Começando

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Inicio esse diário como uma forma de dar contorno às minhas angústias, que ultimamente têm me visitado com certa frequência. Gostaria de ser uma adolescente normal, que conseguisse sair de casa sem precisar enfrentar crises de pânico, que conseguisse interagir com as pessoas e falar o que pensa, o que sente e o que vive, que não é olhada na escola pelos colegas de turma como 'a esquisita', 'a desengonçada', ou mesmo 'a inapropriada'. Não importa quantas vezes eu mude de escola, as coisas sempre se repetem da mesma maneira. Me surpreendo com o fato de eu ainda estar viva, parece que apesar dos pesares sempre tem algo que me impulsiona a continuar na vida.

Meu melhor amigo, Júlio, discutiu comigo dia desses e eu estou simplesmente devastada. Não me recordo quantas vezes recorri a ele no colégio, seja para conseguir apresentar um trabalho, ou pra ficar por dentro das coisas que aconteciam à minha volta. Meu pai sempre me chamou de desligada, e parece que meu cérebro desliga mesmo, principalmente nos momentos os quais não sei o que fazer, como agir. Um exemplo disso é de quando pego ônibus, por vezes o balançar do veículo e a quantidade de gente à minha volta me deixa sobrecarregada, e eu simplesmente desligo. Não se trata de um desmaio, mas de um cessar a bateria do meu corpo. São incontáveis as vezes que perdi a parada que era para descer assim. Enfim, tenho muitas dificuldades no dia a dia... E Júlio era quem se fazia presente na minha vida desde o primário. Crescemos juntos, na mesma rua. A mãe dele trabalhava junto com a minha mãe. As duas eram muito amigas... Até o dia em que minha mãe se foi. Restou somente eu e meu pai para lidar com o buraco de sua ausência. O carro ficou destroçado depois do acidente. E eu fiquei me questionando por bastante tempo se podia ter impedido o que aconteceu. Estava chovendo, o tempo não estava dos melhores. Para quê ela foi sair naquela hora da noite só para ir ao mercado? Essa pergunta fica retornando sem uma resposta plausível.

Devido a todas as dificuldades que contei nessas páginas e a esse trágico acontecimento eu fui parar em um consultório para ter atendimento psicológico. Meu pai não aguentou me ver de cama por tantos meses, faltando as aulas e quase reprovando por falta. Eu mal comia e mesmo as conversas com Júlio não me animavam. Então, cá estou eu, escrevendo em você, sentada na sala de espera da minha psicóloga Sarah.

Ela é uma mulher alta, usa óculos de armação transparente e meio quadrada, seus cabelos são cacheados e vão até um pouco acima dos ombros, ela tem um estilo meio tilelê, sabe? E tudo nela me chama atenção. Tem dias que não me recordo o que falei em sessão, de tão desconcertada que fico na presença dela. Ela inclusive já comentou que talvez eu pudesse estar pensando no amor ultimamente, já que falei o quanto me sinto deslocada à respeito disso na escola. Todas as meninas já estão namorando, carregam seus namorados pra baixo e pra cima... Enquanto eu... Bom, eu estou com um crush na psicóloga a qual não sabe disso.

O único que sabe agora além de Júlio é você. Gostaria de dizer que está quase superado, que eu sei muito bem que é algo irrealizável para se ficar fantasiando perdendo tempo com isso. Mas considero que essa mulher talvez esteja sendo meu hiperfoco do momento. Não sei o que é pior, na verdade. Ela ser um hiperfoco ou uma paixão. Ah, você não sabe o que é hiperfoco? Bom, o hiperfoco acontece em pessoas neurodivergentes, que são diagnosticadas com autismo, TDAH, bipolaridade e outras neurodivergências. Não te contei? Pois é. Estou nesse exato momento passando por uma avaliação para saber se sou autista.

Era só o que me faltava... Depois de dezessete anos de vida receber um diagnóstico tardio de autismo. Mas a verdade é que nenhuma medicação receitada pelo meu psiquiatra fez o efeito esperado. Até então estou diagnosticada com depressão e ansiedade. E já experimentei vários antidepressivos que não me impedem de ter crises sempre que saio de casa e estou em um ambiente lotado, que não me impedem de me irritar imensamente com conversas e barulhos diversos que possam estar ocorrendo no local onde estou, que não me impedem de me desregular completamente depois de uma interação social que dure mais do que o meu limite aguenta.

A Sarah me acompanha desde os quinze anos e não é especialista em autismo ou TDAH. Então, para passar pela avaliação estou tendo que encontrar outra profissional, uma neuropsicóloga. As sessões são exaustivas, e colocá-las na minha rotina foi um sufoco. Mas estou sobrevivendo a mais uma semana, 'como uma boa Veras', diria meu pai.

Espero sobreviver à semana que vem, que será a devolutiva de toda essa cansativa avaliação. Será que Júlio estará falando comigo novamente? Não sei como procurá-lo para acertarmos os desentendimentos recentes. Ele foi me dizer uma coisa tão íntima e falou que eu não tive a reação esperada. Disse que continuei com a minha 'cara de paisagem'. Não sei bem o que ele esperava que eu dissesse, ou como queria que eu reagisse. Para mim não faz diferença o fato dele ser gay. Também não sei como ajudá-lo a contar para sua mãe. O máximo que fiz foi escutar, mas ele queria receber algo além disso. Gostaria que Sarah me ajudasse nisso. Mas gostaria tantas outras coisas também... Por enquanto, agradeço que essa sala de espera esteja vazia. O vazio é muito importante para mim.

Bom, agora que sabe um tanto sobre os dramas adolescentes que vivo, vamos esperar o próximo momento onde vou me ocupar em escrever em você. Por enquanto, vou carregá-lo na bolsa para que não caia em mãos erradas. Até qualquer dia!

O Diário de Louise VerasOnde histórias criam vida. Descubra agora