Os dias ultimamenre estão sendo bem corridos. Tenho feito várias coisas as quais, algumas, não consigo dar conta. Me convidaram para retomar os estudos com um professor muito bom que tem procurado dar aulas para alguns dos adolescentes que aqui estão. Não conheço ninguém, nem falo com ninguém, além de Júlio, mas aceitei a proposta. Os dias se passaram e eu fui me sentindo muito deslocada. A maior parte das pessoas que estão por aqui estavam em culto quando a onda surgiu, e não vivenciaram os efeitos dela pela cidade, ou mesmo a busca por uma sobrevivência genuína. Ninguém sentiu a morte de perto.
As pessoas estão confiando em Deus para que a cidade venha a ser reconstruída e pensam que o desastre ocorreu como uma providência divina para levar ao plano espiritual algumas almas perdidas. Júlio chegou a me dizer que concordava em parte com essa visão, o que fez com que ficássemos alguns dias sem nos falar depois de uma baita discussão. Sarah esteve por perto para me acalmar, e disse que eu tinha dificuldade de aceitar comportamentos distintos dos meus. Acabei quase discutindo com ela também, mas me controlei ao máximo para não fazê-lo.
Meu pai está bastante contente por eu ter passado no exame de admissão. E faz quatro dias que tenho saído todos os dias pela manhã com o grupo de mergulhadores. Poucos são os que conseguem de fato nadar uma distância suficiente para chegar em pontos onde podemos encontrar alimentos. E foram esses que me acompanharam na busca mais recente. Ao voltarmos recebemos quase uma festa feita pelas pessoas da comunidade. Muitos tentam se aproximar de mim, me abraçam, me tocam, procuram interagir e perguntam sobre mim. Porém, isso me deixa sobrecarregada, o que me faz ficar em lugares cada vez mais afastados da igreja para evitar cruzar com pessoas que venham a socializar comigo.
Sarah descobriu recente o meu refúgio, que fica próximo de onde o mar nos alcança. Eu costumo ir lá para ficar sentada no chão, enquanto coloco meus pés na água e observo os passarinhos que se aproximam do local. Numa tarde de quinta-feira ela perguntou se poderia sentar comigo e lá ficamos por horas a fio, conversando principalmente sobre as dificuldades as quais tenho enfrentado de socializar, de me adequar à nova realidade ou mesmo de estudar assuntos que não sejam de meu interesse.
O sábado logo chegou e eu me vi no meio da minha própria festa de aniversário. Fiquei contente por ver três pessoas as quais estimo muito presentes no local: meu pai, Sarah e Júlio. Na hora de cantar parabéns as pessoas respeitaram meu problema com barulhos, e cantaram baixinho sem bater palmas. Não tivemos um bolo, mas várias melancias foram cortadas e distribuídas para todos. Os feijões enlatados adquiridos pelo grupo de busca na água serviram bem para todo mundo. E naquele dia fomos nos deitar cedo.
Sarah ficou perto de mim, deitada na minha cama, enquanto eu estava sentada no chão montando um avião com peças de lego. Meu sono está desregulado desde que vim parar aqui. Suspeitamos de que possa ser devido à toda mudança de rotina. Mas aconteceu algo naquela noite que não sai da cabeça. Sarah me perguntou o que eu gostaria de ganhar de aniversário. E eu respondi simplesmente isto: eu gostaria de receber de presente um beijo seu.
O momento de silêncio que surgiu a partir disso foi ensurdecedor. Todas as mulheres presentes no dormitório estavam dormindo. Era lua cheia, e o brilho dela atravessava as janelas, que não estavam toda cobertas com cortinas. Eu pude olhar diretamente nos olhos de Sarah ao responder sua pergunta, mesmo que isso fosse incômodo para mim. Percebi que ela engoliu em seco e ficou me observando enquanto não surgia nada o que falar.
Entretanto, estou sem receber uma resposta até agora, pois naquela noite uma mulher entrou no dormitório e chamou por Sarah. Ao retornar, ela me disse: meu namorado apareceu com um pequeno grupo de sobreviventes. Ele está vivo. Mas está doente.
Aquela foi uma noite difícil. Demorei a pegar no sono depois dessa notícia e não tocamos mais no assunto referente ao beijo. Me martirizei por dias por ter sido honesta. E Júlio tem tirado onda comigo desde que passou a estar a par de tudo o que aconteceu. É claro que no dia seguinte a primeira coisa que fiz após o café da manhã foi procurá-lo para contar do ocorrido. Meu amigo exclamou quase como se esquecesse que tinham pessoas à nossa volta: você pediu um beijo!?
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O Diário de Louise Veras
Genç KurguEssa é uma fic original, sem relação com séries ou filmes. Aqui você encontra os escritos de uma adolescente neurodivergente, com suas dificuldades, amizades, relações familiares, mas também com um crush em sua psicóloga que a acompanha desde o fale...