20- Sou o único falante de um idioma que ninguém traduz

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Seus olhos estavam pálidos, insólitos.

E isso quase me fez querer voltar atrás.

— O que você faria por mim, que não faria por mais ninguém? — Não parei de encará-lo por um segundo sequer, vendo a pergunta pairando no ar entre nós até fazê-lo engolir com a ajuda do seu silêncio.

Aquela era a minha resposta.

Eu quis rir, como se estivesse incrédulo, mas o ar que faltava em meu pulmão preenchido pelo mar que escorria pelos cantos dos meus olhos me impediram.

Virei de costas, de frente para a porta.

— Para onde está indo? — perguntou assim que toquei a alça da mala, no chão ao meu lado.

Virei para frente de novo.

Respirei fundo. Eu sabia que se escolhesse aquela via do labirinto o caminho atrás de mim daria para uma parede.

Mesmo assim, continuei seguindo em frente.

— Não consigo mais estar com você. — Ele franziu o cenho, tentando fazer aquele cérebro brilhante interpretar minha metáfora ridícula. — Não quando você nunca está aqui. Não quando está em qualquer outro lugar que não comigo. Não posso mais ficar com você. Não consigo mais ficar com "não-você".

Cada palavra que eu tomava fôlego para dizer voltava como um aperto, como se tirasse um pedaço do meu órgão pulsante aos poucos, até não restar mais nada lá dentro.

— E o fato de não entender o que eu estou dizendo… — acrescentei, comprimindo os lábios diante do seu cenho franzido. — O fato de não entender o que estou tentando dizer, porra, de nunca entender o que estou tentando dizer, é só mais uma razão para eu partir.

Não disse adeus, apenas atravessei a porta e não parei até estar longe o suficiente.

Não se diz adeus a um lugar em que nunca esteve, não de verdade.

Há uns tempos eu li uma história sobre dois amantes, um músico e um poeta, um dizia ao outro:

"Conserte essa estante, ela está torta"

O músico respondia "vou consertar" e voltava a tocar seu instrumento de trabalho. No outro dia o poeta gritava de novo "Porra, conserte a droga dessa estante" e o músico respondia "Merda, vou consertar".

No dia depois desse, a mesma coisa.

A estante cedeu, caiu por cima do poeta.

A única coisa que ele disse foi "eu te pedi para consertar essa estante".

Depois disso, foi embora.

Não foi por causa da estante.

E, porra, nada nunca descreveu tão bem a forma como me sinto, foi como se eu tivesse encontrado um outro infeliz que falava o mesmo idioma que eu.

Mas ele foi embora, e eu também estou indo.

Assim que a estante ceder.

Carta aberta para toda história que talvez eu nunca escrevaOnde histórias criam vida. Descubra agora