Laços

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Eis que antes que eu conseguisse elaborar algo para escrever no e-mail, Júlio apareceu ofegante na porta da minha casa. Parece que ele ficou sabendo do meu diagnóstico através de seu pai, que é muito próximo do meu pai. Pois é, diário, pelo visto meu pai precisou desabafar com alguém a respeito dessa novidade. Segundo Júlio ele não está sabendo lidar tão bem, e seu pai tem dado uma força para ele.

Era só o que me faltava... Com tudo o que receber um diagnóstico comporta, ainda ter que suportar as dificuldades do meu pai. Pensei que estávamos juntos nessa busca, por algo que pudesse falar a respeito das minhas questões. E quando esse algo chega, as coisas não se desenrolam conforme o meu esperado. Júlio estava super curioso quando chegou em plena tarde de quarta-feira na minha casa. Ele tava suado e certamente correu da parada de ônibus até a minha rua sem parar um minuto sequer.

Seu cabelo, que vive armado, estava úmido de suor, sua pele negra brilhava na luz do sol de tão empapado que ele estava. E quase não o reconheci depois de raspar as laterais do cabelo. Agora Júlio estava com um corte novo e eu ainda não me acostumei até o momento em que escrevo em você.

Ele logo entrou na minha casa, tirando os sapatos e colocando perto da entrada. Regra da minha mãe que permanece vigente até hoje. Parecia por alguns segundos que nada tinha acontecido entre a gente. Ele estava falando normalmente sem tocar no assunto do nosso afastamento. Por que neurotípicos são assim?

Depois de um tempo comentando sobre a situação do meu pai e fazendo mil perguntas sobre o meu processo avaliativo ele parou estático, ficou olhando estranho pra mim - com uma expressão que eu não soube reconhecer do que se tratava. Eu sempre me senti meio estranha por não saber de cara o que alguém está sentindo somente ao olhar suas expressões faciais, sua comunicação não-verbal. E só recente vim descobrir que isso também é algo presente no autismo. Me pergunto às vezes quais aspectos seriam então da minha própria personalidade e o que tem tanto a ver com estar no espectro. Parece que tudo o que faço e o que sou passou a se resumir em critérios diagnósticos.

Falando nisso, Sarah comentou em sessão mais recente que não posso me deixar engolfar pelo diagnóstico, que preciso encontrar uma forma de me servir dele sem me perder de mim. Não sei como fazer isso, mas confio nela para que um dia consiga fazer.

Mas, então, minhas suspeitas estavam corretas! Júlio está namorando Lucas, um rapaz da segunda série que estuda na nossa escola. O popular de todo o ensino médio. E com isso está começando a se preocupar com sua aparência, o que não era uma questão para ele até então. E também se pergunta se não deveria sair do esporte que pratica e ir para outro mais popular. Júlio faz xadrez desde o ensino fundamental. Já participou de vários campeonatos, e ganhou quase todos os que se comprometeu em competir sério. Ele tem muito orgulho das conquistas que fez no xadrez. Não entendo como um relacionamento pode fazê-lo revirar sua vida de cabeça pra baixo. Que que tem ele não fazer vôlei, o esporte mais popular da escola? Por que agora está usando coturnos e colares pendurados no pescoço? O que aconteceu com sua mochila surrada? Para que uma mochila nova cheia de pins e bottons de suas bandas favoritas? Tem algumas que ele nunca foi tão fã, mas estão no bolso da mochila. Um botton dos Beatles? Onde já se viu. Ele gosta de divas pop desde que saiu do útero da sua mãe!

Enfim, esse encontro com Júlio mexeu muito comigo. Depois de algum tempo em silêncio me olhando esquisito eu resolvi perguntar: afinal, o que o deixou tão chateado ao ponto de se afastar de mim? Precisei tanto de você.

Mentira, essa última frase eu não disse, mas pensei. E ficou se repetindo na minha cabeça enquanto ele respondia minha pergunta. A resposta foi totalmente inédita, pois ele desenterrou coisas antigas as quais eu nem lembrava que tinha feito e que o teriam chateado igualmente. Falou da festa que fomos no início do ano, na casa de Camila Souza, uma grande amiga dele que estuda na terceira série A. Disse que não esperava que eu fosse embora tão cedo, e que ficou irritado ao me procurar pela festa e não me encontrar. A verdade é que eu passei metade da confraternização enfiada no banheiro, como sempre fiz em festas e encontros. Pensei que ele estava mais do que acostumado, mas pelo visto me enganei. Os estímulos do ambiente simplesmente estavam demais para mim. Fui logo atrás de um lugar mais calmo da casa, afastado de onde as pessoas se concentraram mais. Encontrei o banheiro e ele foi muito acolhedor para mim. Talvez hoje em dia eu pudesse ficar mais tempo na festa, usando abafadores de ruído, quem sabe...

Fora isso ele veio se queixar de todos os convites que recusei durante o ano todo. Reclamou de não termos ido ao cinema assistir o filme novo do Homem-aranha, reclamou da vez que fomos em uma pizzaria com amigos do xadrez dele e de eu ter ficado muito calada naquele dia, reclamou da detenção que pegamos depois de gazearmos aula juntos, e do fato deu ter sumido do local onde ficamos encarregados de limpar. A verdade é que os cheiros dos produtos estavam me deixando zonza, e eu não suportei ficar lá por mais tempo.

Tudo isso eu tive de explicar. E falei: Júlio, agora com esse diagnóstico... Todas essas coisas são explicadas. Minha hipersensibilidade aos estímulos, minhas dificuldades de socialização, os cansaços extremos que posso sentir após uma interação...

Mas ele tratou de me interromper perguntando se eu usaria o autismo como muleta. Jamais pensei que eu fosse sofrer capacitismo do meu melhor amigo. E foi exatamente o que disse após essa fala. E ele comentou imediatamente que estava se sentindo envergonhado. Nós ficamos mais um longo tempo em silêncio e depois de uma meia hora, onde eu já estava me distraindo com meu sapo de crochê que carrego sempre comigo, o Carlito, ele disse que estávamos acertados. Que poderíamos recomeçar do zero e que ele faria um esforço em me entender. Que pesquisaria sobre autismo e que eu poderia procurar ensiná-lo.

Eu senti um grande alívio com isso. Meu mundo pareceu completo outra vez e mais suportável de viver nele. Pedimos açaí e permanecemos até o fim da noite juntos, conversando... Eu sei que isso drenaria toda a minha energia, que no dia seguinte iria precisar de algumas horas a mais de sono e que muito provavelmente ficaria de cama sem fazer nada devido à ressaca social. Não sabe o que é ressaca social? Ela acontece com pessoas autistas. Quando se esforçam muito em socializar... Sempre tive isso e chamava de 'cansaço extremo pós conversas furadas'. Não sou muito chegada em papo furado, mas em nome da amizade que tenho com Júlio me permito ter vários com ele. Antes de ir embora, mais uma vez, eis que ele perguntou sobre Sarah. E eu só soube dizer o quanto ela estava bonita na sessão passada. Sarah é uns 10 cm mais alta do que eu, tem 1,70 m. O cabelo dela é cacheado, curto, vai até um pouco acima dos ombros, ela é loira e usa óculos redondo. Na sessão mais recente vestia um vestido azul, com estampa indiana, usava rasteiras marrom, carregava nos pulsos pulseiras com pingentes prateados, e nos dedos usava vários anéis. Às vezes ela está de brincos, mas dessa vez não estava usando eles. Ela sempre senta com as pernas cruzadas e apoia a cabeça na mão, de vez em quando mexe em seus anéis e desvia o olhar para a janela sem que eu precise me esforçar tanto em retribuir o olhar dela.

É muito difícil para mim olhar as pessoas nos olhos. Para vários autistas essa pode ser uma questão delicada. Mas eu sempre me esforcei para retribuir os olhares, o problema era quando passava do ponto ou não olhava o suficiente. Sempre olhei demais ou de menos. Nunca sei a quantidade de tempo ideal para ficar olhando alguém, e sempre estou me monitorando para alcançar um tempo considerado 'normal'. Isso se chama masking. E é uma coisa que muitas autistas mulheres fazem. Elas podem ficar se monitorando durante uma interação social, seja observando demais o seu corpo, tentando parecer relaxada, ou mesmo tentando olhar nos olhos das pessoas, ou parecer interessada em assuntos que não as interessam.

Acabo fazendo isso com qualquer pessoa, até mesmo com quem tenho certa intimidade. E não seria diferente com Sarah. Recente começamos a falar disso, pois em um dos testes da avaliação que fiz com a neuro - o teste referente à camuflagem - eu tirei uma nota muito alta. Isso é preocupante, pois a camuflagem ou masking pode gerar crises de ansiedade, depressão e piorar todo o quadro da pessoa. Em resumo, fazer masking se refere a camuflar os sintomas neurodivergentes para se passar por neurotípico. E neurotípico é toda pessoa que passa por um desenvolvimento típico, diferente dos autistas.

Tenho que admitir, diário, o autismo já virou um hiperfoco e venho estudando ele desde que comecei a passar pela avaliação. Tenho notado o quanto preciso ter informações precisas sobre essa condição para poder informar e educar as pessoas que convivem comigo. Sarah disse que eu não me esforçasse tanto quanto a isso, e é algo que preciso tentar fazer... Pois sei o quanto explicar o autismo para pessoas que não sabem dele pode ser cansativo pra mim.

Enfim, antes de sair Júlio me convidou para passar um tempo na casa de Lucas. Haverá um encontro por lá entre os jogares de vôlei e algumas pessoas extras convidadas. Estou pensando no assunto, pois não gostaria de me isolar tanto, mas também tenho receio de passar mal. Dessa vez, se eu for, estarei munida de suportes como abafadores e outras coisas que possam me ajudar a passar por isso.

Preciso contar com a ajuda de Sarah e de Júlio. Não sei o que faria sem os dois na minha vida. Vamos ver o que vai acontecer... Me deseje sorte!

O Diário de Louise VerasOnde histórias criam vida. Descubra agora