Foi o amor que me fez te odiar

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Seco meu cabelo e meu corpo, verifico no espelho levemente embaçado se meus olhos estavam muito inchados, e claro que estavam. Mas de que adiantava? Eu provavelmente iria chorar mais tarde... Suspiro e visto uma roupa que a mãe de Brown me dera. Aquela blusa que quase me cobria até abaixo dos joelhos de June e um shorts de moletom provavelmente de Izy, além da calcinha que tive que reutilizar. Bagunço meus cabelos loiros e bato algumas vezes na blusa para retirar os amassos de anos guardados em um amontoado de roupas mal arrumado. Me encaro no espelho mais uma vez e abro a porta, saindo dali com algumas mechas ainda grudadas na testa. A casa, mesmo contendo onze pessoas em si, estava silenciosa, o único som presente sendo dos meus passos naquele maldito assoalho de madeira envelhecida. A casa onde moravam com certeza tinha mais de cem anos, sua arquitetura extravagante, tamanho descomunal e decorações fora de época entregavam isso.
Bato na porta do quarto de June e a escuto respirar fundo antes de abri-la. Estava apenas com um shorts de algum pijama largo e um top de academia preto, eu já a tinha visto nua, sem camiseta, sem calça, mas aquele abdômen ainda me faz engolir a seco e ter de o encarar um pouco. Brown se senta em sua cama e fecho a porta atrás de nós.
- Ei... - sorrio, nervosa. Minha voz transbordava mais que isso também, transbordava medo, vergonha e tristeza. Talvez aquela raiva interna tenha sumido agora.
- Ei... - ela repete, me encarando com aqueles malditos olhos - Então... Oque queria conversar comigo?
- June... - sento ao seu lado e respiro fundo para ir direto ao ponto - O meu pulmão piorou muito... Não sou mais a mesma, você percebeu isso no acampamento e não posso negar que eu também. Ele está muito fraco. Tratamento nenhum adiantará mais, com certeza.
- Como você sabe que não?
- June... - suspiro e seguro sua mão.
- É sério. Você sempre vem com esse papo de que não tem cura... Claro que tem! Você mesma falou! Parece que você quer... Sabe...? Se suicidar aos pouquinhos, se maltratando bem devagar!
- Não tem. Eu mal consigo ficar em pé sem este trambolho. - aponto para a máquina e nos calamos, o seu som contínuo do fluxo do ar nos envolta - Entende a gravidade disso?
- Claro que entendo. Mas Damian teve câncer no pulmão e se recuperou totalmente... Você também vai! É só questão de tempo!
- June, por favor... - ela me corta.
- Você é sempre muito otimista, mas quando se trata da sua doença você vira outra pessoa... Não pode pensar assim. Em menos de um ano você vai estar saudável...
- Me escuta. - resmungo um pouco mais alto - June, eu realmente não consigo ficar em pé sem isso. Isso é meu pulmão. Sem ele eu estou morta, e basta uma falta de tubo de oxigênio e acabou para mim.
- A gente se previne, você pode levar um segundo tubo, não sei... Mas por favor, Milley...
- June, talvez fosse melhor se você arranjasse alguém mais saudável. - ela me encara e revejo a garota que me pediu em namoro pela primeira vez. Aquele rosto incrivelmente raivoso me encarando na alma - Não me olha assim...
- Não. Eu te amo. E amo só você... Não quero mais ninguém, entende? Você, Milly, sua imagem nunca vai ser um motivo de sofrimento, por quê você é o meu motivo de felicidade, entende? Não quero te ligar a nada, absolutamente nada de ruim. E se eu arranjar uma garota, abre aspas, melhor, fecha aspas, você ficaria em segundo plano, e eu não quero isso. Quero você em primeiro plano, na minha frente.
- Mas se eu morrer nesse exato momento, eu espero que não fique feliz, no mínimo. - ela concorda.
- Com certeza não. Eu choraria, teria ataques de raiva, quem sabe recair nas drogas e... Você sabe oque... - a mesma balança o antebraço, inquieta sobre conversar das suas cicatrizes - Mas nunca me suicidaria, se é o que deseja.
- Queria que vivesse uma vida normal, como se nunca tivesse me visto. - ela me encara e vejo sua raiva variar entre muita e nenhuma.
- Impossível. - ela sussura - Você é muito importante para que eu deixe isso de lado em menos de, no mínimo, alguns anos.
- Eu prefiro que a gente comece a se afastar. Não digo que quero dar um fim no nosso relacionamento, claro. Mas de forma que você se desapegue mais...
- Basicamente quer que eu te ame menos? - Discordo mas a encaro.
- Talvez...
- Acha que sou muito grudenta?
- Não. Mas isso faz mal a você. E é oque eu menos quero...
- Oque realmente me faz mal é ficar longe de você, e eu não entendo por quê exatamente fazer isso. - nossos olhos se encontram e sinto um frio na barriga. Como você pode amar alguém que já está morta? Basicamente, morta - Se você quer começar a ficar com outras pessoas, tudo bem, só não me esqueça.
- Não tem nada a ver com isso...
- Só não insista em se afastar. Por favor.
- Mas a gente sabe que seria melhor para você.
- E você, Milley? Oque seria melhor para você? Você seque pensa em si mesma?! - ela resmunga mais alto que o normal.
- Não grita, por favor... - a mesma me ignora e se levanta, andando de um lado ao outro.
- Você não pensa em nada sobre si mesma! Não pensa em ser feliz! Não pensa em fazer o que você quer! Só pensa nos outros! - ela faz uma pausa e se apoia em uma escrivaninha de madeira, com várias roupas largadas por cima, um trovão ecoa e ela me encara - É por isso que não aceita meus pedidos de namoro? Você me prometeu...
- O que?
- Porquê achava que eu iria me chatear depois? Por quê achava que eu iria arranjar alguém melhor? Por quê achava e acha que sua doença vai matar eventualmente e isso vai me deixar mal? Você tinha dito que ficaria comigo para sempre, mesmo sabendo de que a doença iria piorar! Você me criou esperanças! Eu fui seu brinquedinho!
- Não... - seguro as lágrimas por ela estar gritando comigo. Desde quando você é tão patética, Milley?
- Você só pensa no que eu sinto para depois foder con tudo! Porra, Milley! Você nos privou de tudo oque podíamos ter tido até então porquê achou que eu te deixaria e só criava esperanças!? Por quê achou que eu iria ficar triste?! Todo mundo tem sentimentos, é claro que se você morresse eu ia ficar triste. Isso é óbvio! Ainda mais sabendo que foi tudo falso!
- June... - digo olhando para baixo, não querendo chorar - Não foi falso...
- Você é muito cínica! - ela rosna.
Escuto passos no corredor e fecho os olhos com força, por favor, não entre, quem quer que seja. E claro que Damian entra, mas a mais velha não parece entender que ela devia parar.
- Você acha e faz oque não devia demasiadamente! Esse é o seu problema! Acha que não tem cura! Acha que vou me chatear! Acha que eu deveria achar alguém melhor! Acha isso, acha aquilo! E isso só fode a gente. - ela grita e o garoto me puxa até ele.
- Não grita... Por favor... - sussuro.
- Porque?! Acha que os vizinhos vão ficar tristezinhos se me ouvirem gritar?! - soluço e só então percebo que eu já chorava fazia um tempo, Damian acaricia meu cabelo e encara irmã, a fuzilando com os olhos. Logo mais passos surgem no corredor, dando a chance de me preparar para ver quem era. Jayne.
- Que tal a gente parar um pouco isso aqui? - ele diz calmamente - Tomarmos uma água... Nos acalmarmos.
- Isso é estupidez. - ela me encara forço meus lábios um no outro e brinco com meus dedos - Já deu. Não dá mais. Você estava brincando comigo.
- Está tudo bem June... - resmungo - O vento sempre vai estar ai para levar minhas lembranças para longe, não é? Você vai se esquecer de mim rapidinho. - rio baixinho e mais lágrimas me escapam - Eu sempre soube que isso ia acontecer, nem sei por quê dói tanto. - suspiro e ajeito meu cabelo - Acho que merece saber a verdade agora que tudo já deu errado... - a encaro e ela arqueia uma sombrancelha, cínica - Eu tenho câncer terminal no cérebro e no pulmão, June, recebi a notícia há nove meses, mais ou menos. Estágio quatro. Minha estimativa não é muito mais que sete meses agora, e eu só queria... Só queria que não tivesse que lidar com a perda de alguém que você ama. Porquê é horrível, eu perdi dois irmãos e nunca pude conhecer o terceiro, e agora... Enfim... Eu não sei lidar com a morte, mesmo que isso seja meu destino desde meu nascimento. Então só pensei que se eu me separasse de você a tempo, você ficaria bem, e eu queria você feliz enquanto estivéssemos juntas, mas acho que eu fiz tudo errado. Eu sempre faço. - respiro fundo - Mas quem sabe? Talvez assim tenha sido melhor para nós duas... Só peço que me desculpe, sei que não foi justo com você. Não é justo com ninguém, mas eu fiz merda e tenho plena consciência disso, não vou culpar o câncer e nem ninguém. Desculpa ter te prometido tanta coisa sem nem poder cumprir um terço delas. - sorrio fraquinho - Eu... Eu tenho que ir. - sussuro abafado pela minha voz trêmula e saio em passos rápidos dali, os garotos tentam me segurar mas me solto de seus braços e corro dali na chuva, meu pulmão arde e as lágrimas salgadas molham minha boca.
Não queria ir para casa, não queria voltar, não queria só parar em algum lugar, não queria ir até Anne. Eu queria morrer. E só isso. A dor no peito não era só da dor de respirar, era outra coisa, muito pior, era mais uma perda que eu não estava totalmente preparada para que acontecesse, Akyle, Trisna não foram minha culpa... Ou foram? Se eu não estivesse naquele hospital, se eu fosse saudável eles nunca teriam se acidentado, não é? E agora com June... Foi tudo minha culpa, é tudo minha culpa! Escorrego e a mala de oxigênio se desconecta de mim enquanto caio no chão, encaro meus joelhos ralados e minhas mãos esfoladas pelas pedrinhas do asfalto. A falta de ar me segura como uma mãe faz com seu filho e ele dorme, e eu queria dormir sem saber se iria acordar... E no fundo eu desejava que eu não acordasse. Mas me levanto e a tontura me derruba mais uma vez na rua, vejo duas luzes fortes e quando se aproximam demais, apago.

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Abro meus olhos e suspiro, por quê parece que o universo insiste em me matar aos poucos? Me fazer sofrer ao invés de me fazer morrer de uma vez? Viro minha cabeça e encontro uma mulher conversando com a minha mãe, pedindo milhares de desculpas enquanto ambas choravam. O ar era escasso, então apenas olho para o alto e apago novamente, sem nem saber o que aconteceu, estava acontecendo ou oque aconteceria. A única coisa na minha mente era June, e não era a June que me amava. Era a June que me odiava, gritava comigo e me fuzilava com os olhos, e por fim, apago novamente.

Feelings - Feel Something (2021)Onde histórias criam vida. Descubra agora