"Todo culpado é seu próprio carrasco." - Sêneca
Me pego pensando constante a nossa viagem de carro até sua casa, o quanto os acontecimentos da noite ainda parecem surreais se pensar com calma, pisco, estranhando um barulho. Um desmoronamento vindo de longe. Não de longe, de dentro, aquele é o som das minhas últimas defesas caindo e como ainda não tenho certeza se ela suspirou antes de dizer - Senti sua falta.
Ou se ela realmente falou isso ou se minha mente tem me pregado uma peça. Imaginada ou não, ainda estou fixada em como sua frase e em como foi inocente e sincera, tudo que eu não esperava no final da noite.
Mas aquele "Senti sua falta." ainda me assombra, porque como pode sentir minha falta se parei de existir para você, Maya?
Contudo, me assusta ainda mais o ímpeto que me fez querer responder "eu também" e em como a razão me deteve, pois soaria certo no último instante, a clareza que não posso dizer o mesmo, não são dois pesos e duas medidas. Quero dizer, uma de nós se lembra, a outra não. Ao contrário de sua confusão, se dissesse o mesmo estaria fazendo uma declaração.
Acho que finalmente entendo a diferença entre o nós agora e o nós que fomos, principalmente o porquê que tudo jamais será igual de novo. Percebi que o amor é vício, euforia inicial, rendição. Que a única diferença entre o amor e outras drogas é que a droga de rua é mal vista, enquanto a falta de controle da paixão é desejada. Veja, você se entrega, acha que ganhou asas e se joga com tudo de um precipício e se esborracha. Quando mal percebe, repete.
O 1º problema é exatamente o que aconteceu conosco no passado, a emoção arrebatadora não perdurou, precisei de doses maiores. Mais beijos, mais carinho, mais declarações, mais mais e mais. O barato vai ficando caro porque não é da natureza humana dar infinitamente. A fonte secou, a vida aconteceu, o amor não chegava mais, e perdida, precisei sobreviver sem euforia e com isso fui embora.
O 2º problema é o atual que amor não sacia, ao contrário de comida, não enjoa. Inventamos desculpas para continuar recebendo. Mendigamos e imploramos de joelhos por mais. Este é o famoso cinismo do viciado: só mais uma vez.
Maya é a minha droga, ela não é só a peça que falta, ela é meu vício, enquanto não sou o dela porque a amnésia a curou de todo e qualquer vício que ela poderia ter, negociou algo estranho com a abstinência; o tempo para remendar o coração. Acho que a privação exige outras fraturas.
Meu dia é uma sucessão de segundos desinteressantes que se arrastam sem pressa. Não consigo me concentrar em nada e olho a cada cinco minutos para a porta. Não sei o que espero, mas sem dúvida não é o chega até mim; um complicado e altamente arriscado caso que envolve metade das especialidades do hospital e claro que tudo errado, e quando a linha se firma do monitor, sou a primeira a sair da sala sem saber o que me levar a ficar tão chateada, era um claramente um caso difícil, mas ainda assim me deixa fora de rota e fora de mim até derrubar alguém pequeno em meu caminho, embora não seja o impacto que me chama a atenção, nem as vozes que ouço praguejar a minha frente e sim a frase lançada a mim pelo pequeno ser no chão
- Por que você sempre tem que me derrubar? Um sorriso involuntário nasce no meu rosto antes mesmo que possa fixar meus olhos nele, sei exatamente de quem se trata e nem é pela voz que exclama - Por que você sempre tem que fugir? Quantas vezes tenho que falar?
Ele estende a mão e lança um sorriso fofo. Meu Deus! É a mistura exata de doçura, conhecimento e vibração inocente. Não sei o que dá em mim, mas o pego no colo e enquanto ele apenas ignora a mãe e sorrir, antes de ficar muito sério me encarando como se procurasse algo antes de dizer - Você está bem? Parece triste.
- Ai meu Deus, pare com isso! ela diz quase em desespero e embora ela prossiga falando outras coisas e algo em mim clique porque sei que estou sendo muito bem observada, ainda assim não consigo para de olhar o pequeno em meus braços e me perguntar como ele pode me ler tão e no quanto tudo sobre isso é tão injusto, esse menino em meus braços agora poderia ser meu, ser nosso... Mas não é, essa é a constatação que me tira do meu transe e me faz olhar ao redor, apenas para travar meu olhar com os olhos da mãe de Maya me olhando duramente
- Como vai, Carina? Ouvir meu nome dito de maneira tão fria faz os cabelos da minha nuca arrepiar, também chama atenção de Maya e de sua miniatura que rapidamente pergunta - Vovô, conhece a Carina? Ela sorri docemente para ele enquanto responde - Sim, querido. De uma outra vida. Seu olhar suavizou assim que ela percebeu a análise meticulosa que Maya fazia da gente, era quase como se ela tivesse tentando montar um quebra cabeça em sua mente, mas sem dúvida ela desistiu rapidamente de tudo e ainda que tivesse continuado, é muito pouco provável que chegasse a uma resposta concreta.
Afinal, sem nossa história como pano de fundo, jamais alguém poderia concluir que ela é a resposta para tudo. Pois, tudo que sei é que aquela mulher foi um dia tudo para mim. Minha fome, minha sede, minha insônia. Eu não sabia se fazia sol ou se chovia quando estava com ela. Ela se encaixa em mim, como uma peça que acha seu lugar.
Noah é que parece não desistir quando voltar seu olhar para mim novamente perguntando - Por que você está triste, Carina? Maya novamente se põe em ação tentando beliscar - lo diz - Eu não já falei para parar com isso? meu corpo reage antes que eu perceba, afastando sua mão e tirando o garoto do seu alcance, na verdade apenas tomei conhecimento quando ele agarra meu pescoço deitando sua cabeça no meu ombro e dá um pequena risadinha e claro, pelo erger de sobrancelha de mãe e filha na minha frente no um segundo entro em completo estado de pânico, o que diabos estou fazendo??? Mas Maya supera isso rapidamente com uma virada extremamente dramática de olhos, isso faz um sorriso completamente estupido ao meu rosto.
Quero dizer, pensei em tantas coisas em meio segundo que vê-la ali sendo uma boba me alivia de modo quase egoísta. Quero remendar a besteira que fiz, corrigir o trauma e não criar mais. Ela está bem comigo segurando sendo atrevida com o filho dela, e isso é que importa, embora "bem" seja um adjetivo estranho para descrevê-la. Ela também sorri e olha para mim, e eu me perco em seus olhos. Havia esquecido como eles são de um azul vivo e forte, sem qualquer traço de outra cor e rodeados por cílios fartos.
Seu rosto mostra dor por um segundo. Ela se inclina em minha direção, e por um segundo acho que vai me beijar. As pernas amolecem e o cérebro pifa. Esse é o poder dos seus olhos sobre mim, uma antiga e conhecida conspiração. Ela me beija, mas não na boca. Seus lábios tocam meu rosto terna e demoradamente. Antes de se afastar esfrega a face na minha e inala discretamente o meu cheiro. Ela acha que eu não noto, mas conheço seus artifícios.
Há sentimentos que pairam não ditos no ar. Não sei o que sinto e, principalmente, não sei o que ela sente. Talvez eu devesse me afastar, mas ao invés disso me inclino para frente e passo meu braço por sua cintura a puxando para mim com tudo que eu tenho. Eu cruzaria os céus e a terra por ela.
Aperto-a tão forte que ela se mexe.
- Forte demais? - sussurro em seu ouvido.
- Não. Quero caber melhor em você. Ela se ajusta melhor no meu corpo e da criança em meus braços. Posso sentir o olhar fixo de sua mãe em nós, nos avaliando, analisando, mas isso não importa agora, porque Maya se encaixa perfeitamente em mim, como uma peça que acha seu lugar e o sentimento de aqui e agora é de paz, pertencimento e aliança.
Ela se afasta eventualmente levando o menino com ela, mas ela ainda sorri ao me perguntar se estou melhor agora, quase começo a chora ali mesmo com isso porque dias atrás li que nossa única chance de eternidade está em viver na memória de quem amamos e foi doloroso ler aquilo, pois se para existir dependemos de memórias, então quem é esquecido desaparece aos poucos. Mas hoje, aqui e agora não sou só um sentimento ruim. Sei que tenho tido medo de correr esse risco, que não quero me deixar levar pelos instintos - ouço minha voz sair baixa. - Obrigada, eu realmente precisava disso.
Você quer proteger seu coração, mas a vida não dá garantias. Arrisque-se e conte a sua história. Lembre-se e sofra, se preciso.
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A Última Parte
FanficUma ascendeu na carreira, mudou de cidade e país, e acredita ter deixado os fantasmas para trás. A outra teve que aprender a viver sem suas memórias, inteiramente apagadas por um acidente quase fatal e florescer na vida e com as responsabilidades qu...