Os dias foram se passando e eu tentei ao máximo disfarçar o meu descontentamento de ver a aproximação de meu pai com Sarah, mas ela acabou chegando junto para conversar comigo em um momento o qual ele se ocupava em tomar banho.
Simplesmente não soube o que responder à sua pergunta 'está tudo bem?'. Já que nem eu mesma sei o que estou sentindo. Mas resolvi dizer exatamente isso e apontar para a frustração e raiva de vê-los juntos. Uma coisa que me dei conta e que também foi verbalizada, mesmo que sem jeito, está sendo o fato de ter que encarar uma sensação estranha, como se algo estivesse sendo retirado de mim. Sarah me fez uma expressão a qual não consegui identificar o que significava, e comentou: mas, Louise... Nossa relação não vai ser abalada pelo seu pai. Nada vai mudar o carinho que tenho por você. E o trabalho terapêutico que fizemos juntas. Inclusive, quem sabe quando tudo isso passar, podemos continuar de onde paramos.
Não sei se seremos as mesmas para continuar de onde paramos, nem se eu quero perder o pouco de intimidade que construímos no alto desse prédio após a tsunami. Gostaria de ter dito isso à ela, mas apenas esbocei um sorriso e a conversa se encerrou da mesma forma constrangedora como quando começou.
Um dia depois disso, eu e meu pai terminamos de montar com ela uma superfície possível de sentarmos, que nos levaria até o shopping. Foi difícil acompanhar os dois na montagem, porque sou atrapalhada demais com os objetos, mas no fim das contas deu tudo certo. No percurso eu e meu pai ficamos a maior parte do tempo calados somente observando ao nosso redor uma João Pessoa submersa. Ele perguntou se eu sentia falta de Júlio, o que me fez responder que sim. E também questionou da escola. Esse foi um ano muito esquisito para mim. Não me dei bem em todas as matérias como costumava ocorrer. E acabei ficando em recuperação em duas. Isso me fez precisar estudar com mais afinco para não reprovar. Fora isso também cuidei para não ser reprovada por faltas, já que diversas foram as vezes em que não compareci à todas as disciplinas. Essa parte resolvi esconder de meu pai. Sorte ele não ter perguntado já que tenho alguma dificuldade em mentir. Falando em mentir, é um mito que autistas não conseguem fazê-lo. Eu consigo mentir, mas com certa dificuldade. Já outro autista pode não ser como eu.
Ao chegarmos em cima do local o qual iríamos, meu pai mergulhou primeiro e eu me ocupei em prender nossa pequena embarcação em um poste que estava preso entre dois prédios altos. Ao descer senti todo o meu corpo relaxar. Utilizei os óculos extras de natação de meu pai que ele sempre carregou em casos de emergência. E como foi bom observar todas as construções embaixo d'água. As ruas estavam tão perto de mim, eu podia sentir a ausência dos carros e esboçar um singelo sorriso que não foi percebido pelo meu pai. Nós afundamos cada vez mais e enfim chegamos ao nosso destino. Encontramos uma loja de roupas, onde pude pegar uma mochila e escolher algumas camisas para mim e Sarah. Meu pai fez o mesmo, buscou principalmente por roupas íntimas. Encontramos em uma farmácia shampoo, cremes e protetores solares. Lembrei, com isso, de meus remédios os quais não são ingeridos já faz um mês, desde o ocorrido. Passei por algumas semanas de abstinência que não foram nada fáceis. E sinto falta da tranquilidade que meu antidepressivo proporcionava. As dores no peito e as dores no corpo, todas voltaram como uma avalanche. Não sei como posso lidar com elas daqui pra frente sem as minhas medicações. No caminho da farmácia também nos deparamos com a loja de esportes. E tivemos que primeiro retornar para o prédio com as coisas que pegamos e fazer uma nova viagem no dia seguinte. Mergulhamos duas vezes para trazer à superfície três caiaques.
E o retorno para 'casa' foi a coisa mais tensa que vivi em toda a minha vida. Um homem simplesmente apareceu querendo nos roubar o terceiro caiaque que era empurrado pelo meu pai. Ele tentou subir e os dois se atracaram em alto mar, até que o sujeito tirou do bolso uma arma, e aqueles poucos segundos foram assustadores para mim. Meu pai estava sendo puxado para baixo, pois o homem o queria afogar a todo custo. Já eu tentava manter os caiaques por perto para que não se dispersassem. Até que ouvi um tiro. E por alguns segundos meu coração parou. Toda a vida que passei com meu pai foi revivida por mim no que pareceram horas. E em seguida eu vi sangue na água. Eis que o corpo do homem começou a boiar e meu pai surgiu na superfície buscando recuperar o ar.
Voltamos o caminho todo calados, apreensivos de viver algo do tipo novamente. E antes de subirmos para o prédio e de amarrarmos os caiaques em um ponto onde poderiam ser vistos por nós, meu pai disse: minha filha, eu nunca matei ninguém. Mas quando vi aquela arma só pensei em nos proteger.
Talvez ele tivesse pensado que eu fosse julgar sua escolha, mas simplesmente não foi o caso. Eu entendi perfeitamente que ele teve de fazer uma escolha para que pudéssemos seguir adiante. O mundo não é mais como era antes. O que faríamos tendo por perto um homem que estava disposto a matar por algo o qual nos esforçamos em conseguir? O terceiro caiaque pertencia à Sarah que estava aguardando nosso retorno. E jamais me sentiria segura tendo alguém armado dividindo o mesmo espaço que o meu. Respondi ao meu pai que ele fez uma escolha assertiva e assim subimos para o prédio.
Sarah ficou muito contente com o que conseguimos, e me elogiou por ter suportado o que aconteceu depois de contarmos o ocorrido. A noite logo chegou naquele dia e comemos mais sardinhas, dessa vez acompanhadas de suco de laranja. Ao entregar as roupas que peguei, Sarah comentou o quanto eu sabia do estilo dela, pois escolhi cores e estampas as quais ela adorou. Isso me fez sorrir genuinamente, sim, pois por vezes sorrio apenas fazendo masking.
Mas antes de dormir me vi desligando de um jeito esquisito. Um shutdown estava à caminho. Eu me encolhi na barraca e comecei a chorar. Tudo o que eu precisava era de menos estímulos e agradecia por todo o ambiente estar num breu de tão escuro. Entretanto, senti a barraca se mexer e um cheiro de creme misturado com sal invadiu o ambiente. Era Sarah perguntando o que se passava. Ela segurou a minha mão e procurou me acalmar cantando uma música. Sua tentativa foi em vão, pois, por mais que a música ficasse belíssima com a sua voz, eu não poderia suportar mais nada... tudo me desregulava sensorialmente.
Um shutdown ocorre por vezes depois de um meltdown, mas também pode acontecer sozinho. Ambos são considerados crises autísticas. Durante um meltdown é possível experimentar uma explosão de sensações, os sentidos ficam mais aguçados, os problemas de hipersensibilidade ficam mais evidentes, é possível dissociar, gritar, quebrar coisas, se bater, balançar, ser agressivo com o outro mesmo não querendo - pois é simplesmente impossível controlar os impulsos e reações. E em um shutdown ocorre um desligamento sensorial. A pessoa autista pode se desligar parcialmente do mundo ao redor, não responder mais à comunicação ficando não-verbal, também é possível se retirar para um ambiente com menos estímulos ou deitar no chão de tanto esgotamento.
Pensei que fosse sair ilesa do trabalho que fizemos naquele dia, ou do caos que ocorreu no meio do caminho, mas estava enganada. Sarah me confortou enquanto estive não-verbal. Eu pude comunicar que a música não estava me ajudando apenas tapando sua boca com certa delicadeza. Fiquei aliviada de não ser um meltdown, pois jamais me perdoaria se eu fosse grossa ou agressiva com ela. Mas infelizmente sei que ao convivermos agora, isso pode acabar acontecendo. Por enquanto escolho não pensar nisso, pois só de pensar me dá uma certa aflição.
E foi assim que fui dormir naquele dia, ao lado de Sarah que não saiu de perto de mim em momento algum. Ficamos de lado, e seu braço passou por cima do meu. Ela ficou alisando meus cabelos até eu dormir, o tipo de toque que não rejeito. No dia seguinte fiquei me perguntando se tudo não passava de um sonho, mas seu cheiro ficou no meu cabelo e na minha barraca e a realidade me mostrou que pode ser doce, mesmo quando também consegue ser amarga.
Que bom que pude finalizar esse escrito com uma boa notícia. Não gosto de te deixar sempre a par das coisas ruins, diário. Até a próxima página!
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O Diário de Louise Veras
Roman pour AdolescentsEssa é uma fic original, sem relação com séries ou filmes. Aqui você encontra os escritos de uma adolescente neurodivergente, com suas dificuldades, amizades, relações familiares, mas também com um crush em sua psicóloga que a acompanha desde o fale...