Eis que eu estou justamente no prédio comercial onde minha psicóloga Sarah trabalha. E era ela quem estava tentando empurrar a porta para subir pro último andar. Por sorte a água não havia tomado todo o local e ela conseguiu manter a respiração enquanto esteve presa. Agora estamos só nós duas por aqui, sobrevivendo com as comidas que trouxe comigo pensando que seriam usadas no acampamento.
Eu não deveria estar pensando isso, certamente, mas houve um momento onde ela precisou colocar suas peças de roupa para secar. Fiquei de costas, claro. Mas como passei sufoco com isso! Estamos desde então trocando poucas palavras. E não sou tão boa em falar quanto posso ser em escrever, entende? Sabia que autistas podem ser verbais e não-verbais? Autistas não-verbais podem fazer uso da CAA (comunicação aumentativa e alternativa) e eles tem condições de se desenvolver brilhantemente na escrita. Existem até livros escritos por adultos e adolescentes autistas que não falam, mas se comunicam através da linguagem escrita.
Talvez comentar sobre isso não me ajude em nada na situação a qual estou, mas sinto que preciso me agarrar a qualquer coisa que me deixe mais próxima da minha antiga realidade de algum modo. Falando em antiga realidade... Não sei como ficará minha terapia. Conviver com Sarah como sobreviventes de uma tragédia tem me feito pensar que tipo de relação podemos ter daqui pra frente. Não que eu crie muitas expectativas, romanticamente falando. Afinal, eu sou desajeitada e tenho dificuldade de comunicação, e provavelmente ela nunca saberá o que sinto. Não se eu tiver que falar. Sim, eu estou sendo um tanto cruel comigo mesma, e isso não é nenhuma novidade. Mas fico pensando do que podemos nos chamar agora... Amigas? Vizinhas de quarto? Mas não há um quarto. Estamos presas em cima de um prédio em parte submerso.
Comecei a tomar banho fora dele. Na água do mar mesmo que toma conta de todo o espaço. Sarah também tomou, mas longe das minhas vistas. Não foi preciso que ela solicitasse o meu afastamento. Eu mesma me afastei e procurei escrever em você enquanto isso. Tento escrever um parágrafo a cada dia para relatar os acontecimentos. Ando preocupada também de quando a tinta da caneta acabar... O que farei?
Passo horas olhando pro céu, vendo os pássaros longe e livres. Passo horas observando o horizonte e tudo o que vejo são destroços da cidade, alguns corpos de pessoas que não tiveram a mesma sorte que a minha, e objetos variados que podem vir boiando até nós. Recente conseguimos um colchão. Sim, um colchão tamanho solteiro, o qual pegou sol por algumas horas e já está seco. Eu costumo ficar na minha barraca, mas quero propor de revezarmos. O lado bom do colchão é ele ser mais confortável, e da barraca é da pessoa não ficar exposta ao sereno. Devo levar dias para verbalizar essa proposta pra ela.
É que pessoas autistas levam tempo para comunicarem as coisas, e levam mais tempo ainda para formular o que se passa com elas. Disso eu não sabia até receber o diagnóstico. Também não sabia que eu poderia ter problemas de propriocepção. Não sabe o que é isso? Relaxe, eu também não sabia. Se trata de uma dificuldade em perceber os sinais que o corpo emite. Nós, autistas, podemos não notar quando precisamos ir ao banheiro, ou quando estamos com frio ou calor, ou quando sentimos dor, por exemplo. Isso varia de autista pra autista. Eu tenho uma enorme dificuldade de entender quando tenho que fazer xixi, e já me urinei no caminho até o banheiro, ou na escola por não saber o que tava acontecendo com meu corpo. Em relação à dor tenho hipossensibilidade (significa que não reconheço de imediato a sensação de dor). Isso fazia com que, atenção para assunto delicado, ao me machucar propositalmente eu não sentisse os cortes que fazia em minha pele. Sim, cheguei a passar por isso há uns anos. Foi inclusive o que chamou atenção do meu pai para me colocar em uma psicóloga. Eu simplesmente fazia e andava com casaco no sol de meio dia após sair da escola. Ele logo notou e conversou comigo. Sarah me ajudou muito quanto a isso no início do tratamento, e sou grata por tê-la em minha vida.
Quanto ao calor eu até consigo sentir, mas o frio é difícil de assimilar. Dia desses Sarah, inclusive, comentou que eu deveria entrar na barraca, que estava fazendo muito frio. Meu casaco estava na bolsa e ela orientou que eu o colocasse. Entende agora por que, dentre outras coisas, o autismo é dividido em três níveis de suporte? Existe o nível de suporte 1, 2 e 3. Cada um tem suas necessidades e particularidades. Uns demandam mais ou menos suporte. O suporte pode vir de uma pessoa que avise o que está acontecendo no ambiente, seja em relação à uma gafe que podemos cometer, ou mesmo a temperatura que esteja fazendo para que coloquemos um casaco, por exemplo, ou adequarmos nossas roupas em relação ao clima. O suporte também pode vir de um dispositivo com alarmes para lembrar ao autista de urinar a cada hora talvez. O suporte pode vir dos fones que podemos usar para nos resguardar do desconforto causado pela hipersensibilidade auditiva, também.
Antes do diagnóstico eu sempre observava o que as pessoas vestiam, o que a maioria usava eu tava usando. Mas nem tudo são flores, podemos simplesmente não inventar formas de compensar nossos déficits. Muitos autistas que chegam à fase adulta sem um diagnóstico criam formas de lidar com suas dificuldades, mas nem todos são assim. E por vezes, a forma que encontramos de lidar com nossos problemas podem não ser das mais adequadas. Podem trazer prejuízos psíquicos ou até mesmo físicos.
Em relação às roupas eu sempre fui muito cri-cri, chamava assim por não ter entendimento do assunto. O que acontecia e acontece até hoje é que eu escolho minhas roupas pelos tecidos. Alguns deles são simplesmente insuportáveis ao tocar, ou mesmo quando os sinto no meu corpo. Algumas costuras podem ser demasiado irritantes para a minha pele. Isso se chama sensibilidade tátil. E autistas podem não possuir somente hipersensibilidade auditiva (a mais conhecida), mas também tátil, de paladar, olfato... Tudo o que envolve os sentidos pode ser experienciado com maior intensidade por uma pessoa autista. Roupas muito coloridas e chamativas também me causam desconforto, portanto escolho as de cores pastéis ou mais escuras. Isso ocorre devido à hipersensibilidade visual. Luzes muito fortes também entram nesse quesito. Uma coisa que sempre fiz foi utilizar óculos escuros de manhã, mas também, às vezes à noite. Quando saía à noite os faróis dos carros me machucavam ao olhar. E taí outro exemplo de objeto suporte: óculos!
E cá estou eu fazendo infodumping em meu próprio diário, ou seja, explicando nos mínimos detalhes sobre um assunto de hiperfoco meu.
Talvez depois eu me demore em contar sobre outros assuntos para passar o tempo. Espero que o resgate logo venha. Que meu pai tenha sobrevivido e apareça, bem como Júlio... e que alguns dias passem até lá para eu ficar mais tempo com Sarah. Será que estou sendo egoísta? Se sim, talvez seja bom. Nunca me permiti ser um tanto egoísta. Sempre me coloquei em situações desconfortáveis para mim em nome de uma determinada adequação na sociedade. Agora que está tudo alagado, que seja possível eu modificar essa relação desastrosa que tenho comigo mesma. Talvez um pouco menos da realidade antiga possa se fazer presente.
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O Diário de Louise Veras
Roman pour AdolescentsEssa é uma fic original, sem relação com séries ou filmes. Aqui você encontra os escritos de uma adolescente neurodivergente, com suas dificuldades, amizades, relações familiares, mas também com um crush em sua psicóloga que a acompanha desde o fale...