lousa de três telas e nos dá um tempo para copiar, a aula termina e o sino toca, a mesma rotina de todo dia, toda semana, todo mês. Ajeito meu material e jogo a mochila nas costas, seu peso antes tolerável, agora fica insuportável enquanto pressiona meu tórax, eu me sentia cada vez mais debilitada e fingia não saber. Acelero a caminhada e minha tia estava me esperando dentro de seu próprio carro, sorrindo animadamente para mim.
    — Como foi dia, flor? — a música da banda KISS, I Was Made For Lovin' You acaba abafando um pouco sua voz, me apoio na janela do passageiro aberta e dou de ombros.
    — Foi bom, tia. Não mudou muito de ontem, e antes de ontem, a antes disso... — ela ri baixinho e olha o movimento das pessoas por ali.
    — Qual delas é June? Eu adoraria conhecer essa menina, acha que ela pode almoçar conosco? — Coro e rio baixinho.
    — Acho que ela vai sair mais tarde hoje. Ela está um ano na minha frente. — a mulher cruza os braços e finge decepção, me tirando um riso demorado.
    — Eu posso esperar! — discordo com a cabeça e jogo a mochila pela janela, no qual cai sobre o banco.
    — Nem começa, tia. — me viro e vejo três Brown caminhando na minha direção, os trigêmeos estavam rindo e se xingando no caminho da saída, June sorri ao me ver e acena, devolvo o cumprimento e a irmã da minha mãe tosse dentro do carro.
    — É ela? — levanto o polegar para a mulher em afirmação, a garota se aproxima e bagunça meu cabelo — Prazer, June!
    — Prazer... — ela diz meio confusa.
    — Quer almoçar lá em casa conosco? Hoje eu vou fazer um salmão... — ela ri baixinho.
    — Não posso sem minhar mãe deixar, dona...
    — Deixe de formalidade menina, pode me chamar de Bruna. Ligue para sua mãe, anda, pergunta.
    — Tia, pelo amor... Deixe-a ir para casa... — resmungo e a mulher ri.
    — Oque rolou aí? — Jayne se aproxima e tenho a vontade de sentar, deitar e rolar para debaixo do veículo.
     — A tia da Milley me convidou para almoçar na casa dela. — Jan acende um cigarro e o traga, vindo também na nossa direção.
     — A mãe não vai ligar, de qualquer forma. A Izy e o Damian já não estarão lá hoje, não durante o horário de almoço... Se quiser ir, vá, oras. — June olha para minha tia que sorri, ela em seguida me olha e dou de ombros.
     — Posso mesmo?
     — Claro que pode, entra! — Bruna me corta antes de eu sequer começar a falar, a garota dá de ombros e se despede dos irmãos antes de vir conosco.
    Com a mochila no banco da frente, ela é obrigada a sentar do meu lado, então tiro o mínimo de proveito disso enquanto ajeito minha cabeça em seu ombro, a mesma acaricia meu cabelo e não deixo de perceber um rubor brincar em suas bochechas. Minha tia nos olha pelo retrovisor e sorri discretamente, mas não me passa despercebido. A morena pega seu celular e abre um comunicado oficial da escola, algo sobre um lugar chamado Spring River, a mesma lê a notícia por um tempo considerável, mas não me interesso naquilo, gostava mais do calor permanente que sua pele emanava e do carinho constante no meu cabelo.
     — Chegamos, garotas! — Sorrio e pego minha mochila do banco a frente, salto do carro e June vem logo atrás. Entramos em casa e vejo meus pais rindo enquanto fatiavam alguns vegetais.
     Por alguns instantes lembro dos meus nove anos, onde meus irmãos estariam ali roubando uma cenoura ou um pedaço de tomate e me dando alguns dos produtos furtados, todos nós rindo e se divertindo na cozinha. Mas isso parece uma memória tão distante quanto a possibilidade de isso acontecer mais uma vez, já quase tinha esquecido... Quantas coisas eu não esqueci? Impossível contar. Minha mãe é a primeira a ver nossa chegada, ela rapidamente olha Brown que acena, desajeitada.
     — June Brown! Que bom que apareceu por aqui! Estávamos bem ansiosos para podermos ter um momento decente com você. — A mulher diz sorrindo, minha tia pisca para mim e sorrio, cruzando os braços. Era tudo planejado — Menina, como você é grande!
     — Ela não é uma criança, mãe. Deixe-a relaxar um pouco. — resmungo e a mulher leva as mãos ao alto, como que se rende-se a minha fala, a morena suspira em alívio e ri baixinho, seguro sua mão e a arrasto até meu quarto — Minha tia é doida da cabeça e minha mãe é igualzinho a ela.
    — Pelo menos não me parece o tipo de mãe que iria me interrogar até saber meu país de origem de milhões de anos atrás. — rio e me lanço a cama, ela se ajeita sobre mim e sorri.
    — Se ela fizer isso, eu me enfio em algum buraco e não saio mais.
    — Boba. — ela deita ao meu lado — Posso te fazer um convite?
    — Pode...? — a encaro incerta.
    — Vai ter um acampamento nas próximas duas semanas, vai durar vinte e um dias e vai ser para os segundos, terceiros e quartos anos... Eu já me matriculei, ajuda nas chances de bolsas para as faculdades, é bom, mas não sei se gostaria de ir comigo... — me sento e desamarro meu tênis, o jogando no outro canto do quarto, deito novamente e me aconchego em seus braços.
     — Eu gostaria de ir, mas não sei se meus pais deixariam. Além do mais, minha tia está aqui para me visitar, mas não custa tentar.   
     — Ah, aliás, meus outros irmãos querem te conhecer. Jayne, Jan e Izy espalharam a fofoca pela família e esses porcos oportunistas querem ver minha suposta namorada. — rio e ela solta um risinho.
   — Ainda não sou sua namorada...
   — Pretende ser? — ela sussura e meu corpo se arrepia.
    Não sabia oque responder. Não? Sim? Talvez? Dizer um não seria uma mentira fácil de desmascarar, se eu dissese sim minha cova estaria pronta para eu pular dentro e me cobrir de terra de arrependimento depois, mas se eu dissesse talvez, provavelmente eu a chateria, e a mim também. Sim? Talvez? Acaricio sua bochecha e ela me encara, me sento e empurro seu corpo contra o colchão. Passo a mão por entre seus seios e ela molha os lábios, dando mais do que um convite para explorar seus lábios, e é oque eu faço. Nos beijamos violentamente, suas mãos são rápidas, mas meus pensamentos são mais, tinha três adultos em casa, e os três sabiam da nossa relação, mas não bateriam na porta antes de entrar. Nunca o faziam e não era agora que mudariam esse hábito, me afasto rapidamente e ela suspira. Sabia dos riscos tanto quanto eu.
   — Sim.
   — Sim oque? — ela ofega, recuperando o fôlego perdido.
   — Sim, eu pretendo ser sua namorada, Brown. — ela sorri e a beijo mais uma vez, sem tempo de respostas.

   Minha cova havia sido cavada. Mas eu já não me importava de verdade, não com seu toque quente na minha espinha. Naquele momento eu só queria queimar, queimar com seu calor magicamente acolhedor... E um pouco excitante.

Feelings - Feel Something (2021)Onde histórias criam vida. Descubra agora