29 - Retorno

19 1 0
                                    

    Era difícil mensurar quanto tempo estava preso. A magia Ordem ao Servo permanecia constantemente forçando seu corpo a obedecer o comando mais simplista possível: esperar seu mestre chegar para saciar sua luxúria. Sempre acorrentado, sentia seu corpo aquecer quando o demônio o fazia múltiplas visitas por dia, reivindicando o direito de usá-lo. Cada átomo de seu corpo estremecia como um terremoto tão potente que demolidoria as maiores cidades Vernianas, pois não era uma melancolia que estava impregnada na mente de Baltazar, mas uma fúria interminável. Seu sangue negro jorava exporadicamente de tanto esforço que colocava em seu plano. Baltazar sabia que havia um limite na magia, mesmo para um demônio, então só precisava forçar até esse limite. Precisava perseverar e insistir na ideia de quebrar a magia na força do ódio, pois foi assim que conseguiu contra as magias de Greamory e Percival.
    Fazia pouco tempo desde da última visita de Salleos, ele não costumava voltar rápido, ou pelo menos era o que Baltazar acreditava. Pouco a pouco o vidro que esmagava seu livre arbítrio se quebrava. Ele era espesso e extremamente grosso, separando a consciência do corpo, mas ele começava a ceder. Mesmo que se sentisse esmagado com o peso daquele vidro, mesmo que cada poro expelisse sangue, mesmo que doesse dos ossos até a alma, Baltazar quebraria o vidro com os próprios punhos, socaria até ficarem na carne viva se fosse preciso. Quase desmaiou, estava suado e com falta de sangue, cambaleava deitado, mas estava finalmente de posse de seu direito de nascença, sua liberdade. Após dias tentando, finalmente conseguiu quebrar a magia com sua força de vontade.
    Finalmente livre, mas longe de estar bem e a salvo, precisava de uma rota para longe da academia e logo. Estava despido, suas roupas viraram trapos rasgados e sujos de suor, sangue e aquele líquido que Salleos adorava despejar nele. Havia um baú na sala, onde o interior guardava alguns tecidos da antiga decoração daquele lugar. Conseguiu improvisar uma 'túnica' com o que parecia as cortinas azuis escuras e então limpou seu sangue e suor com um estalar de dedos. Todo seu corpo estava dolorido, mas não tinha tempo para sentir dor, precisava correr caso quisesse se salvar.
    Como estava sem as botas dadas pelo forjador amigo do prefeito, precisava ter o dobro de cautela ao se mover, pois não sabia quantos diabretes estavam no lugar, nem quando os dois demônios rondariam o lugar, ou mesmo quando seria a próxima visita de Salleos, que encontraria uma cama vazia e repleta de sangue e suor. Percebeu que outras salas guardavam mais pessoas sendo torturadas, mas conseguia ouvir somente grunhidos baixos de dor e risadas abafadas de êxtase. Uma vez na vida teve sorte, mesmo sendo difícil andar, conseguiu passar despercebido até o quarto andar.
Cada andar contava com um total de seis salas, quatro para aulas, uma para banheiros e um para alguma necessidade geral, como sala dos professores ou armazém. Pensou em adentrar no armazém do quarto andar, provavelmente acharia roupas melhores, então não acreditou no tamanho de sua sorte quando viu aquela bolsa de tecido de tom bege. Era improvável que os demônios não tivessem jogado fora nem suas poções como também seu punho do Rompe-Estrelas. Pensou que fosse uma armadilha, talvez já soubessem que ele fugiu, então conjurou o truque Ilusionismo para simular passos desesperados até os itens no armário aberto, mas nada ocorreu.
Aceitou sua sorte e caminhou discretamente até o armário aberto com os itens. Não tardou para pegar uma das poções de cura que virou de uma vez, recebia gotas d'água para se hidratar e quase morreu de desidratação e fome depois de perder tanto líquido e mesmo assim continuar a andar. Sentiu o efeito da cura fechando ao menos as menores feridas abertas e as assaduras que Salleos havia feito. Olhou para o punho de seu montante e ponderou se usava aquilo ou não. A raiva começou a subir, virou uma segunda poção e imaginou o Rompe-Estrelas ceifando a vida daqueles canalhas.
Não mereciam o ar que respiravam, a vida que viveram ou mesmo qualquer segundo pisando no mesmo chão que outras pessoas decentes. Era por conta de demônios desprezíveis que sua família e muitos outros haviam morrido, seria um serviço ao mundo destroçar cada átomo dos dois da face de Vernya. A lógica assassina começou a tomar conta dos pensamentos de Baltazar, não por ódio genuíno, mesmo que esse fosse determinante para o pensamento, mas sim pelo sangue de demônio que corrompia seu ser. Não fazia ideia que isso estava acontecendo, apenas pegou sua bolsa e virou uma terceira poção, achou o grimório e começou a se preparar para a caçada.
As botas de Orelhudo que vestia ainda faziam o serviço que precisavam, deixando seus passos sem rastros e num silêncio absoluto. Passando até as escadas, conseguia ouvir o bater das asas minúsculas de alguns diabretes, se escondia para esperar pacientemente pela oportunidade perfeita da emboscada. Eventualmente, um barulho sólido de salto batendo nas pedras gélidas da academia começou a ecoar pelo corredor do quarto andar. Além dos diabretes, só havia três pessoas livres naquele prédio, não precisava investigar mais nenhum centímetro para saber disso. Salleos usava botas de borracha, Baltazar usava as botas de Orelhudo, quem restava era...

Limiar da RealidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora