Chegar em Recife não foi tarefa fácil. Viajamos quilômetros parando de vez em quando para nos abastecer, até que encontramos submersos na água uma placa de 'bem-vindo à Recife'. Para nossa infelicidade a cidade virou mar tanto quanto João Pessoa. Alguns prédios puderam nos acolher pelo caminho, mas viajar comigo, que vivo ficando sobrecarregada, e com um idoso, o padre, não está sendo simples.
Apesar das sobrecargas acredito que tenho conseguido lidar bem com todas as mudanças. Só de saber que não estou exposta ao perigo na comunidade de sobreviventes já sinto um certo alívio. De vez em quando troco olhares com Sarah, e mesmo correspondendo à sua procura não entendo bem o que ela quer dizer ao me olhar. Aquela fantasia de que os casais se comunicam sem precisar verbalizar não funciona comigo. E... O que estou dizendo? Por que usei o termo 'casais'? Isso não faz sentido. Escuto quase como se Júlio estivesse ao meu lado, sua voz me repreendendo: "Louise, você está sendo muito afobada. Lembre-se que vocês só trocaram alguns beijos."
As pessoas são permeadas por padrões comportamentais e, quando um autista convive bastante com um neurotípico, é possível dele conhecer características cruciais e prever o que o outro falaria em dada situação. Isso se dá devido ao pensamento por padrão, que é mais acentuado em algumas pessoas autistas. E é exatamente por isso que consigo lembrar das coisas que Júlio poderia falar para mim se estivesse por aqui. Os tipos de pensamentos são: verbal, por imagem e por padrão.
Dos três o que obtive menor pontuação durante a avaliação foi o verbal. Não sou de falar muito, apesar de escrever muito. Já o pensamento por imagem ficou em segundo lugar, se apresentando principalmente quando leio ficção ou quando tento imaginar algo que nunca tive contato. Consigo produzir e processar imagens de maneira mediana. Já o por padrão vai simplesmente vendo padrão em tudo. No caminho meus olhos se debruçaram em alguns prédios alinhados, na blusa listrada que Sarah estava usando, na camisa xadrez de meu pai, em algumas nuvens que mantinham uma mesma distância uma da outra e que possuíam formatos semelhantes...
Isso já me rendeu situações complicadas no passado. Ao andar em calçadas com padrões eu acabava andando nelas mantendo um determinado padrão também, ao estar em sala de aula e perceber o ladrilho das paredes bem alinhados não tinha nada que me tirasse do transe de olhar para eles... Organizar objetos por padrão também é algo que se fazia presente na minha rotina. Mesmo recente, quando estive na comunidade de sobreviventes, ao organizar as comidas na mesa elas sempre respeitavam algum tipo de padrão que fazia sentido na minha cabeça.
Nesse momento estou escrevendo de cima de um prédio que não se afogou junto da onda. Sarah conversa com meu pai alegremente, uma alegria que não via com muita frequência desde que seu namorado faleceu. Alegria é uma das emoções que menos tenho dificuldades em reconhecer. As expressões faciais também são problemáticas para pessoas autistas. Lembro de imitá-las no espelho quando era pequena, elas nunca foram naturais para mim. Com o diagnóstico pude notar o quanto minha expressão facial tende ao neutro. Eu posso estar muito feliz ou triste, experimentando qualquer tipo de afeto, e eles não aparecem no meu rosto como quando ocorre com os neurotípicos. Isso já gerou algumas situações inusitadas. Nas datas de aniversário ou natais, os quais normalmente recebia presentes, era comum abri-los na frente de meus familiares e todos acharem que não gostei do presente. Às vezes eu não tinha gostado mesmo, mas a maioria eu gostava! Pensar nessas datas atualmente me traz uma sensação estranha de nostalgia, apesar de nunca ter dado tanto valor a elas, mas também me traz um certo alívio de não me ver passando por situações como as que descrevi.
Uma das primeiras coisas que fiz ao receber o diagnóstico de autismo, depois de estudar bastante sobre o tema, foi me debruçar nos álbuns antigos de fotografias. Meu pai guardava todos lá em casa com muito zelo e cuidado. Eles carregavam as lembranças que tínhamos, de quando mamãe era viva, de quando éramos três. Para o meu alívio sempre levei comigo, na carteira, uma foto dela, muito empolgada segurando uma tartaruga na praia. E agora é a única foto que tenho. Mas como vinha dizendo... olhar para fotos antigas a partir da ótica do autismo, entendendo que ali na infância ele já se fazia presente, por se tratar de um transtorno do neurodesenvolvimento, é muito estranho e ao mesmo tempo revelador. Perceber um stim (estereotipias - movimentos autoregulatórios como mexer as mãos, balançar o corpo, as pernas, vocalizar palavras de forma repetitiva, etc) não é algo que se fazia presente antes do diagnóstico. Eu simplesmente dizia que era meu jeito de lidar com meu corpo. Não os conhecia como stims ou estereotipias. Mas eis que em quase todas as faixas etárias lá estavam minhas mãos se mexendo perto do corpo. Muita socialização ou exposição a estímulos luminosos e sonoros podem aumentar os movimentos repetitivos. Só vim perceber o motivo deles após o diagnóstico.
Fazer stim é algo que me acalma, que pode me manter centrada quando quase deixo de estar. É algo que regula o meu corpo também na iminência ou na presença de uma crise. Com o tempo, a partir de comentários recebidos por outras pessoas, eles foram sendo controlados por mim, mas controlar não é algo confortável, é desgastante. Por vezes escutava de minha mãe: "filha, suas mãos não param nunca?" ou algum colega da escola dizia: "olha a esquisita que mexe tanto as mãos que parece que vai voar". Se pudesse responder à pergunta de minha mãe diria: 'não, mãe. Elas não param. Porque esse é um meio natural de me regular. É algo naturalmente autorregulatório e confortante para mim.'
Se todos soubessem, inclusive o colega que dizia que eu poderia voar com as mãos de tanto balança-las, o quanto isso nos ajuda, o quanto pessoas autistas precisam desses movimentos em diversas situações... Se esses movimentos não nos machucam, não fazem mal a ninguém, e é o nosso modo normal de nos regular, por que não aceitá-los? Para que fazer comentários constrangedores para outras pessoas que somente funcionam de um jeito diferente de você? Inclusão também é isso. É aceitar diferenças que às vezes estão presentes nos detalhes.
'Stimmar' também é um modo das pessoas atípicas resistirem a esse mundo que tenta controlar como os corpos estão dispostos nele. E são movimentos que fazemos sem saber, quando notamos já estávamos fazendo há horas, é igual a respirar: não sabemos quando respiramos, é bom e útil respirar, o fazemos quase como que sem saber.
E foi muito revelador também, para mim, através dos álbuns de fotos, notar as expressões faciais totalmente neutras na maior parte delas. Fazer a mesma expressão em diferentes contextos, seja em festas de aniversário, comemorações da escola, momentos aleatórios onde o clique do meu pai me encontrava, me chamou muita atenção após o diagnóstico. Lembro de chegar a conversar com Sarah sobre isso com um certo pesar. Uma das coisas que senti e ainda estou em tempo de elaborar é o fato de me sentir meio vazia. Como se essa questão de neutralidade na face esvaziasse qualquer possibilidade de ter uma identidade. Normalmente as pessoas podem vir a ser conhecidas pelos sorrisos, pelo jeito como posam em fotos, pelo estilo de roupas, etc. E uma das maiores dificuldades de quem é autista é a de encontrar um 'eu' genuíno, que não esteja intoxicado por imperativos neurotípicos de comportamento.
Foram diversos os momentos os quais me peguei imitando colegas aleatórios da minha sala de aula, tentando gostar da mesma coisa que as demais meninas, pedindo de presente aquela Barbie veterinária que todas queriam, mas que eu nem fazia tanta questão assim... Começar a usar roupas específicas que estavam na moda, e mesmo me sentindo sufocada ou desregulada com elas, as usar religiosamente só para tentar pertencer a algum grupo, só para me encontrar em algum lugar. Alguns tecidos, devido à hipersensibilidade tátil, podem ser terríveis. Desde que me entendi autista passei a comprar roupas conforme os tecidos, e dar preferência à peças folgadas. Essa foi uma decisão que não volto atrás pois me trouxe muita qualidade de vida. Às vezes eu sentia o tecido me arranhando, etiquetas causavam grande desconforto, calças apertadas impediam meus movimentos com as pernas, e por aí vai. Mas foram inúmeras as vezes em que me submeti a tentar caber em roupas que não abraçavam o meu corpo na sua atipicidade. Sarah me falou que não preciso mais fazer isso, que me entender autista pode me libertar dessas regras sociais implícitas as quais tomei para mim como ideais, mas que são definitivamente impossíveis de serem cumpridas, inclusive por pessoas neurotípicas.
Me pergunto sobre o que podemos conversar agora... Como consigo me aproximar dela sem que eu mesma seja o assunto da vez? Talvez por uma questão de hábito ela procure saber de mim, por ter sido minha psicóloga. Mas como ficará nossa relação daqui pra frente, principalmente depois que nos beijamos? Ela disse que tinha sentimentos por mim, mas desde então não tocamos no assunto. Para dormir hoje à noite vamos montar a barraca para o seu Túlio descansar. Ele tem vindo conosco não em um caiaque como todos, mas em uma superfície feita com toras de madeira a qual tinha sido produzida para o grupo de busca de mantimentos. Devo dormir do lado de fora com Sarah e meu pai. E certamente não teremos um momento à sós para conversar.
Entretanto, preciso dar um jeito de não me preocupar com isso, não fazer disso uma questão que fique rondando a minha cabeça enquanto temos mais com o que nos ocupar. Já conversamos todos sobre um plano possível de seguir. Levando em consideração que Recife está submersa, pretendemos viajar para o interior. Quem sabe a onda não tenha alcançado cidades que estejam mais para dentro do estado. Pensamos que se continuarmos viajando pelo litoral não encontraremos terra firme. Essa foi uma constatação minha e todos concordaram sem pestanejar. Então amanhã seguiremos viagem.
Espero conseguir dormir, mesmo com Sarah ao meu lado. Até a próxima parada!
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O Diário de Louise Veras
Genç KurguEssa é uma fic original, sem relação com séries ou filmes. Aqui você encontra os escritos de uma adolescente neurodivergente, com suas dificuldades, amizades, relações familiares, mas também com um crush em sua psicóloga que a acompanha desde o fale...