Capítulo 4 - A segunda Peça

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"Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito." — Machado de Assis.


Enquanto para alguns o passado está sob uma camada de verniz, à distância de um arranhão da superfície, para outros ele jaz no fundo de um abismo. É estranho, mas incontestável: Maya não se lembra de mim.

Diante dela minha mente ficou em branco e pensando em absolutamente tudo, separo sua boca do corpo, analiso o vinco do sorriso. Tento encaixar os olhos azuis naqueles que guardo na memória, e descubro com melancolia que eles cabem. Não é raiva o que sinto, como achei que sentiria. Não é arrependimento por tê-la deixado para trás, não é vergonha de admitir que estou perdida na sua frente como estive tantas outras vezes no passado. É a soma de tudo isso e mais.

Raiva, arrependimento, medo, dor, culpa e vergonha; uma constelação de afetos no meu céu, à espera do disparo inicial. O que vai saltar na frente? Que mágoa atirarei primeiro em sua direção? Essa não é a minha garota, essa não mais aquela minha garota do bar. Ela até tem um filho agora, mesmo que tenha deixado claro que isso jamais iria acontecer. Bom, parece que aconteceu, só não comigo, ela só não queria um filho comigo foi isso ou o acidente a mudou? Ela quase morreu, o que diabos realmente aconteceu enquanto estive fora?

"Eu precisava ser acalmada" bate em minha mente, de quê e por que? Ela me chamou de Carina e só agora me dei conta, depois de há muito ela ter ido, me dou conta de que o timbre de sua voz ainda remexe tudo em mim. Eu deveria ter perguntado se ela tem problemas de memória? É óbvio que ela tem, também é óbvio o motivo pelo qual não perguntei, porque como eu poderia pular para a conclusão de que seu acidente afetou sua memória? Eu não poderia, essa é a verdade. Só se eu a conhecesse, ou tivesse sido esquecido por ela. E ela saberia disso na hora, eu sei bem disso.

Passei uns bons 15 minutos sentada olhando para onde ela se foi novamente, para está virando um hábito, mas não perco mais tempo levando e vou direto para o meu carro, ouço alguém chamar por intermédio, mas não paro, não posso. Vou direto a Estação 19, é apenas alguns quarteirões, mas não sei como dirigir até aqui sem causar um acidente, mas cheguei tomei uma respiração profunda antes de entrar, são muitas memórias deste lugar, dessas pessoas, sinto um nó em meu estômago ao pensar sobre essas memórias, memórias essas que ela não tem

A primeira pessoa em que vejo na entrada é Victoria Hughes; Vic que está na recepção e me dá um olhar surpreso por 2 segundos antes de ser substituído por raiva, a segunda pessoa que vejo é Jack sentada na escada brincando de carrinho com uma criança, ele está sorrindo genuinamente até me notar e puxar o menino em seus braços, me olhando com o que parece ser julgamento, seguindo meu olhar Vic pula da cadeira jogando - a com tanta força para trás que causa um barulho alto ao se chocar com o balcão próximo à parede, o barulho assusta a criança que se encolhe e tentar me olhar sendo impedido pela mão de Jack forçando - o deitar em seu pescoço, mas isso é o de menos porque o barulho também atrai Dean que me dá um olhar em carrancudo e cruza os braços, Travis me olha com um pouco mais que raiva e Andy que dá um misto de energia negativa, ódio e mágoa.

Ótimo, parece que todos eles me odeiam.

Tento parecer menos intimidada possível, claro que eles me odiaram, eu a deixei dizendo que era para ajudar meu povo, meu país estava sofrendo com o pior de uma pandemia e simplesmente não voltei. Na verdade não foi nada simples, eu tentei, mas toda vez que pensava em voltar para cá, pensava no quão egoísta era que ter que abrir mão de tudo que sonhava por ela, como ela mantinha seu emprego em um patamar acima de mim, de qualquer coisa, de como ela se recusava a pedir ajuda e me mantinha afastada, na Itália apesar de tudo, eu estava trabalhando, tinha meus amigos, estava realizada e principalmente; eu não estava me diminuindo para caber no mudo de uma menina como ela.

Já que ninguém diz nada e são muitas emoções diferentes no ar nesse momento, dou novamente uma olhada em todos eles com cuidado, absolvo cada detalhe de suas posturas, o jeito como Vic correu para se colocar entre mim e Jack. Não, não entre mim e Jack, sim e mim e a criança. Eu sei de quem é essa criança agora é muito claro, assim que percebo isso todo o resto fica em segundo plano, vejo Jack manter mais próximo em seus braços e como isso faz o menino piar e esse pequeno sonzinho faz com que todos saiam do tense em que nos encontrávamos e todos eles disparam ao mesmo tempo

— O que faz aqui?

— Vá embora! — Por que veio até aqui?

— Vá embora! — O que você quer?

Não consigo identificar exatamente quem diz o quê em meio ao caos que foram todos falando ao mesmo tempo, a não ser claro, a ordem direta de Andy para Jack — Tire ele daqui agora!

Che diavolo! Pensano che rapirò solo il ragazzo?

Está claro que nenhum deles me quer aqui, mas aqui estou e não sairei até obter algumas respostas gostem eles ou não, por isso que prossigo de cabeça erguida, haverá tempo de cuidar dos demais perto, mas mesmo assim sigo com o olhar enquanto Jack levar o menino para cima dizendo para mim mesma que é apenas curiosidade, que ele poderia ser filho de qualquer um deles e eu ainda estaria curiosa. A verdade é que eu só queria saber, será que ele se parece com ela? Quem é o pai? Jack? É por isso que ele se tornou tão protetor quando me viu? Ela ficou com ele novamente depois que partir? Ela não faria isso novamente, faria?

— Andy — tento com ela porque sei que apesar de todos os pesares ela ainda era a mais próxima a Maya, também sei que isso significa que ela é a que mais me odeia entre eles, a vejo suspirar olhando as costa de Jack sumindo, mas mesmo assim ela acena com a cabeça para que eu possa seguir - la, a sigo para o pátio com o canto de olho vejo Travis saindo para o outro lado falando em tom irritado como isso era inacreditável, enquanto Victoria resmunga algo para Miller que não dou importância. Caminhamos até o caminhão onde ela começa a polir, em silêncio, tenho novamente — Andy? — mas ela me corta perguntando — O que você faz aqui Carina?

Fico quieta um instante — Eu preciso saber... O que aconteceu? Ela para seus movimentos e me dá um olhar muito zangado antes de dizer — Você aconteceu! Você possibilitou isso, você fez isso! ela apontou um dedo acusatório para mim, mas depois suspirou frustrada enquanto seus olhos ficaram marejados — A culpa não é sua, eu acho... É só que... Ela olha para cima tentando não evitar as lágrimas, e então eu entendo, o que quer que tenha acontecido com Maya afetou profundamente todos eles — Olha, não foi bonito, Carina. Nada ficou bem depois que você foi embora, ela mudou. Ela não era mais ela mesma — prendo a respiração, será que era sobre isso que ela falou que precisava ser acalmada? O que diabos realmente aconteceu na minha ausência?

— Eu a vi hoje e... Então é a vez dela prender a respiração e olhar pra cima enquanto solta um pequeno riso de escárnio antes de dizer — E ela não te considerou, isso explica porque você está aqui agora. Ela volta a ficar séria antes de continuar — O que você quer? O que você veio fazer aqui, Carina?

O que eu quero? O que eu vim fazer aqui? Não perdi a escolha de palavra dela, considerou e não reconheceu, mas também me pergunto, quero respostas para perguntas que nem entendo direito, eu não sei, realmente quero ouvir e descobrir isso? Vale a pena?

De qualquer forma, a capacidade de frear as palavras antes que saiam erradas chega com meio segundo de atraso e me vejo afirmando: — E sei que ela tem problemas de memória Seu rosto ganha um tom mais pálido que o branco e ela suspira antes de dizer — Você não só a viu, você falou com ela

— Sim É tudo que digo, então ela abaixa as vistas balançando um pouco de um lado para o outro.

— Ela tem o que os médicos chamam de amnésia dissociativa. Tem outro nome, também. Amnésia psicogênica, nenhuma sequela cognitiva, apenas um apagão completo sobre um tempo específico da vida.

Não há qualquer emoção em sua voz; não há nada ali. É como se ela repetisse um discurso pronto, uma gravação para ser tocada toda vez sobre o assunto.

E então minha a ficha caiu, não é só de mim que ela não se lembra.

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