A Onda

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Se antes eu julgava que qualquer acontecimento inesperado revirava minha vida do avesso, certamente estava enganada. Estou há mais ou menos três dias no alto de um prédio observando nada além de um grande mar que toma todo o horizonte, munida apenas de minha mochila impermeável e alguns itens que deveriam ter sido usados no acampamento que eu e Júlio faríamos no início da semana.

Preciso retornar para o dia que tudo aconteceu e contar em detalhes o que se passou, talvez como uma forma de elaborar essa tragédia ou de simplesmente passar o tempo e enganar meu estômago. Tenho comigo poucas comidas enlatadas: feijão, sardinha, atum, milho, sopa. Jamais pensei que passaria por isso, sempre que via na TV imaginava que só acontecia com outras pessoas, mas não na minha vida.

No primeiro dia de férias estava eu em casa arrumando com certa dificuldade minha mochila para acampar com Júlio, Lucas, Cecília e mais alguns desconhecidos amigos dos meninos. Aceitei o convite pois esperava que esse pudesse ser um programa tranquilo. Depois da festa de Lucas tudo o que eu não precisava era de mais um meltdown. Então, depois de conversar bastante com meu pai e dele me convencer a fazer algo diferente nas férias, mandei mensagem para Júlio e aceitei o convite.

Meu amigo estava para chegar. Eu me encontrava na sala agarrada ao Carlito, que não é maior que a palma da minha mão. E meu pai estava separando o equipamento de mergulho dele. Naquele dia a quitanda não seria aberta, e como fazia tempo que ele não saía para curtir seu hobby, ele decidiu que daria um pulo no mar acompanhado de seus colegas. Nos despedimos como sempre, à distância e com um pequeno gesto. Ele sabia que desde criança eu não gostava de abraços e beijos, e isso não mudou com o passar do tempo. Então inventamos uma forma de nos cumprimentar e despedir, um jeito peculiar de balançar as mãos que não quer dizer nem um oi e nem um tchau.

Escutei a voz dele pela última vez quando estava na porta. Um singelo 'divirta-se' com um 'nos vemos amanhã'. O dia seguinte chegou e não nos vimos. Dez minutos depois de sua saída escutei a campanhia tocar seguido de três toques na porta. Era Júlio. Sabia que era ele pois meu amigo sempre teve esse jeito único de se apresentar à minha porta. Mas quando abri, pronta para sair, vi uma cena que não sai da minha cabeça. Uma grande onda vinha em nossa direção devastando tudo pelo caminho. Ao contrário do que faria normalmente, meu ímpeto foi de abraçá-lo. E não demoramos a sermos arrastados pela onda junto com os destroços no caminho.

Não sei dizer quantos quilômetros percorremos pela cidade assim. Eu o agarrei com toda a minha força por vários minutos, mas não foi o suficiente. Logo nos separamos. Eu gritava para que se apoiasse em alguma coisa e tentasse nadar até mim. Também tentava nadar até ele. Mas rapidamente o perdi de vista e vim parar aqui. O que parecia ser uma porta de armário me apoiou por um longo percurso. Minha mochila pesada seguia nas minhas costas e eu não conseguia me virar para antecipar qualquer tipo de colisão. Até que... Bum!... Me vi batendo em alguma coisa. A água seguia na mesma direção, e fiquei entre o que parecia ser uma parede e a água. Não consegui calcular o tempo que passei assim, recebendo ondas diretamente no meu corpo e procurando me manter na superfície. Parecia que aquilo não terminaria nunca. Até que por um milagre eu fui bem sucedida em me virar e aproveitando a força da onda pude escalar até em cima da parede.

Não havia nada no local, logo percebi que se tratava de um prédio alto da cidade. E pude ver dali toda a força da natureza. João Pessoa estava submersa. Via alguns outros prédios que escaparam de serem devorados pela onda, parte deles ao menos. Mas a cidade em si já era. Algumas pessoas tentavam se agarrar ao que pudessem. E eu tentava avistar Júlio para que ele chegasse, com sorte, até onde eu estava. Um fracasso total, pois não via nada que pudesse lembrar dele. Algumas pessoas passaram pelo prédio e tentaram escalar enquanto fiquei estática sem saber como ajudar. Nenhuma delas conseguiu subir.

Meu corpo não me obedecia conforme o esperado e eu fiquei muito tempo parada sem saber o que fazer. As horas foram se passando e meu desespero só foi aumentando. O sol não demorou a se pôr. E a par de que não sairia daqui tão cedo resolvi armar a barraca. Ela estava acoplada na minha mochila. Nunca estive tão agradecida de estar com uma mochila de acampamento bem na hora em que toda a situação ocorreu. Montei a barraca com certa facilidade, pois era comum na infância eu e meus pais sairmos para acampar. Meu pai sempre me ensinou e deu dicas de sobrevivência, pois esse era um hobby que ele tinha também. De certa forma, esse hobby nos conectava. Eu gostava muito de passar um tempo longe de casa, em contato com a natureza e com meus pais. Porém, perdemos esse costume desde que minha mãe morreu. Meu pai acabou se isolando em seu esporte, o mergulho, e eu acabei me isolando com meus livros e dramas, os quais hoje sei que não eram dramas, mas apenas dificuldades advindas do autismo.

Não sei a que horas fui dormir no primeiro dia em cima desse prédio. Eu via as estrelas e rezava para que tudo isso fosse só um pesadelo e que logo eu acordaria. Mas a minha roupa permanecia úmida, o cheiro do mar me invadia, e o gosto do atum que havia comido permanecia na minha boca. Tudo isso apontava para o fato do que tinha se passado. Nada disso era obra da minha cabeça ou um pesadelo qualquer. Júlio estava desaparecido, meu pai sabe-se lá onde estava, Sara estava no passado, não a veria na sessão dessa semana nem nunca mais. A cidade onde nasci e cresci estava ilhada, submersa depois de uma tsunami sem precedentes. Eu pensava que o resgate poderia chegar logo e quem sabe, me fazer reencontrar as pessoas queridas, mas enquanto nada disso acontecia eu apenas me afundava na dura realidade que me assombrava. E que permanece por aqui.

As estrelas estariam bonitas para mim se hoje fosse outro dia. Eu gostava de olhar para elas no céu. Me faziam recordar os tempos em que minha mãe era viva. A gente costumava ficar na varanda de casa contando as estrelas. Cada uma recebia o nome de uma fruta. Eu sempre fui chegada em frutas, lia uma grande enciclopédia sobre elas que minha mãe tinha. Ela era bióloga e gostava de estudar botânica. Isso foi um grande hiperfoco para mim que durou anos. Apesar de não comer todas as frutas, algumas texturas simplesmente não me desciam, eu gostava delas. Por isso cada estrela recebia o nome de uma fruta.

O segundo dia foi tão difícil quanto o primeiro. O sol queimava o meu couro cabeludo. A única sombra possível era a da minha barraca, mas ficar dentro dela se tornava insuportável devido ao calor. No parapeito eu improvisei um 'varal'. Coloquei minha roupa para secar e troquei por outra que estava na mochila. Nada muito diferente do que vestia antes... camiseta tamanho GG e short. Meu tênis, encharcado, logo secou com o sol que fazia.

E cá estou eu já perdendo a referência dos dias. Estou procurando contá-los na última página desse diário, mas minha cabeça começa a ficar confusa. Não sei se devido ao impacto de tudo isso ou à falta de nutrientes já que só estou me alimentando com o que tenho à mão. O sol já começa a se pôr e minha esperança da chegada de um resgate está por um fio.

Espere, tem algum barulho vindo de perto daqui. Parece alguém batendo em uma porta. Está vindo de uma parte do prédio... Vou lá averiguar o que é. Em breve retorno com notícias, espero que boas.

O Diário de Louise VerasOnde histórias criam vida. Descubra agora