"O destino quis que a gente se achasse, na mesma estrofe e na mesma classe, no mesmo verso e na mesma frase." — Paulo Leminski
É raro que numa manhã de segunda-feira alguém filosofe sobre as grandes questões universais. Geralmente estamos ocupados com coisas mais mundanas, mas o fato é que hoje, desde que acordei, só penso em destino. Você sabe, na inevitável sucessão de eventos advindos de uma presumível ordem cósmica.
Não sei se as estrelas tiveram alguma coisa a ver com a minha mudança de sorte. Talvez sorte seja nada mais, nada menos que a prova da mobilidade natural das coisas. Queda e ascensão. Perda e resiliência humana.
Ok, talvez eventos predestinados não existam, mas como questionar a existência da sorte? Depois de um fim de semana catastrófico de mudança, e do estresse de recomeçar tudo de novo, remexo nas solitárias gavetas da cozinha do meu irmão, abro portas e compartimentos da geladeira. Nada. Estou quase desistindo quando vejo, esquecida na última gaveta, uma aspirina embalada em alumínio desbotado. Você viu? Sorte!
Vou otimista para o hospital, vendo que a aspirina venceu há apenas dois meses. Concluo que gosto da aleatoriedade do acaso. Remexe um pouco com a ideia de causalidade, claro, e definitivamente põe abaixo uma certa crença na harmonia do cosmos, mas às vezes, simples assim, é tudo uma questão de feliz eventualidade. Quais eram as chances de encontrar uma aspirina na cozinha? Tendo em vista que ambos somos médicos? Enfim, isso não vem ao caso.
O dia segue seu fluxo normal, uma chatice de burocracia sem fim, até que decido fazer uma pausa e tomar o lixo de café que encontramos nesse país, caminho até o lado de fora, é bom sentir o frio um pouco, pego um café no carrinho do outro lado da rua e é isso, hora de voltar a papelada, procuro ir pelo caminho mais longo adiando o máximo possível chegar até a minha sala. Não me leve a mal, é segunda - feira em um lugar novo, mesmo sendo velho, ainda assim é novo porque já faz muito tempo que estive aqui. De qualquer forma procuro fazer uma pequena incursão pela emergência, ver o tom das coisas, porém não há muito para ver, exceto quando olho assombrada para o vulto no canto da minha visão. Não é possível.
Sentada no sofá da recepção está alguém que conheci há muito tempo atrás. Alguém que deixei no passado e que jurei nunca mais olhar nos olhos, aqueles olhos azuis e frios.
O acaso e a sorte perdem lugar para outra instância, uma que não havia considerado.
Carma.
O coração ecoa uma batida desesperada. Não é curioso que um órgão que more dentro de uma cavidade torácica responda de maneira tão rápida a um estímulo que não vê?
É ela.
Com um livro nas mãos, mergulhada em palavras. O que corre pelas minhas veias é ruim. É repelente, e me faz querer vomitar à visão. Aquela é a garota que acabou com a minha vida.
Minhas pernas seguem involuntariamente até a recepção onde debruço sobre o balcão e falo em tom secreto com a primeira enfermeira que encontro.
— Oi — olho para o crachá, lendo o nome escrito em azul: Marinalva. — Marinalva, sabe me dizer o que aquela garota com o livro na mão está fazendo aqui? Marinalva retribui a olhadela para o meu crachá e avermelha. É, tenho causado muita comoção por aqui e olha que nem comecei realmente desenvolver minha pesquisa. As notícias correm, eu não sentia falta disso.
— Q-quem?
Aponto para o meu próprio peito, como se a garota morasse bem ali. A moça entende que quero dizer atrás de mim. A garota que está na direção do meu dedo, não dentro do meu coração.
Ela se inclina para vê-la: — Acho que está aqui reclamando de dor de cabeça. Está esperando o neuro.
O frio que violava minhas vísceras para. É o que? Acho que não entendi direito. Maya está aqui para ver um neurocirurgião por conta de uma dorzinha de cabeça? Ridículo!
— Quem? — pergunto com as mãos em punhos sobre o balcão.
— Acho que seria Dr. Koracick, mas como não está aqui terá que ser a Shepherd.
— Shepherd — repito dando uma batida leve na madeira e disparando em busca de Amélia.
É uma boa hora de dizer olá não é? Tão boa quanto qualquer outra. Meu peito se comprime como se o ar tivesse sido sugado do meu corpo, os corredores parecem intermináveis e ainda mais estreitos. Entro na sala do staff no momento em que ela pega o telefone. Fecho a porta atrás de mim, dizendo firme:
— Coloque no bolso de volta, por favor.
— Você está sendo chamada para emergência? — pergunto cruzando os braços. Não quero que ela veja que minhas mãos tremem, consequência da adrenalina espirrada no sangue. As sobrancelhas de Amélia vão parar no meio da testa:
— Como?
— Há uma garota na recepção que, segundo me falaram, está aqui para uma consulta. Minha voz sai estranhamente calma, como se uma parte de mim (e gostaria de ser apresentada formalmente a esta parte) soubesse como reagir no caso de uma hecatombe.
— Sim? Amélia se inclina sobre o balcão, me avaliando, tentando entender do que se trata minha invasão à sala: — Você está bem, Carina? Balanço a cabeça que sim. Mas está bem claro que não estou, olho para a porta.
Isso não pode acontecer. É injusto que esteja, é praticamente impossível. O meu caminho e o de Maya não deveriam mais se cruzar. O que nos separou foi forte o suficiente para ser definitivo, e definitivo, por definição, significa para sempre.
Volto a olhá-la: — Eu faço essa consulta. Assim que a frase sai da minha boca, arregalo os olhos. Eu acabei de dizer? O sujeito eu não pode estar na mesma sentença que faço essa consulta; o sujeito eu não deveria sequer estar no mesmo edifício que o sujeito ela.
As sobrancelhas de Amélia viram um til sobre os olhos. Estendo a mão, ela olha o celular e faz uma careta — Não sei o que está acontecendo aqui, mas é muito bom de ver e voltaremos a isso mais tarde. Agora não acho que essa paciente precisa de uma obstetra uma vez que Koracick me pediu para dá uma olhada. — murmuro "droga" deixando ela começar a deixar a sala.
Paredes passam por mim, vozes me cumprimentam, sigo atrás da Shepherd, mas estou longe em distância e tempo. De volta a um lugar que nunca mais gostaria de revisitar, mas revisito. Por algum jogo de dados do destino, a vida que deixei para trás retorna, e com ela sentimentos antigos. O corpo vibra por algo que apelido, por puro otimismo e curiosidade. Uma vontade tanto involuntária como intencional de saber o que aconteceu a ela naquele hiato de sete anos. Sete anos atrás eu vi Maya pela última vez.
Não foi bonito.
Não foi romântico.
Quero saber o que ela conquistou e perdeu nos últimos anos; quero mostrar quem eu virei, ver sua reação quando souber que a decisão sobre sins e nãos repousa em minhas mãos. É vil, eu sei.
É uma pena que a sensação de ser malvada dure exatos três segundos. Nesses três segundos lembro do que aconteceu conosco. Lembro também dos sete anos que passei ao seu lado, e os sete seguintes em que tentei esquecê-la.
Mas no quarto segundo sou inundado por um sentimento estranho de piedade que me faz tombar na maca quase em frente ao leito em que Amélia a leva. Suspiro longamente ao ver as cortinas serem fechadas antes de ir buscar um tablet para tentar ler o prontuário dela. O que aconteceu com você, Maya?
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A Última Parte
FanfictionUma ascendeu na carreira, mudou de cidade e país, e acredita ter deixado os fantasmas para trás. A outra teve que aprender a viver sem suas memórias, inteiramente apagadas por um acidente quase fatal e florescer na vida e com as responsabilidades qu...