Comecei a me acostumar com as aulas todos os dias, junto aos mergulhos em busca de alimentos. Os professores são bem compreensivos com minhas dificuldades, e quando os alunos iniciam conversas paralelas ou barulhos incômodos, eles tratam de solicitar que parem. Aos poucos, esse comportamento dos alunos foi se tornando cada vez mais raro. E estar em sala de aula tem sido algo prazeroso. É claro que é diferente da sala que eu estava habituada, antes da onda. Não fazemos as aulas em um ambiente fechado. Sempre estamos sentados na grama bem verde que fica na frente da igreja. Borboletas por vezes nos visitam e minha atenção acaba se voltando para elas com frequência. Júlio é quem procura me trazer de volta para a realidade. Ele senta ao meu lado e durante as aulas conversamos através de bilhetes, como de costume.
Esses dias tive algumas situações tenebrosas com alguns alunos, o que me faz não sentir a mínima vontade de me aproximar deles. Uma garota da primeira série, que estava tendo aula conosco, teceu um comentário capacitista depois que eu respondi a uma pergunta em sala de aula. Ela disse: 'nossa, apesar do autismo, você é bem inteligente.'
É sempre bom lembrar que o autismo não tem a ver com inteligência. Uma pessoa autista pode ter deficiência intelectual como qualquer neurotípico, e isso não a torna mais ou menos capaz de fazer as coisas. Outro dia, essa mesma aluna junto de outra colega comentou: 'nossa, Louise, mas você é muito bonita mesmo sendo autista.'
Cabe também recordar ou ensinar às pessoas de que a beleza não é critério diagnóstico para autismo. Esses 'elogios' cansam e são muito desrespeitosos, além de serem capacitistas. Até o recebimento do meu diagnóstico eu não tava acostumada à eles, mas se tem uma coisa que não pretendo me curvar é a me habituar com eles. É preciso, apesar das dificuldades de comunicação, procurar corrigir as pessoas para que elas não repitam essas palavras. Parece que é constante o trabalho de lembrá-las de que autismo não tem cara, de que ninguém precisar parecer autista para ser autista, e de que o autismo não precisa estar acompanhado das palavras 'apesar de'.
Júlio sempre me aconselha a tentar relevar essas situações, mas não consigo. Por outro lado, quando fazia terapia com Sarah, ela chegou a dizer que tais frases não eram de bom tom, e que eu não me acostumasse com as coisas que me incomodam.
Falando em Sarah, esses dias... todos na comunidade estão de luto. Tivemos uma perda recente. Fernando, o namorado dela, veio a falecer depois de piorar da pneumonia. E eu não sei o porquê, mas Sarah esteve frequentando bastante o meu refúgio. Voltamos a conversar normalmente. E ela tem andado em um estado de tristeza constante. Júlio falou que ela me procurou para pedir consolo, mas que aptidões eu tenho para consolar alguém? É claro que não reparei que era disso que se tratava desde o início, mas com o tempo passei a levar em consideração o comentário do meu amigo. Apesar de ser difícil escutar alguém que a gente gosta falando de outra pessoa que ela, no caso, amava... Eu me dispus a ouvi-la.
Com o tempo, seu ar de tristeza pareceu dar lugar a uma resignação. E passamos a fazer diversas coisas juntas, como boiar na água próxima do meu lugar de refúgio, participar dos encontros de crochê, dar uma volta. Dei de presente para ela uma versão feminina de Carlito. E ganhei um broche de girassol para colocar na minha roupa. Nos divertimos com as crianças empinando pipa. E também organizamos juntas a mesa do jantar várias vezes.
Voltando para o broche de girassol. Você sabia que o girassol é um símbolo que se refere às deficiências ocultas? Algumas deficiências recebem o nome de ocultas ou invisíveis por não ser possível vê-las fisicamente. O autismo é uma deficiência oculta, por exemplo. Recentemente, no Brasil, um cordão com estampa de girassois passou a ser considerado um indicativo de deficiência invisível. Era possível utilizá-lo em ambientes públicos a fim de sinalizar-se às pessoas para receber atendimento prioritário. No final do cordão podemos colocar um crachá onde consta o código do CID que se refere à deficiência presente, números de emergência em caso de crises que podiam ocorrer no meio da rua, e também dados importantes como nosso nome e a lei por escrito que nos ampara para que o atendimento prioritário seja uma realidade para nós.
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O Diário de Louise Veras
Fiksi RemajaEssa é uma fic original, sem relação com séries ou filmes. Aqui você encontra os escritos de uma adolescente neurodivergente, com suas dificuldades, amizades, relações familiares, mas também com um crush em sua psicóloga que a acompanha desde o fale...