07. Destinados ao cancelamento

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S/n Shoukill

Brinquei com o taco de sinuca entre meus dedos. O girei como alguma espécie de bastão, era uma das minhas habilidades inúteis que aprendi na sexta série. Dobrar a língua em três, girar caneta entre os dedos — Ou qualquer material fino —, movimentar o osso inferior do meu dedão para frente e para trás, desfocar a visão quando quiser... Há tantas coisas inúteis que aprendi para não ficar prestando a atenção no caos que era o lugar que eu devia chamar de lar.

Vendo meu irmão sorrir com a sua mais nova amiga, Kuina, me fez refletir algo que eu havia guardado no fundo do meu subconsciente. Algo que me proibi de lembrar. A solidão que eu sentia e tenho certeza que ele sentia também. Há um termo comum que eu odeio usar para isso, um termo romantizado vindo de adolescentes inconsequentes. Daddy Issues. Mommy Issues.

Hackey fez seu último ponto, ganhou e começou a rir da cara de Kuina. O que me fez rir nasalmente.

-- Sem humilhação aqui, crianças. Minha vez?

Hackey- Agora é eu contra você, maninha.

Kuina- Foi tão injusto...

Hackey- Engole o choro, vadia.

Kuina o lançou um olhar mortal, mas quando virou para mim, percebi que estava lutando para esconder um sorriso divertido. Trocamos de lugar. Fiquei em pé no lado oposto da mesa onde Hackey estava.

-- Par.

Hackey- Ímpar.

-- Eu cago e você limpa, HA. Brincadeira.

Fizemos a contagem, lancei dois, ele também.

-- Ganhei, eu escolho começar.

Posicionei o taco em meus dedos e comecei a mirar a direção em que queria.

Hackey- Coloca a bola no buraco, maninha.

O olhei de forma ameaçadora por ele estar tentando me fazer rir para me desconcentrar. Eu conheço esse monstro, tudo que ele sabe fui eu quem ensinei. Me forcei à o ensinar. Me forcei a ficar mais forte para não vê-lo de novo naquele estado.

Acertei.
Mais uma, errei.

Hackey- No que tanto pensa?

Acertou a primeira e a segunda, errou a terceira.

-- Nada interessante a não ser esse seu cabelo ridículo.

Errei a primeira.

-- Merda, eu sou horrível em colocar a bola no buraco.

Hackey- Meu cabelo é lindo.

-- Beleza então, The Rock.

Hackey- O The Rock não tem cabelo.

-- Você deveria seguir os passos dele, ficaria melhor sem, também.

Hackey- Cala a boca, cabeça de tarântula.

Até o fim do jogo, continuamos a nos xingar. Uma tradição de família. Bom, nada importante, ele ganhou.

Hackey- Perdeu, tinha que ser mulher. -- ironizou, largando o taco

-- Isso que eu ouvi da sua boca foi um machismo, seu viado? -- brinquei de volta

Provavelmente iriam nos xingar e nos cancelar, mas com que internet? As pessoas só ligam para isso na frente de suas telinhas. Hackey e eu aprendemos a ironizar sua militância falsa, Hackey como Pansexual mal-representado e eu como uma mulher não-feminista mal-vista. Já fui feminista. Mas aprendi com o tempo que o feminismo eram para mulheres específicas. Não inclui negras, mulheres que gostam de se exibir, mulheres com características diferentes e mulheres não-feministas, como eu. Seria suicídio mostrar minha opinião na web, seria destino ao cancelamento na hora, mas letras não são tão assustadoras quanto parecem.

Palavras são, por isso é muito mais fácil ler livros do que prestar atenção nas frases rudes em sua volta.

Eu luto por meus direitos, claro, mas não sei se humilharia uma minoria por isso. Eu gosto dos termos do feminismo, uau, Girl Power, mulheres na mesma linha de homens. Eu defendo essa idéia. Mas defendo a idéia de todas as mulheres, não um círculo específico.

Kuina- Vocês são estranhos.

-- Vamos eu e você? Homens sempre ganham por causa da sociedade capitalista.

Kuina- Capitalista?

Gargalhei.

-- Presta atenção no jogo, mulher.

A vi sorrir.
Acertei duas bolas, errei a terceira.

Kuina- Então... Eu não pude deixar de notar uma cicatriz na sua entrada-do-paraíso, Hackey... Foi em um jogo?

O olhei de canto, vi um sorriso gentil em seus lábios, ele claramente não queria sorrir, mas não é como se ainda remoesse essa história.

Hackey- Estava olhando para minha entrada-do-paraíso? -- trocou o assunto

Kuina- Ah, qual é, não é difícil ver essa cicatriz. E, com todo respeito, te deixa estiloso.

Ele sorriu de verdade dessa vez.
Kuina continua acertando sua sequência.

Hackey- Fico feliz em saber, porém, entretanto, todavia... Você ainda não provou que merece saber.

Ela riu fraco

Kuina- Tenho que subir de nível com vocês para saber da sua vida?

-- Precisa ganhar na sinuca.

Kuina- Eu estou na sua frente.

Assim que ela diz isso, erra sua bola.

-- Mas perdeu para o Hackey, não há mais volta.

Kuina- Ah, mas...

-- Talvez em outra oportunidade.

O fato de que todos aqui estão prontos para assassinar pessoas por suas vidas insignificantes mostra o nível de caráter de alguém, eles não estão errados, é o instinto de sobrevivência. Porém, deve haver um motivo para tanta vontade de viver. A minha é meu irmão, a do meu irmão sou eu. Mas qual a dos outros aqui?...

Essa história é composta por pessoas com cicatrizes, todos temos cicatrizes em nossas almas, alguns só tiveram o azar de ter elas marcadas em seus corpos.

-- Ganhei. Kuina, você está declarada a pior monitora de vara aqui.

Hackey- Iiiih, não sabe mexer com pau.

Kuina- Vocês estão roubando.

-- Você só é ruim.

Sorri.

Enquanto não tivermos a certeza que nossas cicatrizes podem ser expostas a alguém, guardaremos as nossas e tentaremos não machucar a de outros. Eu sei, Hackey sabe, Kuina sabe, Ann sabe, e cada um que aqui está. Para vencer um jogo onde deve se expor, precisa primeiro estar curado.
Quantos aqui são fortes o suficiente para mostrar sua fraqueza?

𝙳𝚎𝚜𝚝𝚒𝚗𝚎𝚍 𝙵𝚘𝚛 𝙳𝚎𝚊𝚝𝚑: ᴵᴹᴬᴳᴵᴺᴱ 𝑪𝒉𝒊𝒔𝒉𝒊𝒚𝒂Onde histórias criam vida. Descubra agora